Bolsonaro não percebe que universidade pública está acima de controles ideológicos
05 maio 2019 às 00h00

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Principais ministros — Moro, Guedes, Pontes e Weintraub — estudaram em universidades públicas, o que prova que ideologias não são travas totalitárias

A universidade pública no Brasil tem uma qualidade — em termos de ensino e, sobretudo, pesquisa — que nenhuma universidade privada tem. Se fosse inteiramente voltada para o mercado, como parecem propor o presidente Jair Messias Bolsonaro e o ministro da Educação, Abraham Bragança de Vasconcellos Weintraub, certamente não faria pesquisas que, embora de longo prazo, um dia contribuirão para melhorar a qualidade de vida de todos os indivíduos (os estudos que melhoraram o tratamento dos doentes de Chagas saíram das universidades públicas, inclusive da Universidade Federal de Goiás). Há problemas — como em qualquer outro nicho da vida em sociedade. Dois deles não merecem discussão no clima passional, típico do Fla X Flu atual: certa paridade salarial e a aposentadoria aos 70 anos. Nos Estados Unidos, com quase 90 anos, o crítico literário Harold Bloom dá aulas na Universidade Yale, uma das mais importantes do mundo. No Brasil, estaria afastado da cátedra por lei. Num país em que está se vivendo mais, um mestre com 70 anos às vezes está no auge de seu saber e capacidade de lecionar na graduação e orientar na pós-graduação. Compulsoriamente, porém, é mandado de volta para casa. Um doutor que produz pensamento e ciência, em escala nacional ou internacional, por vezes ganha o mesmo que um doutor que pouco ou nada produz. Tal paridade, injusta e improdutiva, ignora (e não premia) o mérito.
É provável que seja lenda universitária ou invenção da direita — que, como a esquerda, aprecia desqualificar seus adversários —, mas conta-se que um militante da esquerda se tornou professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) sem sequer ter feito mestrado e não ter notório saber. Segundo a versão, teria sido “aprovado” por “debaixo dos panos” — por exigência dos líderes de seu partido. Tempos depois, sob pressão de seus pares, teria feito mestrado e doutorado. A história é tão mirabolante que merece ser tachada de “estória” — quer dizer, mera ficção de detratores. O reputado doutor em história Angelo Segrillo — autor de livros excepcionais sobre a Rússia e a Revolução Russa de 1917 — denunciou concursos públicos “arranjados” na Universidade de São Paulo, onde leciona, em artigos para o jornal “O Globo”. Os textos deveriam ter gerado debate, mas a universidade, ao menos do ponto de vista público, silenciou-se.

Há outro problema: quando lhes interessam, os universitários, sejam professores ou alunos, falam em “pluralidade de ideias”. Mas, na universidade brasileira, notadamente na pública, o que menos há é pluralidade ideológica. Predomina o pensamento de esquerda e reitores, em geral de esquerda, nada fazem para ampliar o debate, com a inserção, por exemplo, dos pensamentos liberal e conservador, que, a rigor, não são idênticos. Não há um veto institucional — explícito —, mas há, sim, um veto político, implícito (similar ao racismo à brasileira), que funciona muito bem. A universidade quase sempre se comporta como um “gueto da esquerda” e só incentiva o debate entre os grupos de esquerda. Pluralismo, para a esquerda, é incluir debatedores exclusivamente de esquerda, isto é, das várias esquerdas. É o máximo de pluralismo que se tolera.
Quando a Universidade Federal de Goiás propõe título de doutor honoris causa para Lula da Silva, que está preso sob acusação de corrupção, sinaliza que está “debochando” da Justiça, uma instituição que é um dos pilares da democracia. O título soa como um desafio e um desagravo ao ex-presidente da República. Se é função da universidade desrespeitar as instituições, como o Poder Judiciário, como exigir que seja respeitada como instituição que é? Na verdade, grupos de esquerda se apropriam dos espaços públicos, e não apenas nas universidades, e não fazem a defesa dos múltiplos interesses da sociedade, e sim de suas próprias ideias. O reitor da UFG, o engenheiro agrônomo Edward Madureira Brasil, é pesquisador respeitável, competente e gestor seriíssimo — e, realista, está “abrindo” a universidade para a sociedade, para o mercado —, mas, do ponto de vista ideológico, não consegue transformá-la numa unidade plural. Trata-se de um ex-petista de mentalidade aberta, mas os grupos que o apoiam cobram uma universidade mais “fechada” ao debate.

Quarteto fantástico estudou na universidade pública
Se a universidade pública se equivoca, ao se tornar um aparelho ideológico das esquerdas — diria o hoje esquecido Louis Althusser, um marxista que admitiu não ter lido Marx —, o governo de Jair Bolsonaro equivoca-se, igualmente, ao “persegui-la” por razões ideológicas. Combater o suposto “mal” com mais “mal” não leva à produção do “bem”.
Ideologias à parte, repetindo o que se disse no início deste Editorial, as universidades públicas congregam os principais pesquisadores do país. De lá, e não das pragmáticas universidades privadas — cujo objetivo é formar rapidamente os alunos, que às vezes saem malformados, para o mercado —, saem as pesquisas que contribuem para o desenvolvimento global do Brasil, em várias áreas, como saúde e tecnologia. Não deixa de ser curioso que quatro ministros de proa do governo Bolsonaro tenham sido formados pela universidade pública: Marcos Cesar Pontes (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), da Ciência e Tecnologia, Abraham Weintraub (Universidade de São Paulo e é professor da Universidade Federal de São Paulo), da Educação, Paulo Roberto Nunes Guedes (Universidade Federal de Minas Gerais), da Economia, e Sergio Fernando Moro (Universidade Estadual de Maringá e é professor da Universidade Federal do Paraná), da Justiça. O que o quarteto fantástico buscou na universidade pública? Possivelmente o fato de não ser paga e sua excelência acadêmica. Quer dizer: a “onipresença” e a “onipotência” das ideologias de esquerda não impediram que entrassem, estudassem e dessem aulas nas universidades públicas (dois deles, ao menos).

O filósofo Luiz Felipe Pondé propõe o fim do Ministério da Educação e sugere que a educação fique na cota dos Estados e municípios. A ideia sugere que, apesar de ser um crítico agudo da esquerda (e também da direita bolsonarista), falta-lhe percepção do que ocorre nos Estados e municípios — que estão sufocados por um pacto que nada tem de federativo e, portanto, não têm condições de bancar mais nada, exceto, às vezes, as folhas do funcionalismo público (porque Estados e municípios se tornaram, ao longo do tempo, os maiores empregadores do país). Na verdade, só o governo federal tem condições financeiras de bancar o dispendioso e necessário sistema de ensino público. Por questões de alinhamento ideológico, Bolsonaro não indicou para o Ministério da Educação, nas duas escolhas, um educador com ampla visão tanto de educação quanto de gestão. Gerir (a) educação não é o mesmo que administrar uma fábrica de automóveis ou um frigorífico. É muito mais complexo e, dadas as divergências de ideias e propósitos, contraditório. Um educador do porte de Cláudio Moura e Castro, se investido de algum poder, poderia contribuir muito com o governo Bolsonaro e, principalmente, com o desenvolvimento do país. Certamente, não pertence à esquerda, mas também não integra a direita empedernida (esquerda e direita, extremos que se tocam, estão cada vez mais parecidas).
Debate universitário ser plural e sem vetos a ideologias
Abraham Weintraub frisa que o governo Bolsonaro cortou recursos financeiros (30%) das universidades que não conseguiram apresentar o desempenho acadêmico “esperado” e decidiram promover “balbúrdia” nos seus recintos. As primeiras vítimas, porque instituições tidas como críticas da direita e do governo Bolsonaro, foram a Universidade de Brasília, a Universidade Federal Fluminense, a Universidade Federal da Bahia e a Universidade Federal de Goiás (que perdeu 32 milhões de reais). Apesar dos problemas possíveis, alguém em sã consciência pode realmente dizer que as quatro universidades têm baixo desempenho acadêmico em termos globais? É provável que determinada área tenha problema em alguns anos, mas depois, com ajustes, pode superá-los. As quatro universidades têm um grau de excelência que precisa ser exaltado e não pode ser reduzido a uma ação puramente ideológica e politizada. Numa universidade frequentada, em sua maioria, por jovens — sim, admite-se, mais de esquerda — como evitar certa balbúrdia, que, por certo, não é meramente ideológica? Em qualquer lugar do mundo, menos em ditaduras — como a chinesa e a cubana, ambas de esquerda (ainda que a primeira seja de um realismo capitalista absoluto) —, jovens produzem balbúrdia, que pode não agradar, de um lado, a direita, e, de outro, a esquerda. Mas a vida é assim: contraditória e não funciona de acordo com as regras “absolutas” do planejamento dos governos. Quanto ao desempenho acadêmico — desde que a avaliação seja o desempenho acadêmico, e não às ideologias de esquerda ou de direita de professores e alunos —, a universidade precisa curvar-se ao Ministério da Educação, no caso, representante da sociedade. Porque dizer que a universidade é “gratuita” não é inteiramente verdadeiro. Porque a sociedade está pagando para que algumas pessoas — muitas delas ricas — estudem de graça. Vale discutir daqui pra frente, o que a esquerda não quer — porque se trata de uma de suas bandeiras dogmáticas —, a questão do sistema universitário “gratuito”. Por que “de grátis” para os que podem pagar e, formados, não contribuem com a sociedade, no sentido de prestação de serviços não-pagos ao público?

O ministro da Educação sublinha que “a universidade deve estar com sobra de dinheiro para fazer bagunça e evento ridículo”. A universidade deve promover o debate, inclusive com integrantes da esquerda, ainda que deva torná-lo mais plural. Mas não deve proibir as discussões, inclusive as ideológicas, para “agradar” o desejo de um ministro que não esqueceu as aulas de Moral e Cívica e OSPB.
A Grécia, Alemanha, Itália, França, Inglaterra, Estados Unidos e o Brasil deram ao mundo filósofos como Aristóteles e Platão, Kant, Hegel (e, gostando-se ou não, Marx é um clássico incontornável) e Hannah Arendt; Benedetto Croce, Antonio Gramsci e Norberto Bobbio; Diderot, Voltaire e Rousseau (nascido na Suíça, é considerado francês); Adam Smith, John Stuart Mill, John Locke, Isaiah Berlin e John Gray; Emerson, John Rawls e Richard Rorty; Mario Vieira de Mello, Oswaldo Porchat, José Arthur Giannotti e Bento Prado Júnior. Se fossem jovens, e estudassem no Brasil, não se tornariam o que se tornaram. Porque, para o governo Bolsonaro, a filosofia e a sociologia (vista como uma fábrica de ideólogos de esquerda. Max Weber, o grande sociólogo alemão, era de esquerda? Por certo, embora não pertencesse aos quadros da direita radical, não era de esquerda) não têm importância. Porque, em tese, não levam à fabricação de celulares e pistolas. Só falta agora abolir a literatura, que, se dá um imenso prazer aos leitores, não é uma atividade, digamos, “produtiva”. A visão administrativa — cujo pragmatismo leva à ideia de que se deve incentivar tão-somente ao que atende ao interesse imediato das pessoas (neste sentido, pesquisas de longo prazo não têm a mínima importância) — leva a um empobrecimento do mundo. Fica-se com a impressão de que o governo de Bolsonaro serve não apenas à ideologia de direita, e sim à ignorantsia.

Bolsonaro quer ser o Jânio Quadros que deu certo?
A Defensoria Pública da União ingressou com uma ação civil pública na Justiça Federal do Distrito Federal na qual clama para que “seja vetada a redução de orçamento e” seja “feito o desbloqueio dos repasses” do Ministério da Educação às universidades federais brasileiras. A ação fala em pluralismo, peça que falta nas universidades federais, quando deveria sugerir, mais do que um discurso ideológico, a defesa da universidade como produtora de ensino e pesquisa de qualidade e que tem beneficiado a sociedade brasileira e a economia do país (a agricultura, a pecuária, a indústria e os serviços devem muito às pesquisas das universidades públicas).
Em termos de educação, Bolsonaro começou mal, muito mal. Há quem trate o presidente como “idiota” — o que ele não é —, possivelmente porque se confunde, no país, inteligência com cultura (a direita chama Lula da Silva de “apedeuta”, o que ele está longe de ser). Mas e se Bolsonaro — para além do filósofo Olavo de Carvalho — estiver seguindo uma espécie de planejamento para atrair a esquerda, a partir da universidade, para uma radicalização que lhe interessa? A esquerda vai cair na armadilha, com respostas não responsáveis, fora do campo democrático? Possivelmente, não, porque há uma esquerda responsável, como é o caso do reitor Edward Madureira. Produzir um debate intenso e até fazer greve — sem violência para não atrair violência — são características da democracia. Jogar bombas pode ser o que querem alguns bolsonaristas. Vale ler o condicional: “Pode ser”. Porque, de teorias conspiratórias, o mundo está cheio e não precisa de mais uma.
Pode-se sugerir que Bolsonaro quer se tornar o Jânio Quadros que deu certo? Ainda não se sabe, e é cedo para concluir alguma coisa, pois, até o momento, está obedecendo as regras do jogo democrático (sem desrespeitar o Congresso e o Supremo Tribunal de Justiça). Mas não deixa de ser verdadeiro que o presidente está buscando radicalizar seu governo — o que poderia levar a uma radicalização dos militares — e, para tanto, parece que se interessa por radicalizar a esquerda. Com qual objetivo, não se sabe. Ele começa a dar mostra de que não é controlado pelos militares e por Olavo de Carvalho. Alguma coisa se passa, mas não se sabe do que se trata realmente.
Fica-se na torcida para que a democracia prevaleça. Acima de tudo e de todos. Bolsonaro, até agora, não deu provas de que é contra o sistema democrático. Mas o corte de verbas para as universidades merece uma explicação mais adequada. Se a motivação for mesmo ideológica, aí, sim, começa a se verificar uma ação que atropela a democracia — o direito de se pensar e agir diferentemente do governante da circunstância. O Estado é o Estado. O Estado não é Bolsonaro — que passará, como passaram Getúlio Vargas, Costa e Silva e Emilio Garrastazu Médici.