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O Brasil é o país dos golpes de Estado patrocinados por militares, às vezes formulados ou incentivados por civis, as tradicionais vivandeiras, como Carlos Lacerda e Magalhães Pinto.

A República destronou a Monarquia, há 135 anos, por meio de um golpe de Estado, com dois generais na vanguarda — Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. Ao menos no início, a República era praticamente uma ditadura.

Em 1930, militares se uniram aos civis, como Getúlio Vargas, do Rio Grande do Sul, e Antônio Carlos de Andrada, de Minas, para derrubar o presidente Washington Luís e impedir a posse do presidente eleito, Júlio Prestes.

O golpe de 1930, que não foi uma revolução, pôs um civil no poder, Getúlio Vargas, mas sob a tutela de militares, como Góes Monteiro (dizia-se: Morteiro) e Eurico Gaspar Dutra, entre outros.

Em 1937, novo golpe — golpe dentro do golpe —, de novo numa aliança entre militares e Getúlio Vargas. Era o Estado Novo.

Em 1945, aqueles que haviam apoiado Getúlio Vargas por 15 anos, sem reclamar, ou reclamando pouco, o derrubaram, com Góes Monteiro e Eurico Dutra (os dois eram admiradores de Adolf Hitler) na comissão de frente.

Em 1954, militares, com as vivandeiras civis ao lado e não atrás, quase derrubaram Getúlio Vargas. Mas o suicídio do presidente evitou o golpe, ou, antes, o retardou por dez anos.

Em 1964, os militares tomaram o poder, com o apoio dos civis. Porém, o golpe agora era para os militares mandarem, o que Carlos Lacerda não entendeu e acabou cassado. Quando a inteligência se torna estultice, fruto da presunção e arrogância, resulta nisto: falta de visão precisa dos fatos.

Uma coisa o leitor deve reter: todos os golpes foram operados pelo Exército. Por coronéis e generais. A história é conclusiva: só há golpe de Estado no Brasil quando o Exército quer. Marinha e Aeronáutica, juntas ou separadamente, não produzem golpes de Estado.

Tanto que, das três forças, apenas a Marinha quis golpe de Estado entre 2022 e 2023. Como o Exército, seguido pela Aeronáutica, não quis — o putsch não aconteceu.

Militares sabem: a história não absolve ditadores

O bolsonarismo criou o “golpe” de 8 de Janeiro de 2023 para sugerir que seria fácil derrubar o governo de Lula da Silva, do PT, e, sobretudo, extinguir a democracia e implantar uma ditadura. Jair Messias Bolsonaro seria uma espécie de “espírito encarnado” de Emilio Garrastazu Médici.

Por algumas horas, o país ficou sem poderes constituídos, como se tivesse acontecido um golpe de matiz anarquista. Porque o Estado, praticamente no chão, não ganhou substitutos em termos de gestão. Por instantes, o país não tinha um poder, prevalecendo o caos.

Jair Bolsonaro e Walter Braga Netto: golpistas | Foto: Mateus Bonomi/Agif/Estadão Conteúdo

Por que o bolsonarismo não foi adiante com o golpe que estavas nas ruas — a rigor, dentro das sedes dos poderes Executivo (Palácio do Planalto), Judiciário (Palácio da Justiça, sede do Supremo Tribunal Federal) e Legislativo (Congresso)? Porque o Exército não o apoiou. Ante a possibilidade de prisão, os líderes do golpismo, que se esconderam por trás de aloprados e de nem tão aloprados, não apareceram.

Assim, o poder pôde ser retomado, não de Jair Bolsonaro e Walter Braga Netto, e sim do povão bolsonarista, que, tendo acreditado nos seus supostos líderes, foram às ruas badernar, exigindo o golpe de Estado.

Por que o Exército e a Aeronáutica não quiseram participar do golpe? Porque se tornaram legalistas. Ao contrário do que alguns pensam, há uma elite cultural bem formada nas Forças Armadas. São pessoas que conhecem a bibliografia sobre a ditadura — da longa noite de 21 anos entre 1964 e 1985 — de cabo a rabo.

Tais militares podem discutir a obra de Carlos Fico, Daniel Aarão Reis, Denise Rollemberg, Maud Chirio, Mariana Joffily, Rodrigo Patto Sá Motta, Marcos Napolitano, Celso Castro, Elio Gaspari, Marcelo Godoy, Hugo Studart, René Armand Dreiffuss de igual para igual com quaisquer pesquisadores.

Por conhecerem bem a historiografia do pós-64 — que é objetiva, equilibrada e séria —, militares sabem qual é a imagem cristalizada deles. Ficaram e persistirão mal na história. Há figuras mais deslustradas do que o coronel Brilhante Ustra e o general-presidente Médici?

O golpe de 64 resultou de uma aliança entre militares e civis. Porém, quando a ditadura começou a ruir, vários civis que a apoiaram, como José Sarney e Antônio Carlos Magalhães, o ACM old, caíram fora, e passaram a posar democratas. Tornaram-se, de uma hora para outra, democratas renitentes.

Os militares ficaram com o fardo da ditadura todo para si. Numa operação hábil, mas com pegadas visíveis, os políticos cerebrinos da direita tentaram firmar que a ditadura foi apenas militar, e não civil-militar. Intelectuais da esquerda — não todos — compraram o discurso, não por ser útil para excluir os civis pró-regime, e sim para enfatizar o caráter autoritário da ditadura, ou seja, tem de ser apenas militar.

No livro “A Ditadura Acabada”, Elio Gaspari ressalta certa continuidade da ditadura no governo democrata: “Num universo de 125 cargos relevantes” da equipe do ex-presidente José Sarney, “a taxa de sobrevivência dos quadros do governo de Figueiredo fora de 60%, a maior já registrada”.

Então, os militares atuais do Exército e da Aeronáutica não querem saber de ditadura. Preferem a democraci. O que é positivo para o país.

A figura heroica do Exército é Freire Gomes

Por que, quando presidente, Jair Bolsonaro conseguiu corromper, moral e politicamente, alguns militares? Primeiro, deu-lhe cargos com salários polpudos. Segundo, prometeu-lhe um admirável mundo novo, a ditadura — um presente como restauração do passado. Terceiro, o poder é sedutor e, consta, até afrodisíaco.

Porém, a corrupção — e não se trata de corrupção financeira — não envolveu diretamente as instituições, como o Exército e Aeronáutica. Só a Marinha, sempre mais conservadora, aderiu à ideia de golpismo preconizada por Jair Bolsonaro.

Mesmo sendo um homem sem a cultura dos militares de proa, Jair Bolsonaro, como presidente, tinha o que oferecer — inclusive cargos no exterior e, se preciso fosse, até negócios.

Vale a pergunta: militares como Augusto Heleno — militar que dizem brilhante — e Walter Braga Netto, para citar apenas dois próceres, foram “virados” por Jair Bolsonaro? Ou ambos convenceram o ex-presidente de que o putsch era possível?

Que um “capitão” tenha convencido dois generais a coordenar um golpe de Estado é implausível? Parece. Mas, no Brasil, talvez não seja. Porque o país é tão surrealista que o surrealismo não pegou nos alegres trópicos, exceto aqui e ali.

O fato é que Jair Bolsonaro encontrou terreno propício para semear suas sementes golpistas, com o apoio dos “produtores rurais” Augusto Heleno e Walter Braga Netto e uma série de vivandeiras do mundo empresarial e do mundo dos produtores de soja e criadores de gado.

Entretanto, como não se faz golpe sem o Exército — é possível articulá-lo sem a Marinha e a Aeronáutica —, Jair Bolsonaro esbarrou no comandante do Exército, Marco Antonio Freire Gomes. Trata-se de um dos militares cultos que sabe que, quando a ditadura acaba, o que há de pior fica para as Forças Armadas — com os demais apoiadores pulando fora. Não só.

O general Freire Gomes faz parte de uma geração legalista do Exército. Por isso, quando avisado por Jair Bolsonaro que um golpe de Estado estava em preparo, respondeu, com firmeza, que o Exército estava fora e que poderia prendê-lo.

Ao Supremo Tribunal Federal, Freire Gomes tentou desdizer o que havia dito à Polícia Federal, sugerindo que teria advertido Bolsonaro de que poderia prendê-lo? A linguagem oral é sempre escorregadia. O mais provável é que o general quis dizer, apesar de o ter alertado, que não “ameaçou” o então presidente. Até porque intenção — ou palavrório — não é ato.

A vida exige que se saiba o que é relevante. No caso, para além do disse-me-disse — se falou não ou falou —, o importante é que a coragem, a firmeza e a defesa da legalidade do general Freire Gomes, representando o Exército e defendendo o país e a democracia, evitaram um golpe de Estado de consequências danosas.

Carlos Almeida Baptista Junior, comandante da Aeronáutica, seguiu os passos de Freire Gomes e disse não ao golpe. Enfrentou tanto Jair Bolsonaro quanto o general Augusto Heleno. Trata-se de outro militar admirável.

O papel de “triste figura”, diria “dom” Cervantes, ficou para o almirante Garnier Santos, da Marinha, que aderiu à ideia do golpista Bolsonaro.

Por fim, é preciso aprender uma velha lição: não há ditadura boa. Nem de esquerda, nem de direita. Só a democracia vale a pena.