Bolsonaro não é o Estado; o presidente é o representante provisório do Brasil

03 novembro 2019 às 00h00

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O governo é equilibrado, está tentando corrigir a herança maldita, mas o presidente e filhos se perdem em debates irrelevantes
“Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.” — Winston Churchill

Não há nenhuma evidência de que o presidente Jair Bolsonaro esteja envolvido — direta ou indiretamente — na morte da deputada Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Polícia e Ministério Público não têm nenhuma informação a respeito. Portanto, assunto encerrado. Só que não.
O presidente Jair Bolsonaro irrita-se facilmente, comportando-se como se não fosse presidente de um país — quer dizer, de todos os brasileiros —, e potencializa contra si o que não é exatamente contra si. Nenhum meio de comunicação sério — que não aceite determinação política — deixaria de mencionar que um homem esteve no Condomínio Vivendas da Barra, no Rio de Janeiro, disse, segundo o porteiro, que iria à casa do presidente Jair Bolsonaro, e depois teria dirigido um automóvel para a residência Ronnie Lessa — que é suspeito de ter matado Marielle Franco e Anderson Gomes. Na verdade, Élcio Queiroz — há sempre um Queiroz, diria Eça, neste país — foi à mansarda de Ronnie Lessa. O próprio porteiro confirmou que Queiroz foi para a casa de Ronnie Lessa, a 66, e não para a 58, a de Bolsonaro. A Globo registrou a história, esclarecendo o pormenor. Pode-se dizer que fez jornalismo. Mas Bolsonaro insiste que a rede decidiu atacá-lo e, por isso, partiu para o ataque — de maneira destemperada, o que pressupõe que está pregando para os convertidos (para que comecem sua defesa e o ataque à imprensa, notadamente à Globo). O que surpreende é que, de uma maneira geral, o presidente, que é de direita, repete, contra a Globo, os mesmos argumentos da esquerda, no passado recente. Os extremos se tocam em política? É o que parece. Agora, depois da queda do PT, a esquerda arvora-se em defensora da Vênus Platinada.
Próximo de outros dirigentes de redes de televisão, Bolsonaro parece que elegeu a Globo como “inimiga” e é possível que a rede da família Marinho esteja aceitando a guerra, até por não ter outra opção, contra o presidente. Os dois querem se derrubar, mas, até agora, a Globo tem seguido os limites do bom jornalismo — como esclarecer os fatos e ouvir as partes. A concessão da TV Globo terá de ser renovada, em 2022, último ano do mandato de Bolsonaro. O presidente avisa que, se estiver tudo em ordem — sugerindo que há pendências fiscais (a Globo garante que seus negócios estão em ordem) —, a renovação será efetivada. O que está se sugerindo é que não se renovará a concessão. Se Bolsonaro optar pelo enfrentamento, haverá um contencioso judicial — que se estenderá, possivelmente, a 2023, quando, se o atual gestor não for reeleito, o presidente será outro.

Numa nação democrática, pode um presidente da República usar o Estado como instrumento de vingança pessoal? Na ditadura, quando, a rigor, só há um poder, o Executivo, o governante tende a fazer o quiser — confundindo o privado e o público a bel-prazer. Na democracia, tudo é diferente. Por sua proximidade com militares, Bolsonaro pode até achar que “pode tudo”, mas não pode, porque há dois poderes de contenção — o Legislativo e o Judiciário. Presidentes que tentaram destruir jornais e redes de televisão sempre se deram mal. Alguns deles, talvez por não se interessarem por história, costumam pensar que o presente é permanente, quando é tão provisório quanto o poder deles.
A Globo deve moderar-se ante um presidente imoderado? Sim, toda a imprensa precisa ser mais cautelosa. Jair Bolsonaro faz um governo ruim? Não faz. Se há ministros barulhentos, inadequados para a gestão pública, há ministros que trabalham para consertar aquilo que, durante anos, outros gestores bagunçaram. Os ministros Paulo Guedes, da Economia, Tereza Cristina, da Agricultura, Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura, e Sergio Fernando Moro, da Justiça, são um governo à parte. Eles estão agindo e mantêm o governo de pé. Enquanto Bolsonaro e os filhos fazem declarações estapafúrdias, o quarteto governa, e muito bem. Há, na imprensa, uma certa má vontade em admitir que o governo, apesar de tudo, vai relativamente bem. Problemas como o desemprego, de matiz mais estrutural — resultante de uma economia que não foi produzida pelo governo de Bolsonaro —, não têm como serem corrigidos rapidamente. Quando a recessão se instala na economia tende a se instalar também no inconsciente coletivo. Na prática, todos querem a recuperação da economia, mas temem-se investir e quebrar. No momento, a economia está se recuperando, aos trancos e barrancos, mas a mensagem psíquica, compartilhada por todos, é que as coisas vão muito mal — o que não é procedente. Mas dizer isto para um desempregado (e sua família) é pedir xingamento como retribuição. Mais do que Bolsonaro, homem inteligente (néscio é quem pensa que é bobo) mas com visão limitada do que é o Estado — daí as ameaças ao estilo “o Estado sou eu”, como se fosse um Luis XIV da plebe —, Paulo Guedes tem plena consciência do que são o Estado e o mercado. Por isso, às vezes silenciosamente, vem trabalhando para enxugar o Estado e torná-lo menos dispendioso para a sociedade. Um Estado mais enxuto, retomando sua capacidade de investimentos, terá como construir hospitais, escolas e recuperar rodovias e portos. Por ser monetarista, Paulo Guedes às vezes é percebido como “insensível” ao social. Não é. Observe-se que medidas para colocar dinheiro (no conjunto não é pouco) nas mãos das pessoas — por exemplo, grana do FGTS — é uma maneira de reduzir a recessão, ou seja, de descomprimir o consumo. São soluções “micro”, mas que, às vezes, contribuem para fortalecer a economia no geral.

A imprensa precisa — deve — examinar o governo para além das declarações estrondosas e, por vezes, estrambóticas do presidente Bolsonaro ou de seus filhos, que tentam atuar como primeiros-ministros, ministros sem pasta ou “seguranças ideológicos”. Uma distensão entre Bolsonaro e a imprensa será positiva para o país. Ao governo do presidente falta interlocutores respeitáveis, daqueles que sabem abrir canais. Auxiliares que agem como torcedores e militantes, que não sabem ponderar e abrir portas — nunca se viu um governo arrombar tantas portas abertas quanto o de Bolsonaro —, contribuem menos do que se imagina. Os generais Augusto Heleno, um dos intelectuais do Exército, e Eduardo Villas Bôas — democratas incontornáveis — começaram como conselheiros-moderadores, mas, surpreendentemente, radicalizaram. Villas Bôas, figura exemplar do Exército, não tem saúde. Augusto Heleno precisa dizer a Bolsonaro o que ele não quer mas necessita ouvir. Bolsonaro precisa, neste momento, de auxiliares que tenham coragem de lhe dizer “não”. Os que dizem “sim” o tempo inteiro estão a prejudicá-lo. São meros aduladores — os que mais prejudicam governos. Alguém precisa dizer, com todas letras: “Presidente, cancelar assinatura da ‘Folha de S. Paulo’ é de um primarismo atroz. Tanto que o número de assinantes do jornal vai aumentar”. Deixar de assinar a “Folha”, por vingança, é um equívoco — e, mais uma vez, o presidente está avaliando que é “dono” do Estado, quando é um representante provisório dos brasileiros. E passará — como passaram Floriano Peixoto, Getúlio Vargas, Costa e Silva e Emilio Garrastazu Médici. Ele quer passar à história como o presidente que perseguiu a imprensa? Pai da sólida democracia dos Estados Unidos, nação mais admirada pelos Bolsonaro, o presidente Thomas Jefferson disse: “Se pudesse decidir se devemos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, eu não vacilaria um instante em preferir o último”.
Observe-se que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cumprimentou o peronista Alberto Fernández por ter sido eleito presidente da Argentina. Bolsonaro, pelo contrário, disse que não irá à posse. Trump age como estadista e sabe que a Argentina é um parceiro comercial e, ao mesmo tempo, o peronismo, se é de esquerda — há quem aposte que se trate de um populismo de centro-esquerda (Juan Domingo Perón chegou apoiar a direitista Alemanha de Adolf Hitler) —, não é comunista (os comunistas sempre foram críticos do peronismo). A Argentina interessa comercialmente ao Brasil e vice-versa: são os dois países mais ricos da América do Sul. São aliados — comerciais — incontornáveis. Independentemente dos nomes e ideologias dos presidentes das duas nações. Os negócios guardam autonomia em relação aos laços políticos.
Eduardo Bolsonaro e a questão do AI-5

O Ato Institucional nº 5 — AI-5 — era, em 1968, uma micro Constituição e, em termos políticos, um golpe dentro do golpe. Quer dizer, a prevalência total da linha dura dos militares — sem espaço para nenhuma abertura. Porque, se já estavam no comando, os militares que apoiavam o presidente Costa e Silva radicalizaram-se.
Em 1968, havia três projetos políticos em jogo. O primeiro, o da Arena — com militares e civis governistas. Era o projeto que estava no governo. O segundo era o do MDB — que, embora sem chance de chegar ao poder presidencial, contestava a ditadura, mas dentro dos espaços mínimos de democracia. O terceiro projeto era da esquerda radical. Vários grupos de esquerda, como a Ação Libertadora Nacional (ALN) de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, queriam arrancar os militares do poder, derrubando a ditadura, com o objetivo de instalar outra ditadura, a comunista. Os tempos eram de Guerra Fria — de dominância de uma política bilateral: ou se era a favor do capitalismo (representado pelos Estados Unidos) ou se era a favor do comunismo (representado pela União Soviética). Não era tempo de nuance, de multilateralismo. Quem não era amigo era inimigo.
Para combater a radicalização das esquerdas, que promoviam a guerrilha urbana — e se preparavam para a guerrilha rural —, inclusive recebendo dinheiro e treinamento de Cuba (admitiu Leonel Brizola) e até da Coreia do Norte (admitiu Carlos Eugênio Paz, o Clemente da ALN), os militares radicalizaram e produziram o AI-5. A esquerda foi destroçada, de 1968 a 1974 — quando acabou a Guerrilha do Araguaia, entre Goiás (hoje Tocantins) e o Pará —, mas as forças democráticas, instaladas no MDB, também foram amplamente atacadas, com cassações e prisões.
No momento, a esquerda patropi não se prepara para a guerrilha e, mesmo no ambiente parlamentar, está se comportando de maneira moderada. Portanto, não há clima algum para a recriação do AI-5 — e, evidentemente, o país vive, há 34 anos, sob regime democrático. Numa entrevista à jornalista Leda Nagle, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, disse que, no caso de confrontação, o governo poderia adotar um novo AI-5. Depois, pediu desculpas e disse que foi mal interpretado. Mas, em 2018, o mesmo político havia dito: “Cara, se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo, não”. Só ditaduras fecham o Supremo Tribunal Federal. Nem os militares, com o AI-5, fecharam o STF. Mesmo com as desculpas, o histórico de Eduardo Bolsonaro não ajuda. Fica-se com a impressão de que, sim, quer a volta da ditadura — e da mais cruenta, a do AI-5.
Militares da ativa ouvidos pelo jornal “O Globo” — os nomes foram mantidos no anonimato, para evitar retaliação — desaprovaram as declarações de Eduardo Bolsonaro. Eles não são favoráveis ao AI-5 e, portanto, à ditadura. O presidente Bolsonaro, ainda que de maneira relativamente oblíqua — porque parece pensar como o filho —, desautorizou a fala de vivandeira do rebento.
Vale lembrar que, quando perguntado por que havia “matado” a ditadura civil-militar, o general-presidente Ernesto Geisel não tergiversou: “Porque [a ditadura] era uma bagunça”. Mais vale o caos da democracia do que a ordem — obtida à força — de uma ditadura. Juscelino Kubitschek, vaiado certa vez, disse que feliz era o país no qual estudantes podiam vaiar seu presidente. Noutras palavras, ele estava sugerindo: nada é melhor do que a democracia.