Os candidatos da direita e da esquerda estão polarizando, se convocando para a disputa, e um de seus objetivos é esvaziar e neutralizar o centro

Lula da Silva, José Dirceu e Antônio Palocci (os três já foram presos): será possível o petista se livrar dos fantasmas do passado? | Foto: Reprodução

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é um político maior do que, conflagrado por extrema polarização, o presente avalia. Examinado com crueza, a partir de que houve corrupção nos governos do PT — ele próprio parece ter se locupletado, assim como possivelmente dois filhos —, o petista fica menor. Avaliado pela média, o conjunto da obra, e não pelos extremos — convém lembrar que Getúlio Vargas, que se suicidou em agosto de 1954, era apontado como líder de uma República da Lama no Catete e hoje a história o matiza e o aponta como um estadista importante —, o indivíduo que, tendo nascido em Garanhuns, em Pernambuco, se fez em São Paulo, a meca de tantos brasileiros, notadamente dos nordestinos pobres, e chegou à Presidência da República.

Assim como Barack Obama, o ex-presidente negro dos Estados Unidos, Lula da Silva, por ter sido operário e por ser um homem de origem pobre, um retirante do Nordeste, é uma figura emblemática. De figuras exemplares, que devem ser reverberantes, não se perdoam deslizes — ainda mais se se tratar de corrupção. Se Obama tivesse se envolvido em falcatruas, ainda que de menor dimensão, a ex-senadora negra Kamala Harris, uma política notável, possivelmente não teria sido guindada a vice-presidente de Joe Biden. Ela provavelmente será a sucessora do presidente do Partido Democrata. No governo, lidando com empresários — os donos do poder — que ganhavam fortunas, parece que, a partir de determinado momento, o petista entendeu que poderia colher ao menos algumas “migalhas”. No início, a corrupção era de fato para manter o PT no poder, em especial em nível federal, mas, como os meios às vezes corrompem os fins, petistas acabaram por se locupletarem.

Sob a gestão dos reds socialdemocratas, ninguém ganhou tanto dinheiro quanto determinados grupos empresariais — como Odebrecht (que começou a ser anabolizada no governo do presidente Ernesto Geisel, na ditadura), OAS e Andrade Gutierrez. Daí o propinoduto correu solto para integrantes do PT, do MDB, do PTB, do PL e do Progressistas. Os donos do poder político arranjavam os “negócios” e os donos do poder econômico-financeiro azeitavam-nos e davam parte dos “lucros” aos primeiros.

Lula da Silva: novo discurso é articulado e lembra o de 2002 | Foto: Reprodução

Pode parecer cinismo, mas se trata de realismo, sugerir que Lula da Silva não é o que há de pior — apesar de ter sujado as mãos (e políticos-referenciais não podem fazer isto porque, insistamos, não são perdoados) — na política do Brasil. Primeiro, a preocupação de seu governo com o social era realmente genuína e o objetivo não era meramente controlar politicamente o eleitorado pobre. O combate à pobreza faz mesmo parte da alma do petismo. Não se trata de jogo político. Segundo, apesar de certos arroubos autoritários — derivados mais de aliados esquerdistas, como Franklin Martins —, Lula da Silva nunca ousou atentar contra a democracia. Terceiro, ao se mostrar realista como gestor, convocando o monetarista Henrique Meirelles para dirigir o Banco Central e colocando Antônio Palocci no Ministério da Fazenda (hoje, é malvisto, mas foi eficiente), provou que não era dado a rupturas bruscas. Ao seguir as bases do Plano Real, dando sequência à política econômica traçada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e pelo ex-ministro Pedro Malan, mostrou estadismo e, deste modo, o país cresceu.

Então, na média, evitando os extremos, Lula da Silva pode ser incluído entre os grandes presidentes brasileiros. Acima de Jânio Quadros (o político que “possibilitou” o golpe de 1964 e, portanto, a ditadura civil-militar), João Goulart (a quem faltou habilidade para evitar o golpe), Arthur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici (que tornou a ditadura mais cruenta), João Figueiredo, José Sarney, Fernando Collor e Dilma Rousseff, talvez empatado com Fernando Henrique Cardoso e bem atrás de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek.

Agora, se as pessoas querem santos — e os santos nunca foram tão católicos assim (basta verificar a história do notável Santo Agostinho) —, aí não tem jeito: Lula da Silva será tratado como uma excrescência, o que não é. Na verdade, tem defeitos, até graves — ao chafurdar-se na corrupção (e vale insistir: o ministro Edson Fachin não “arquivou” os processos contra Lula — tão-somente transferiu-os de Curitiba para Brasília e restituiu-lhe os direitos políticos) —, mas é muito superior à média dos políticos atuais. Curiosa ou sintomaticamente, os eleitores percebem em Lula da Silva um político referencial, tanto que permanece como o principal adversário do presidente Jair Bolsonaro.

O que se fez acima não é uma defesa de Lula da Silva, mas uma tentativa de situá-lo historicamente, até para entender sua força político-eleitoral no presente. Posta a questão de seu lugar na história, se examinará a seguir o embate de 2022, o que se está desenhando.

Conservantismo e o presidente

O presidente Jair Bolsonaro é um gestor abúlico, ou seja, indiferente às dores dos brasileiros. Comporta-se mais como capitão do que como gestor dos interesses de todos os seus patrícios. Como alguns políticos da direita, parece perceber conspirações a torto e direito — a esquerda estaria infiltrada em todos os lugares, menos nas Forças Armadas, daí tantos militares ocupando cargos no governo. No caso do combate à pandemia do novo coronavírus, agiu de maneira equivocada desde o início. Uma das causas possíveis é que os que interpretam e, também, combatem a Covid-19 são oriundos da Universidade — portanto, em tese, são esquerdistas que querem “derrubá-lo”. Na verdade, a comunidade científica se muniu de extrema boa vontade, colocando-se à disposição para colaborar — e tem colaborado, de maneira gratuita, no esclarecimento da população — um papel, diga-se, iluminista. Drauzio Varella, Cristiana Toscano, Átila Iamarino, Boaventura Braz, Pedro Hallal, Christiane Kobal, Natália Pasternak, Thiago Rangel, Denise Garrett, Margareth Dalcolmo, Miguel Nicolelis, José Alexandre Felizola, entre outros, merecem o aplauso público.

Jair Bolsonaro: o presidente da República passa a impressão de que não se importa com a vida das pessoas| Foto: Reprodução

Não são a Covid-19 nem os acadêmicos de esquerda — vários não são de esquerda, mas são comprometidos com a vida (e não com a “cultura da morte”) — e nem Lula da Silva que podem “derrubar” Bolsonaro. O principal inimigo do presidente é um político de prenome composto: Jair Messias. Por não entender, por não querer entender, o que se está passando no país — com quase 300 mil mortos em decorrência de complicações decorrentes da Covid-19 — é que o chefe do Executivo está perdendo sintonia com a sociedade. Vai chegar o momento em que nem seus aliados terão condições de defendê-lo. Aliás, neste momento, se trata de um presidente indefensável. Do cemitério, 273 mil pessoas, mesmo mortas, estão “dizendo”: “Por que, Bolsonaro, não quis trabalhar para nos salvar?” O presidente não poderia salvar todos — não é deus nem mágico. Mas, se tivesse adotado uma política de saúde eficiente, aproveitando-se da alta qualidade do SUS, poderia ter contribuído para evitar milhares de mortes. O mínimo que se pode dizer que é se trata de um gestor negligente e, como se disse atrás, abúlico.

Ao se postar contra o uso de máscaras, ao incentivar o “tratamento precoce” com medicamentos inadequados (pessoas que tomaram cloroquina e ivermectina podem ter se descuidado, o que possivelmente contribuiu para aumentar o índice de contaminação) e ao criticar o isolamento social, Bolsonaro prestou um desserviço à vida. O presidente de tornou um mensageiro da morte, um agente proativo da Velha Senhora. Como havia apostado numa gripezinha — que pode acabar matando mais de 500 mil brasileiros —, e continuou apostando, mesmo depois que se provou a alta letalidade da doença (já matou mais de 2,6 milhões de pessoas em todo o mundo), o presidente, que se considera “dono” do governo e do Estado, não apostou num programa de imunização em larga escala. Quando “acordou” (se é que não permanece letárgico) para a necessidade de vacinar a população, provavelmente sob pressão dos militares — que finalmente entenderam que se vive sob uma guerra (calcula-se que na Guerra de Canudos morreram 25 mil pessoas e morreram cerca de 204 mil civis na Guerra ao Terror no Iraque, a partir de 2001) —, outros países, como Estados Unidos, Inglaterra e Israel, haviam saído na frente. Ao não perceber que um problema de saúde pública não pode ser tratado como uma questão ideológica, Bolsonaro contribuiu para retardar a vacinação e, consequentemente, para aumentar o número de mortes. Portanto, não dá para dizer que não é responsável pela maioria das mortes.

Entretanto, apesar do desgaste e das críticas contundentes na imprensa brasileira e internacional, Bolsonaro permanece com uma popularidade no mínimo razoável. Levantamento do Paraná Pesquisas mostra que é o preferido de 32% dos eleitores — contra 18% de Lula da Silva (é provável que o petista, com a liberação de sua candidatura, cresça um pouco mais). O dado indica que há um eleitor profundamente fiel ao presidente e, provavelmente, ao seu estilo de governar. Há uma identificação conservadora — ideológica ou não — entre Bolsonaro e um eleitorado que não se sente representado por nenhum partido ou político. Não se trata tão-somente do eleitorado evangélico, mas este tem um peso crucial (levantamento do instituto Inteligência, Pesquisa e Consultoria, Ipec, indica que 53% dos eleitores evangélicos cogitam bancar a reeleição do presidente; frise-se que 42% deles disseram que não o apoiam). Há também um eleitorado que não quer a volta do PT, mas, não acreditando na viabilidade de um postulante do centro, prefere seguir o político da direita.

Sobre Bolsonaro, no caso de derrota eleitoral, daqui a um ano, seis meses e 20 dias, há um outro ponto a considerar. O presidente pode esmagar a direita no Brasil. Porque, a partir de agora, a direita está sendo associada à barbárie, à falta de civilidade. Por mais que, na prática, não tenha atentado contra a democracia. Aliados do presidente, inclusive um filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, pregaram o fechamento do Supremo Tribunal Federal (“basta um cabo e um soldado”) e a volta do AI-5 (que simboliza uma ditadura cruenta e sem limites). A direita patropi ganhou a cara de Bolsonaro. Não é uma “cara” positiva — diga-se.

Lula da Silva e Jair Bolsonaro
Jair Bolsonaro e Lula da Silva: um está “exigindo” o outro | Fotos: Reproduções

Há outro aspecto a se examinar. Os candidatos da direita, Bolsonaro (torce para o Palmeiras), e da esquerda, Lula da Silva (torce pelo Corinthians), começaram a partida como se apenas dois times estivessem disputando o Campeonato Nacional da Política para 2022. O objetivo deles, mais implícito do que explícito, é exatamente polarizarem, reduzindo a força e o impacto de novos nomes. Os dois postulantes são os “velhos” que não querem permitir o nascimento do “novo”. Daí tencionam, desde já e irmanados, para disputarem o pleito, habilmente antecipado. Bolsonaro é uma espécie de cabo eleitoral de Lula da Silva e Lula da Silva é uma espécie de cabo eleitoral de Bolsonaro. O lançamento do meio-de-campo para o ataque visa marcar um gol de placa: impedir o surgimento de um candidato de centro que seja tão visível quanto consistente. No caso do petista, visa-se também travar a ascensão de outros políticos da esquerda, como Ciro Gomes, do PDT, e Marina Silva, da Rede.

O centro pode bancar João Doria, do PSDB, governador de São Paulo, Eduardo Leite, do PSDB, governador do Rio Grande do Sul (que tem incomodado Bolsonaro e os bolsonaro-boys), Luciano Huck (sem partido) ou Sergio Moro (sem partido; trata-se de um nome que, além do centro, pode atrair parte da direita não mais bolsonarista). O problema do centro é, em geral, o fato de que, em disputas polarizadas — hards —, costuma não ser ouvido (e visto) pelos eleitores. Tradicionalmente, o centro apresenta um discurso moderado, mas, com o país conflagrado, não costuma atrair os eleitores. Os Estados Unidos optaram por um moderado, Joe Biden. Não se sabe se no Brasil há abertura para um candidato de perfil semelhante ou para um outsider (como Huck ou Moro).