O país precisa de um líder que una os brasileiros contra a pandemia do coronavírus e contra a crise econômica e deixe o debate ideológico para outra ocasião

Neste momento, o presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, tem dupla missão: contribuir para salvar vidas e, sim, salvar a economia.

Bolsonaro está coberto de razão quando se preocupa com a economia, porque, com o aprofundamento da crise, milhões de brasileiros ficarão sem emprego e outros milhares terão seus salários reduzidos. Várias empresas serão fechadas e seus proprietários ficarão endividados e sem condições de obter empréstimos para reerguê-las. Uma recessão está na ordem do dia e, dependendo da situação internacional, uma depressão estará batendo à porta. Para escapar de uma debacle mais severa, o Brasil vai depender sobretudo da China, seu maior parceiro comercial. Portanto, quanto mais rápido a economia chinesa se recuperar, melhor para o país tropical abençoado por Deus. Os ministros Abraham Weintraub, da Educação, e Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, certamente aprenderão que, para além das ideologias, os asiáticos hoje são cruciais para a economia patropi.

Jair Bolsonaro, presidente da República | Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

O que “desautoriza” a preocupação do presidente com a

economia é sua “despreocupação” com a vida das pessoas

Como venceu uma eleição presidencial, batalhando contra uma esquerda experimentada — havia vencido quatro eleições seguidas —, Bolsonaro parece acreditar que não precisa ouvir a voz daqueles que não foram eleitos, às vezes para nenhum cargo. Consta que ouve alguns militares de seu círculo íntimo. É provável que ouça. Seus discursos só não são piores — e já são ruins — possivelmente porque há um grupo de militares sensato e que tenta orientá-lo, o que não é o mesmo que manipulá-lo. Se ouvisse a voz da razão, e há gente racional no governo — para além dos malucos-desbeleza da Educação e das Relações Exteriores, que passam a ideia de que estão brincando de “casinha” e “pique-esconde”, entenderia uma questão crucial. O que “desautoriza” a preocupação do presidente com a economia é sua “despreocupação” com a vida das pessoas.

Fica-se com a impressão de que Bolsonaro acredita que o Brasil é um imenso quartel — com 8,5 milhões de quilômetros quadrados e 210 milhões de recrutas. Às vezes, parece pensar que o país tem 210 milhões de comunistas. Quando fala em Brasília, para o pessoal de um cercadinho, fica-se com a impressão de que o presidente avalia que ali está o seu “povo” — aquele que concorda com tudo o que diz e, mais, cobra a radicalização antidemocrática do país. Só há “malucos” e pessoas escolhidas para dizerem o que o gestor federal quer ouvir? Não. Há ali uma média da sociedade brasileira. Há um ressentimento profundo contra políticos e instituições e acredita-se que uma pessoa, no caso Jair Messias Bolsonaro, se tiver liberdade para fazer o que quiser, poderá resolver os problemas históricos do país. É um equívoco, mas é assim que pensa muita gente — e, sim, muita gente boa, decente. A República do Ódio — o “nós contra eles”, que alguns petistas pregavam — agora é “propriedade” do bolsonarismo. Mas prejudica mesmo é o país.

Independentemente do que o PT fez, ao formular contenciosos artificiais, um presidente não governa para as pessoas de nenhum cercadinho. Deve governar para todos — inclusive para aqueles que não votaram nele. Ao chegar ao poder, mesmo discordando dos métodos antigos, um presidente tem de se tornar conciliador. Por mais difícil que seja dizer isto, não dá para governar sem o centrão (aliás, parte da fonte do imenso poder do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, deriva ou derivava de sua ligação com o centrão). Portanto, ao atrai-lo para o governo, Bolsonaro não está de todo errado. Claro que, se não conseguir controlar a gula de seus integrantes, aí vai entender por que os governos do PT foram se desmanchando aos poucos, ao longo de 14 anos. A turma do centrão chega, de mansinho, e vai contaminando o ambiente, tornando o ambiente seu, e não mais do presidente. Bolsonaro conseguirá contê-lo? Não se sabe. Na verdade, o que poderá segurá-lo, ao menos em parte, são as instituições (Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal, parte do Legislativo e a imprensa). Corruptos nunca aceitam que o “tempo” mudou de maneira integral — e não mudou mesmo —, por isso continuam articulando negociatas. Porém, com instituições fortes e atuantes, o grau de malandragem com o dinheiro público tende a cair. Até onde se sabe, e até agora, o presidente Bolsonaro é decente. Mas não basta ser decente. É preciso governar bem e entender o que é a integralidade do governo.

Nelson Teich: ministro da Saúde visitou Manaus; deveria visitar todos os Estados e levar com ele o presidente Jair Bolsonaro | Foto: Reprodução

No tratamento que dá aos ministros do governo, Bolsonaro revela duas coisas. Primeiro, talvez produto de sua insegurança, tem a necessidade de dizer que “manda”. Mas a mensagem que deixa é que, se precisa dizer que manda, é porque não manda tanto assim. Mas, por ter a “caneta”, a que nomeia e exonera, manda mesmo. Segundo, quando afirma em público que o ministro da Economia, Paulo Guedes, “manda”, reconhecendo sua autoridade, a mensagem que transmite é outra: o auxiliar estaria enfraquecido ou até querendo deixar o governo. Por alguma razão, quiçá de natureza psíquica, Bolsonaro não aprecia ministros fortes, como Luiz Henrique Mandetta, Sergio Moro, os dois fora do governo, e Paulo Guedes e Tereza Cristina (o eficiente ministro da Infraestrutura, o engenheiro Tarcísio Gomes de Freitas, não entra em choque com a turma bolsonarista porque, habilidosamente, trabalha muito, mas se mantém à distância). Ministros sem identidade ideológica com o presidente parecem provocar desconfiança. Regina Duarte, para ficar num exemplo, já está posando de pós-extrema direita, talvez para agradar Bolsonaro, que, dos homens da ditadura, escolheu como mitos os piores — os torturadores e aqueles que mataram não em combate.

Retomando a questão da pandemia. O ministro da Saúde, Nelson Teich, esteve em Manaus e viu de perto o quadro dramático do sistema de saúde. Ele é criticado por não ter um planejamento claro e eficaz de combate ao novo coronavírus, mas sua viagem foi um bom começo. O presidente Franklin Delano Roosevelt, que governou os Estados Unidos por um longo tempo — foi eleito quatro vezes seguidas —, gostava de ouvir os dramas das pessoas. Quando não podia manter contato direto, dado seu problema físico (teve poliomielite aos 39 anos e geria o país de uma cadeira de rodas), enviava sua mulher, a notável Eleanor Roosevelt (espécie de Simone de Beauvoir do mundo real), e outros auxiliares para verificar se os projetos do governo estavam realmente sendo postos em prática. O exame de estatísticas é crucial para se adotar determinadas medidas, mas escutar o que dizem os indivíduos é fundamental. Nelson Teich deveria visitar todos os Estados e levar Bolsonaro junto ao menos algumas vezes. O presidente está precisando tomar um banho de país, ver como está o tratamento dos pacientes e escutar pessoas (inclusive parentes dos mortos) para além do “cercadinho” de Brasília. Por mais que combata a mídia, que seria uma espécie de novo demônio, Bolsonaro acompanha a tragédia — mais de 10 mil mortos e mais de 140 mil contaminados pelo vírus — certamente pela televisão e informes de seus serviços de informação. Com ou sem (ele não aprecia) máscara, o presidente tem o dever de visitar os Estados e verificar como estão vivendo os brasileiros — muitos deles seus eleitores.

Se Bolsonaro andar pelo país, se conversar com governadores, prefeitos, médicos, enfermeiros, cientistas e pessoas comuns, para além das pesquisas que manda fazer ou de consulta nos jornais e nas emissoras de televisão, é possível que mude um pouco o norte de seu governo e de suas palavras. O presidente precisa de contato com gente comum, não afeita a debates ideológicos, para perceber quais são suas preocupações e necessidades reais.

O Brasil, neste momento, precisa de um presidente Jair

Bolsonaro que seja mais brasileiro e menos brasiliense

O Brasil, neste momento, precisa de um presidente que seja mais “brasileiro” e menos “brasiliense”. O país necessita de um gestor que pense em todos e não em debates ideológicos. Às pessoas que sofrem por si ou por seus parentes não interessa o debate se a direita, Bolsonaro, é “melhor” do que a esquerda, o PT e outros grupos. Interessa a elas primeiramente se estarão vivas amanhã, se seus pais e seus filhos estarão vivos. Claro que a economia importa, e muito. Mas a vida está acima de tudo. Porque, como o Jornal Opção tem insistido, um ser humano não tem duas vidas. Não há uma vida sobressalente.

Para usar uma linguagem típica dos novos tempos do Palácio do Planalto e adjacências, Bolsonaro precisa ser aconselhado a deixar a pose de galo-chefe do terreiro. “Eu mando, todos obedecem, mesmo se eu estiver errado” não é um método que funciona no mundo moderno — cada vez mais colaborativo. Alguns dos melhores integrantes do governo Bolsonaro saíram ou caíram porque não concordavam com a política de “galo-chefismo” instalada no governo. Há ministros de qualidade que, para continuarem no governo, precisam, às vezes, de submeter-se a interpretações medíocres e tacanhas. A política exterior confusa, tão ruim quanto a do PT, não contribui para melhorar a economia brasileira. Brigar com a China, por exemplo, ajuda em que os produtores rurais e os industriais locais? Em nada, claro. O ministro Ernesto Araújo é, de algum modo, “adversário” não apenas de Tereza Cristina. É adversário sobretudo do Brasil.

Ronaldo Caiado: o governador de Goiás segue a ética da responsabilidade| Foto: Reprodução

Há uma direita moderada e com preparo intelectual no Brasil. Liberais e conservadores, desde que preparados, estão preocupados com o barco à deriva que se tornou o presidente Bolsonaro — mais até, paradoxalmente, do que o seu governo (que é menos ruim do que o presidente). O governador de Goiás, Ronaldo Caiado, é o exemplo de um político conservador e moderno. Logo no início do problema do novo coronavírus, quando nem se dizia que se tratava de uma pandemia, Ronaldo Caiado propugnou por um isolamento social adequado e, como resultado disso, morrem menos pessoas no Estado do que em outras regiões. Por ser médico e humanista, o gestor goiano preocupou-se acima de tudo com as vidas das pessoas. Não à toa sua aprovação é alta tanto em Goiás quanto no país. O sociólogo alemão Max Weber o integraria como apóstolo da ética da responsabilidade.

Deve-se cobrar do presidente que deixe o século 20 e assuma que é

gestor de um país em que as pessoas estão com os pés no século 21

Bolsonaro é um “soldado” da Guerra Fria — quando nem seu ídolo, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, segue esta vibe. O que se precisa cobrar do presidente brasileiro é que deixe o século 20 e assuma que é um gestor de um país em que as outras pessoas, 210 milhões, estão com os pés fincados no século 21. Max Weber, se vivo, talvez dissesse que a ética de Bolsonaro não é a dos brasileiros, e sim a de um gueto da direita (minoritária, por certo). Não serve, portanto, para o gestor de um país, e sim, unicamente, para o chefe de militantes fundamentalistas.

Há pessoas de alta qualidade ao lado de Bolsonaro — o que não interessa a esquerda dizer. Entre elas estão os generais Augusto Heleno, Walter Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos, Fernando Azevedo e Silva e Hamilton Mourão (vice-presidente; por sinal, seria um ministro das Relações Exteriores bem superior a Ernesto Araújo), o almirante Bento Albuquerque e os civis Paulo Guedes e Tereza Cristina. Entre outros (como Tarcísio de Freitas), claro.

A seguir publica-se um dos discursos mais famosos da história — “Casa Dividida”, que Abraham Lincoln proferiu, em 1858, quando não era presidente da República dos Estados Unidos. Bolsonaro deveria ler com atenção a frase “uma casa dividida contra si mesma não pode subsistir”. O presidente tem de unir o Brasil para salvar vidas, a economia, seu governo e, quem sabe, seu futuro político. Quando entender que as duas coisas — economia e métodos de luta contra a pandemia — não são necessariamente excludentes, desde que trabalhadas e integradas de maneira apropriada, a situação de seu governo tende a melhorar (o apoio aos trabalhadores informais, por exemplo, é um grande acerto). Talvez.

Discurso da Casa Dividida, de Abraham Lincoln

Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos | Foto: Reprodução

Sr. presidente e senhores da Convenção.

Se antes de tudo pudéssemos saber para onde vamos, e para onde tendemos, poderíamos melhor avaliar o quê e como fazê-lo.

Já se passaram cinco anos, desde que uma política foi iniciada com o declarado objetivo, e a confiante promessa, de encerrar as agitações da escravidão.

Sob o governo dessa política não apenas a agitação não cessou, mas está constantemente aumentando.

Na minha opinião, ela não cessará, até que uma crise ocorra, e passe.

Uma casa dividida contra si mesma não pode subsistir.

Eu acredito que este governo não pode suportar [o país], permanentemente, metade escravocrata e metade livre.

Não espero que a União se dissolva — eu não espero que a casa caia —, mas eu espero que deixe de ser dividida.

Ela irá se tornar uma coisa só, de uma forma ou de outra.

Ou os adversários da escravidão irão impedir a propagação da mesma, e terá lugar na opinião pública a crença de que ela está em vias de definitiva extinção, ou seus defensores irão empurrá-la adiante, até que se torne igualmente lícita em todos os Estados, nos velhos bem como nos novos — do Norte como do Sul.

Por que não tendemos para esta última condição?

Deixemos qualquer um que esteja indeciso, que compare cuidadosamente a atual e quase completa combinação legal – com uma peça de maquinaria, por assim dizer – composta pela doutrina Nebraska, e a Decisão Dred Scott. E deixemos que ele considere não somente o trabalho que a máquina esteja adaptada a fazer, nem para o que ela for melhor adaptada a fazer; mas também se lhe permita que estude a história da sua construção, e siga, se ele puder, ou não, as evidências do desenho e engrenagens, entre os melhores arquitetos, desde o início.

O novo ano de 1854 encontrou a escravidão excluída de mais da metade dos Estados por suas Constituições Estaduais, e da maioria dos territórios nacionais, por vedação do Congresso.

Quatro dias após, teve início a luta, que resultou na revogação da proibição congressual.

Isso abriu todos os territórios nacionais à escravatura, e foi o primeiro ponto ganho.

Mas, até então, só o Congresso tinha agido; mas o endosso do povo, real ou aparente, era indispensável, para salvar este ponto já ganho, e permitir uma chance para mais outros.

Esta necessidade não tinha sido esquecida; ela havia sido prevista, sob o notável argumento da “soberania popular”, outras vezes chamado de “sagrado direito do autogoverno”, esta última frase que, embora seja a base que torna legítimo qualquer governo, foi aqui tão corrompida para este uso que permite apenas entender isto: qualquer homem que decida escravizar outro não poderá ser impedido por um terceiro.

Esta tese foi incorporada ao projeto da Lei Nebraska, na linguagem a seguir: “Não sendo a verdadeira intenção e significado deste ato legislar sobre a escravidão em nenhum território ou estado, não a exclui dali, mas deixa que o povo destes seja perfeitamente livre para escolher a forma de regulamentar suas instituições domésticas a seu alvitre, sujeito somente à Constituição dos Estados Unidos.”

Em seguida, ouviu-se o clamor da declamação em favor da “soberania popular” e do “sagrado direito ao autogoverno”.

“Mas”, disseram os membros da oposição, “vamos ser mais específicos – vamos alterar o projeto de lei para que expressamente declare que as pessoas dos territórios possam excluir a escravidão.” “Nós não”, disseram os amigos do ato legal; e foi assim que votaram a emenda.

Enquanto a lei Nebraska tramitava pelo congresso, a jurisprudência tratou da questão da liberdade do negro, em razão de um proprietário que, passando voluntariamente primeiro por um estado livre e, depois, por um estado envolvido pela proibição congressual, declarou-o como um escravo, mesmo havendo passado um longo tempo em cada um, havendo percorrido todas as instâncias judiciais estadunidenses a partir do distrito de Missouri; e ambos, a carta de Nebraska e a ação judicial, foram levados para uma decisão no mês de maio de 1854. O nome do negro era “Dredd Scott”, cujo nome agora designa a decisão final prolatada neste caso.

Antes da próxima eleição presidencial, a jurisprudência surgiu, e foi então alegada na Suprema Corte dos Estados Unidos; mas a decisão foi adiada para depois das eleições. Entretanto, antes do pleito, o Senador Trumbull, no plenário do Senado, requereu a principal defesa da lei Nebraska como cada estado podendo expressar sua opinião se o povo de um território pode constitucionalmente excluir a escravidão de seus limites; e a resposta que seguiu-se foi: “Esta é uma questão para a Suprema Corte”.

A eleição chegou. Mr. Buchanan foi eleito e o endosso, tal como foi, garantido. Esse foi o segundo ponto ganho. A sanção, no entanto, ficou aquém da clara maioria popular de quase quatrocentos mil votos, e então, talvez, não restou plenamente confiável e satisfatório.

O presidente que se afastava, em sua última mensagem anual, tão impressionantemente quanto possível, ecoou de volta para o povo a autoridade e o peso do endosso.

A Suprema Corte reuniu-se de novo; não para anunciar sua decisão, mas para ordenar uma nova argumentação.

A posse do novo presidente veio, e nada de uma decisão do tribunal; mas o novo Presidente, no seu discurso de posse, exortou fervorosamente o povo a respeitar a decisão futura, qualquer que fosse.

Então, em poucos dias, veio a decisão.

O renomado autor da lei Nebraska encontrou rapidamente ocasião para fazer um discurso sobre o endosso para que adotem a decisão do caso Dred Scott, e veementemente denunciava toda oposição a isto.

O novo presidente, também ele, aproveitou a recente ocasião da carta de Silliman sobre o endosso e interpretação da sentença, para expressar sua surpresa de que nenhum ponto de vista diverso jamais ter sido percebido.

Finalmente a disputa eclode entre o presidente e o autor da Lei Nebraska, sobre uma mera questão de fato, sobre se a Constituição Lecompton era ou não, de qualquer forma, feita pelo povo do Kansas; e nesta disputa mais tarde ele declara que tudo o que pretende é que haja uma votação justa pelo povo, e que ele não se importa se a escravidão será mantida ou derrubada. Eu não entendo a sua declaração, significando que ele não se importa se a escravidão será ou não abolida, mas sim que ele entenda seja uma definição apta para a política que pretende imprimir sobre a opinião pública – o princípio que ele declara é que já sofreu muito, e que está pronto para sofrer até o fim.

E desta forma pode ele apegar-se a esse princípio. Se ele tem algum sentimento parental, então pode ele se apegar a isto. Esse princípio é só uma migalha da sua doutrina Nebraska original. Nos termos da Decisão Dred Scott, “soberania de joelhos” ajoelhada para fora da existência, desmanchando-se tal qual um palanque temporário – tal qual um molde de fundição que volta a ser areia solta – ajudou a vencer a eleição, e depois foi largada aos ventos. Sua luta final junto aos republicanos, contra a Constituição Lecompton, nada mais traz da doutrina Nebraska original. Esta luta foi feita por um só ponto, o direito de o povo fazer sua própria constituição, e no qual ele e os republicanos não têm divergido.

Os muitos pontos da Decisão Dred Scott, em conexão com a política “sem-cuidado” do Senador Douglas, constituem as peças da máquina, no seu atual estado de desenvolvimento. Este foi o terceiro ponto ganho. Os pontos em que a máquina trabalha são:

Primeiro, que nenhum escravo negro, importado desde a África, e nenhum descendente de tais escravos, nunca poderão ser cidadãos em qualquer estado, no sentido em que a palavra é empregada na Constituição dos Estados Unidos. Este ponto foi feito a fim de privar o negro, em qualquer possível evento, do benefício assegurado pela Constituição dos Estados Unidos, quando ela declara que: “Os cidadãos de cada Estado terão direito a todos os privilégios e imunidades dos cidadãos em seus respectivos estados.”

Em segundo que, “salvo o disposto na Constituição dos Estados Unidos”, nem o Congresso nem o legislador do território pode excluir a escravidão de qualquer Território dos Estados Unidos. Este ponto foi feito a fim de que cada homem individualmente possa entrar nos Territórios com escravos, sem correr o risco de perder sua propriedade, e assim aumentar as chances de perpetuar essa instituição através de todo o futuro.

Terceiro, se um negro será feito livre na forma da atual servidão quando num estado libertário, mesmo contra o seu proprietário, as cortes dos Estados Unidos não podem decidir; mas poderão decidir se, nos estados servilistas, o senhor quiser impor ao negro a escravidão. Este ponto é feito, não para aplicação imediata; mas, se for tolerado por algum tempo, e for aparentemente endossado por algum povo numa eleição, seguindo a conclusão lógica de que se o dono de Dred Scott age licitamente com Dred Scott, mesmo no estado libertário de Illinois, qualquer senhor de escravos poderá legitimamente fazê-lo com mais um, ou com mil escravos, em Illinois, ou em qualquer outro Estado libertário.

Auxiliar disto tudo, e trabalhando lado a lado com isto, a doutrina Nebraska, ou o que resta dela, vem para educar e moldar a opinião pública, ao menos a opinião pública nortista, para não se preocupar se a escravidão for votada a torto e a direito. Isso nos mostra onde estamos exatamente e, em parte, também para onde estamos sendo levados.

Isto vem jogar luz sobre o último ponto, ao qual retorno, e leva a mente sobre a sequência dos fatos históricos aos quais já me referi. Muitas coisas agora já parecem menos obscuras e misteriosas do que quando eles estavam segredando. As pessoas iriam ficar “perfeitamente livres”, sujeitas somente à Constituição. O que a Constituição tinha a ver com isto, era os que estavam de fora não podiam compreender. Está tudo claro agora, tudo foi exatamente feito para montar um nicho, onde depois se encaixou a Decisão Dred Scott, a declarar que ser perfeitamente livre é a liberdade do povo de justamente não ter liberdade para todos. Por que a emenda, declarando expressamente o direito do povo, não foi votada? Tudo ficou perfeitamente claro agora: a adoção disto teria estragado o nicho no qual se encaixou a Decisão Dred Scott. Por que a decisão judicial foi adiada? Por que até mesmo a opinião individual de um Senador foi adiada, para depois da eleição presidencial? Está tudo claro agora – se tivessem falado antes, teriam prejudicado o argumento do perfeitamente livre em que a eleição foi conduzida. Por que adiaram a felicitação presidencial sobre o endosso? Por que a demora em uma réplica? Por que a demora do Presidente na sua exortação em favor da decisão? Essa coisa se parece com o cuidadoso bate e alisa que se faz num cavalo indomado, antes de montá-lo, quando se teme que ele venha a derrubar o cavaleiro. E por que tudo foi precipitado logo em seguida ao endosso da decisão, pelo Presidente e pelos demais?

Nunca saberemos com absoluta certeza se todos esses acertos foram exatamente o resultado de combinações prévias. Mas quando vemos um monte de vigas ajustadas, partes distintas que sabemos terem sido obtidas em momentos e lugares diversos, e por trabalhadores diferentes — Stephen, Franklin, Roger, e James para ilustrarmos um exemplo — quando vemos todas as vigas juntas, logo percebemos que elas formam a estrutura de uma casa ou de um moinho, com todas as cavilhas e malhetes se encaixando perfeitamente, com todas as medidas e proporções das peças angulares perfeitamente adaptadas para seus lugares, sem nenhuma peça maior ou menor – sem esquecer até mesmo dos andaimes – ou, se uma simples peça estiver faltando, ainda assim veremos que o quadro já estará perfeitamente montado e preparado para receber esta peça – em qualquer hipótese achamos impossível deixar de acreditar que Stephen e Franklin e James e Roger não tenham combinado uns com os outros desde o início, e que não trabalharam conforme um plano comum ou de acordo com um projeto elaborado antes do primeiro golpe ser desferido.

Não se deve esquecer que, até a Lei Nebraska, o povo de um Estado, bem como de um Território, foram deixados “perfeitamente livres”, “sujeitos apenas à Constituição”. Por que então falaram nos Estados? Eles estavam legislando para os Territórios, e não para os Estados. Certamente o povo de um Estado é e deve estar sujeito à Constituição dos Estados Unidos; mas por que uma menção tão pesada no bojo de uma lei meramente Territorial? Por que o povo de um Território e o povo de um Estado foram ali agrupados, e sua relação em face da Constituição tratada como sendo exatamente a mesma coisa? Embora o parecer da Corte, pelo Chefe de Justiça Taney, no caso Dred Scott, e em todos os pareceres em separado dos juízes concordantes, expressamente declare que a Constituição dos Estados Unidos não permite que o Congresso nem o legislador Territorial possam excluir a escravidão em qualquer Território dos Estados Unidos, todos eles foram omissos em declarar se a mesma Constituição permite ou não ao Estado, ou o povo de um Estado, excluir a servidão. Possivelmente isto foi uma simples omissão; mas quem pode ter mesmo certeza, se McLean ou Curtis tenham tentado inserir na ementa uma declaração de poder ilimitado ao povo de um Estado para excluir a escravidão de seus limites, assim como Chase e Mace procuraram obter uma declaração, em nome do povo de um Território, no texto do Ato de Nebraska – Eu pergunto, quem pode assegurar que não teria sido rejeitada, quer num caso como em outro? A abordagem mais aproximada do ponto que declara o poder de um Estado sobre escravidão é a feita pelo juiz Nelson. Ele se aproxima por mais de uma vez, usando uma ideia mais precisa, e quase a mesma linguagem, também, do Ato de Nebraska. Em uma ocasião sua linguagem exata é, “exceto nos caso em que o poder é restringido pela Constituição dos Estados Unidos a lei do Estado é suprema sobre o tema da escravidão sob a sua jurisdição.” Em quais casos o poder do Estado é tão reprimido pela Constituição dos Estados Unidos, é algo deixado em aberto, precisamente na mesma questão, como na contenção dos poderes dos Territórios, em que foi deixada em aberto pela Ato de Nebraska. Colocando isto e aquilo juntos, e teremos outro pouco agradável nicho que não demoraremos a ver sendo preenchido por outras decisões da Corte Suprema declarando que a Constituição dos Estados Unidos não permite aos Estados excluírem a servidão dentro de seus limites. Isto pode ser especialmente esperado se a doutrina do “não cuido se a escravidão será abolida ou não em alguma votação” for imbuída na opinião pública suficientemente a ponto de garantir que esta decisão seja mantida como foi feita.

Essa decisão é tudo o que a escravidão agora precisa para se tornar totalmente lícita em todos os Estados. Bem-vinda ou não, a decisão certamente virá, e em breve estará sobre todos nós, a menos que o poder da atual dinastia política se encerre e seja derrotado. Vamos então dormir sobre a mentira e agradavelmente sonhar que o povo do Missouri está prestes a tornar o seu Estado libertário, e vamos em vez disso acordar para a realidade, onde a Suprema Corte fez de Illinois um estado escravocrata. Encerrar e derrubar o poder desta dinastia é o trabalho para todos os que agora querem impedir a sua consumação. É isto que temos de fazer. Como poderemos fazer isto? Existem aqueles que denunciam abertamente aos seus próprios amigos, e há os que nos sussurram baixinho, que o senador Douglas é o mais apto instrumento sem o qual não terá efeito algum esse objetivo. Eles querem nos fazer acreditar no fato de que ele agora está ligeiramente brigado com o atual chefe daquela dinastia; e que ele tem regularmente votado conosco em um só ponto, sobre o qual nem ele nem nós nunca divergimos. Eles nos lembram que ele é um grande homem, ao passo que o maior de nós é pequeno demais. Que nós então o garantamos. Entretanto, “mais vale um cachorro vivo do que um leão morto”. O juiz Douglas, se não é um leão morto, para este trabalho, pelo ao menos é um que está enjaulado e sem dentes. Como pode ele se opor ao avanço da escravidão? Ele não se importa nem um pouco com isso. Sua missão declarada é impressionar o “coração do povo” para não se importar nem um pouco com isto. Um influente jornal do partido democrata de Douglas acredita que seu talento superior é o necessário para resistir à revitalização do comércio dos escravos africanos. Então Douglas acredita que um esforço para reavivar este comércio está próximo? Ele nunca disse isso. Será que ele realmente pensa desta forma? Se é assim, como irá ele resistir a isto? Durante anos ele vem trabalhando para garantir o direito sagrado do homem branco em ter escravos negros nos novos territórios. Ele poderia nos mostrar se é menos sagrado comprá-los onde eles são vendidos mais baratos? E sem sombra de dúvidas eles podem ser adquiridos mais baratos na África do que na Virgínia. Ele tem feito tudo ao seu alcance para reduzir toda a questão da escravidão a um mero direito de propriedade; e, sendo assim, como poderia se opor ao comércio dos escravos estrangeiros – como pode refutar aquele comércio em que a “propriedade” deve ser “perfeitamente livre” — a não ser que ele esteja fazendo a proteção da produção nacional? E como os produtores nacionais, provavelmente, não pediram sua proteção, ele ficará totalmente sem argumentos de oposição.

O senador Douglas sustenta, nós sabemos, que um homem pode legitimamente ser mais sábio hoje do que foi ontem — que ele pode legitimamente mudar quando percebe estar errado. Mas nós devemos, por essa razão, correr adiante, e supor que ele fará uma particular mudança, por si próprio, ele mesmo, sem nenhuma sugestão? Podemos basear com segurança nossas ações sobre uma vaga suposição? Agora, e sempre, eu não pretendo deturpar a posição do Juiz Douglas, nem questionar seus motivos, ou fazer qualquer coisa que possa ser-lhe pessoalmente ofensivo. Sempre, em qualquer vez, que ele e eu possamos ficar juntos em princípio então a nossa causa poderá ter o auxílio de sua grande habilidade, eu espero não ter interposto acidentalmente nenhum obstáculo. Mas, isto é claro, ele não está conosco — ele não pretende estar — ele nunca prometeu estar.

Nossa causa, então, deve ter seus frutos confiados a, e conduzidos por, seus próprios e inquestionáveis amigos — aqueles cujas mãos estão livres, cujos corações estejam no trabalho — que se importam com o resultado. Dois anos atrás os republicanos da nação reuniram mais de um milhão e trezentos mil homens vigorosos. Fizemos isto sob o só impulso da resistência ao perigo comum, com todas as circunstâncias externas contra nós. Mesmo estranhos, discordantes, e até hostis elementos, nos reunimos desde os quatro ventos, treinamos e lutamos em toda batalha, sob o constante fogo cerrado de um disciplinado, orgulhoso, e bem-tratado inimigo. Será que nós que enfrentamos todos eles, falharemos agora? – agora, quando este mesmo inimigo está vacilante, dividido, e beligerante? O resultado não deixa dúvidas. Não iremos falhar-se nos mantivermos firmes, não iremos falhar. Sábios conselhos podem acelerar, ou atrasar os erros, mas, cedo ou tarde, a vitória é certa que virá. (Tradução de André Koehne)

Abraham Lincoln