Entre 1969 e 1974, no governo do presidente-general Emilio Garrastazu Médici, o mais cruento da ditadura civil-militar, o ministro da Fazenda, o economista Antônio Delfim Netto, sugeriu que primeiro era preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo.

Os aliados aplaudiram a “sacada” de Delfim Netto. Se o bolo “do” Estado era “magro” dividi-lo com todos, sobretudo com os pobres, era uma impossibilidade. Porque não daria para todos e ainda esvaziaria os cofres do Erário. Com o bolo no ponto certo, gigante — e o país estava crescendo em níveis chineses, acima de 10% ao ano —, aí, sim, seria possível compartilhá-lo com a maioria e ainda sobraria parte para o investimento público.

O MDB, que reunia políticos de centro, de esquerda e de direita, criticou duramente a ideia do superpoderoso ministro, espécie de eminência parda do governo. A tese da oposição era, em resumo, a seguinte: é preciso repartir o bolo no momento em que a economia está crescendo, até porque saciar a fome das pessoas é uma questão de emergência. Apostava-se que era imperativo fundir crescimento e desenvolvimento (a repartição dos frutos do crescimento, digamos).

Delfim Netto: o poderoso ministro da Fazenda de Médici | Foto: Reprodução

Quem estava certo: Delfim Netto, doutor da Universidade de São Paulo, ou os economistas das oposições?

Num ponto, ao menos, o ministro da Fazenda tinha razão: não há como distribuir tudo aquilo que o Estado acumulou para resolver problemas sociais. Há pendências sociais históricas (o país conviveu com o absurdo da escravidão nos períodos colonial e imperial) que não podem ser resolvidas em quatro ou cinco anos. Mas claro que os homens de Estado não podem assistir paralisados a ampliação da miserabilidade na sociedade. Porque, se nada for feito, o mercado sozinho, ao contrário do que pensam economistas liberais ortodoxos, não vai reduzir a pobreza. A intervenção do Estado, com políticas públicas — de compensação social e qualificação profissional, criando uma inclusão social de maneira ampla, inclusive com a radicalização do incentivo à educação pública —, é crucial para criar uma sociedade menos desigual.

Porém, também cabe ao Estado incentivar o mercado, amparando os agentes dos setores produtivos que impulsionam o crescimento econômico. Se isto não ocorrer, a arrecadação do setor público tende a cair, consequentemente terá menos recursos para investir no social. Aí não se terá nem crescimento nem desenvolvimento.

Entretanto, estão corretos aqueles que postulam que, no momento mesmo do crescimento, é preciso incentivar o desenvolvimento, ou seja, repartir os frutos da expansão com toda a sociedade.

Por fim, o governo pilotado por Emilio Médici e Delfim Netto não repartiu o “bolo” depois que ele cresceu.

Mais social e menos economia

Mas, 48 anos depois, na campanha eleitoral para presidente da República, o que mais se comenta é: os dois candidatos, Jair Bolsonaro, do PL, e Lula da Silva, do PT, “não” estão discutindo economia.

Bolsonaro criticou Lula: o petista até agora não disse quem será o ministro da Economia. Será Henrique Meirelles, um monetarista, ou um desenvolvimentista, ao estilo de Fernando Haddad ou Guido Mantega? De fato, é preciso saber o que o petista, se eleito, pretende fazer em termos de economia. Por ter experiência, ele sabe que não pode cometer “maluquices”. Mesmo sendo de esquerda, governará um país que é e continuará sendo capitalista.

Jair Bolsonaro e Delfim Netto: é preciso radicalizar o investimento no social | Foto: Reprodução

Até a imprensa embarcou na tese de que o fundamental é discutir economia — noutras palavras, crescimento. E, em parte, tem razão. O crescimento econômico deve ser discutido mesmo. Porque, se o país não cresce, há mais desemprego e os pobres ficam ainda mais pobres.

No entanto, se há milhões de pobres — e a pobreza deixou de recuar —, a imprensa e a sociedade não devem discutir apenas economia. É preciso colocar o social no centro do debate.

O social no sentido mais amplo possível. Qualquer que seja o presidente eleito no dia 30 deste mês, daqui a sete dias, será preciso criar, a sério, uma rede de proteção social ampliada e conectada. Nada próximo de socialismo, e sim da socialdemocracia europeia.

Manter programas de assistência social é fundamental, porque há pessoas passando fome, vivendo à míngua nas ruas de todo o país (são tantas que há até uma certa “naturalização” da miséria; há os que dão moedas e há os que sobem os vidros dos automóveis, assustados). Se não fosse o Auxílio Brasil — assim como o Bolsa Família nos governos do PT —, o grau de miséria ainda seria mais alto.

Porém, se minoram o sofrimento, ao aplacar a fome, os programas meramente assistenciais “mantêm” a miséria, por assim dizer. Aqueles que recebem assistência passam a se alimentar — e, insistamos, isto é seminal —, mas continuam paupérrimos, à margem.

Portanto, é fundamental manter os programas sociais (e nada de dizer que é preciso dar primeiro a vara de pescar, e não, de cara, o peixe; para quem passa fome, não se deve dizer isto — o humano e decente é passar logo comida ou recursos, como os do Auxílio Brasil, para que comprem alimentos para a família). Mas é preciso ir além.

Simone Tebet: foco na Educação | Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Os pobres precisam ser qualificados para competirem no mercado de trabalho. Sem formação técnica alguma restam a eles o subemprego no mercado informal. Mas a grande “qualificação” — para a vida e para o mercado — pode se originar de uma radicalização da melhoria da educação pública, com salários decentes para professores e estruturas adequadas para os alunos.

O preparo dos alunos pobres, desde o início de sua formação escolar, pode levá-los a se formar, em escolas técnicas ou em universidades, e, mais tarde, ao mercado de trabalho em igualdades de condições com estudantes das classes média e alta. A história de que é preciso ter mérito, conquistar pelo mérito, é bonita como uma espécie de ficção. Só se pode falar em primado do mérito quando os alunos pobres e ricos tiverem estudado em escolas semelhantes.

A escola pública de qualidade, oferecendo mais tempo de aprendizagem aos alunos pobres, é uma forma ampla de inclusão social. Pode até não ser suficiente, porque os estudantes ricos e de classe média têm oportunidades para além da escola. Mas é importante.

Francis Fukuyama, mestre de Stanford: capitalismo da socialdemocracia é mais sólido | Foto: Divulgação

As cotas raciais receberam críticas de políticos liberais. Mas um país que manteve os negros sob escravidão por tantos anos tem o dever de integrá-los via cotas. Porque senão eles vão ficar para trás, sem oportunidade de disputar os melhores empregos públicos e do mercado privado.

Na semana passada, “O Globo” publicou uma reportagem informando que, se Lula da Silva for eleito presidente, a senadora Simone Tebet, do MDB, pode ser nomeada ministra da Agricultura. Porque ela milita politicamente no Mato Grosso, Estado onde o agronegócio é forte.

De cara, Simone Tebet teria sugerido que prefere o Ministério da Educação. E tem razão. Num governo com preocupações sociais sérias, com foco na inclusão social real, trata-se do ministério mais forte. E uma ministra empoderada — que está se comportando como verdadeira “vice” de Lula da Silva —, como a senadora, poderá fazer muito pelos pobres e pela classe média, que está voltando às escolas públicas (e não só por empobrecimento, e sim, sobretudo, porque a rede pública de ensino tem melhorado em vários Estados, como em Goiás). O Fundeb, sucessor do Fundef, foi e é uma revolução na Educação.

Se a rede de proteção aos alunos tem sido ampliada, e de maneira correta, é preciso criar também uma rede de proteção para os professores, que precisam de melhores salários e condições de trabalho mais modernas.

Paulo Guedes e Henrique Meirelles: liberais | Foto: Reprodução

A força eleitoral de Lula da Silva no Nordeste tem a ver, em larga escala, com a Bolsa Família, com a ideia de que os governos do PT cuidavam de gente — assim como o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, está fazendo (talvez seja o político liberal do país que mais investe em educação e no social).

Se for eleito, Bolsonaro certamente vai mudar sua perspectiva sobre o Nordeste, notadamente a respeito dos pobres. O presidente é mais preocupado com o social do que seu ministro da Economia, Paulo Guedes — que é “filiado” à corrente de Delfim Netto, a dos monetaristas radicais. Ou seja, mais mercado e menos social. Porque, para o ministro, mercado forte é que cria um social mais robusto, quer dizer, mais empregos, portanto menos pobreza.

Na prática, não é bem assim. Por isso o filósofo liberal Francis Fukuyama, pesquisador de Stanford, diz que investir no social, com a criação de uma sociedade socialdemocrata, é crucial para o sucesso do capitalismo. Portanto, mercado sim, mas sem descurar o social. A sensibilidade política de Bolsonaro, se for reeleito, certamente falará mais alto do que o pragmatismo exacerbado de Paulo Guedes. Assim como a sensibilidade de Lula da Silva, se eleito, falará mais alto do que o tecnicismo-monetarista de Henrique Meirelles (cotado para ministro da Fazenda).