Barbárie da direita pode acabar dando Nobel da Paz ao padre Júlio Lancellotti

07 janeiro 2024 às 00h01

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“Porque a noite chegou e os bárbaros não vieram./ E pessoas recém-vindas da zona fronteiriça/ murmuram que não há mais bárbaros./ E nós, como vamos passar sem os bárbaros?” — Trecho do poema “À Espera dos Bárbaros”, de Konstantinos Kaváfis
A escravidão é uma das maiores barbáries da história do Brasil (a maldição americana, sugeriu o escritor William Faulkner, Nobel de Literatura). Fortunas foram feitas com base no tráfico negreiro e com o comércio interno de homens e mulheres negros. Um banqueiro americano teria dito que poderia justificar sua fortuna, mas não o primeiro milhão. Uma história dos milionários de São Paulo e Minas Gerais, com patrimônio formatado até o século 19, certamente mostrará que muito do que se amealhou tem a ver com a escravatura.
Comemora-se uma história de empresários “vitoriosos”, depois da Abolição da Escravidão (1888) e da Proclamação da República (1889). Milionários sugerem que suas fortunas derivam de suas qualidades pessoais admiráveis (são os self-made men). Em alguns casos, é verdadeiro, mas, noutros, é pura história da carochinha.
Parte da riqueza de potentados paulistas, mineiros e nordestinos, entre outros, tem origem na exploração brutal — genocida — dos escravos, ou seja, pessoas negras. Não surgiu do, digamos, “nada”. A acumulação primitiva do moderno capital patropi tem origem — em parte — na barbárie da escravidão.

Entretanto, se os que negociaram com escravos ou exploravam seu trabalho se tornaram empresários vencedores, admirados como capitalistas pioneiros — “limpando (se isto é mesmo possível) sua contravenção histórica —, os negros que sustentaram a economia do país, durante séculos, depois da Abolição, há 135 anos, foram abandonados pelos antigos escravagistas e, também, pelo Estado.
Sem o apoio do Estado, que não criou uma política de inclusão social dos negros — que passaram de escravos a abandonados, deixados ao deus-dará (quer dizer, trata-se de um crime continuado) —, restou a eles se instalarem em lugares que, na época, ninguém queria. Nasciam, então, as favelas — que hoje abrigam negros, pardos e brancos pobres.
O Estado brasileiro foi omisso em relação aos ex-escravizados assim como é omisso em relação aos pobres atuais — muitos deles negros e pardos. (Frise-se: ainda há escravos no Brasil, o de 2024, em negócios de empreendedores ditos modernos.)
Os governos do PSDB, com Fernando Henrique Cardoso, e do PT, com Lula da Silva e Dilma Rousseff, cuidaram mais do social. Há políticas “compensatórias” com o objetivo de integrar os negros, quer dizer, os pobres. Mas ainda não são satisfatórias — ao contrário do que pregam os defensores da “teoria” do mérito, que são contrários às cotas raciais e sociais.
Qual terá mais mérito: a pessoa que estudou toda a vida numa escola particular de alta qualidade ou a pessoa que sempre estudou numa escola pública de baixa ou média qualidade? A resposta é óbvia. Então, o discurso do mérito, numa sociedade tão desigual quanto a brasileira, é de um cinismo atroz. Quem o defende deveria ficar ao menos um pouco corado, mas não fica.
Cracolândia, saúde pública e empatia
Discutamos agora a Cracolândia — com C maiúsculo. Porque, a rigor, se trata de uma cidade de excluídos — digamos uma favela móvel que incomoda a sociedade, sobretudo os “bem-nascidos”.

Há quem acredite que aqueles que “habitam” a Cracolândia, em São Paulo, deveriam ser “mortos”, excluídos de vez da sociedade. Podem até não dizer isto publicamente, mas em geral é o que alguns, talvez muitos, pensam do que se considera como uma espécie de “zumbis urbanos”.
Os moradores da Cracolândia — digamos, os cracoleiros ou craqueiros — consomem drogas ilícitas e, possivelmente, lícitas. Há, misturados aos drogaditos, traficantes de cocaína, crack e maconha. Aqui e ali, a polícia prende alguns, mas surgem outros. Assim, o tráfico e o consumo continuam.
Os usuários de droga são caso de polícia? Às vezes, sim, notadamente quando agridem ou roubam indivíduos, o que é crime e assim deve ser tratado. Porém, no geral, são mais um caso de saúde pública — e como tal devem ser vistos e cuidados.
Não é fácil resolver o “problema” da Cracolândia — e das cracolândias menores, quiçá invisíveis, de outros Estados. O Estado precisa criar políticas públicas (que incluam a possibilidade de empregos), com o apoio de médicos (psiquiatras e outros), psicólogos, advogados, assistentes sociais, religiosos (como o abnegado padre Júlio Lancellotti), para ao menos tentar reduzir o sofrimento (que é envolvido por um certo prazer — questão que deve ser examinada com atenção) dos usuários de drogas.
Políticas para tratar do assunto não podem ser violentas, tendo a polícia na primeira fila do “front”. Têm de ser altamente pacíficas e empáticas. Precisa-se mais de diplomacia — de paciência e desvelo infinitos — do que de força.
Portugal adotou uma política de tratamento de usuários de drogas que tem funcionado, porque conta com a anuência deles. Não é fácil — muitos ainda continuarão a usar drogas —, mas é melhor do que nada fazer.
Padre Júlio Lancellotti e os deserdados
A sociedade brasileira, como muitas outras, é excludente. Entre os excluídos, há aqueles que ninguém quer. Os “integrantes” da Cracolândia são os exemplos mais evidentes.
Como o Estado é omisso, ou, quando tenta não ser, trata a Cracolândia como problema meramente de polícia, o fato é que os habitantes da “favela móvel” estão no mundo — um mundo complexo e que trata mal os supostos desviantes — por si mesmos, sem proteção social substancial.
Mas, diria o escritor ucraniano Nicolai Gógol, ainda há almas vivas que cuidam das almas quase mortas — talvez seja assim que muitos observam o fenômeno —, e sem nada ganhar com isso. Pelo contrário, recebem, por vezes, ataques públicos.
O padre Júlio Renato Lancellotti (filho dos descendentes de imigrantes italianos Milton Fagundes Lancellotti e Wilma Ferrari) é um homem digno e preocupado com aqueles (incluindo outros pobres em situação de rua, e não apenas os usuários de drogas) que foram abandonados por todos — inclusive pelo Estado. Trata-se de um homem de fé, um verdadeiro seguidor de Jesus Cristo. Mas não é um teórico. É prático, cuida do real e não adere aos que fazem promessas vãs em campanhas eleitorais. Não está preocupado com o “outubro” dos políticos, e sim com o cotidiano das pessoas nos 365 dias do ano.
Padre Júlio não vê os “habitantes” da Cracolândia como “entulho” a ser “varrido” ou, como alguns certamente gostariam, “escondidos”.
Com sua obstinação habitual, além de sua boa vontade, padre Júlio cuida daqueles que ninguém quer cuidar — os, digamos, craqueiros, seres humanos que, por variados motivos, deixaram de lado a vida aprovada pela sociedade e passaram a morar nas ruas, usando vários tipos de drogas, as que estiverem disponíveis.
Se ninguém quer falar com (os) e pelos usuários de drogas — quando abordadas, as pessoas correm ou saem de fininho, temendo agressões ou assaltos (o que pode ocorrer mesmo) — e outros pobres em situação de rua (mendigos, pessoas com transtornos mentais), padre Júlio os ouve. Escuta seus dramas, suas tristezas e, quem sabe, seus sonhos. O religioso tem uma boa escuta, digamos. Por isso ouve, com atenção, as vozes dos que estão, do ponto de vista da sociedade, no fundo do poço.
Homem que sabe das coisas, dada sua vivência com as contradições da sociedade patropi, padre Júlio parece avaliar que os usuários de drogas, os da Cracolândia e de outros lugares, e os pobres em geral precisam de conforto espiritual — de uma voz que “acaricie” suas almas talvez não inteiramente perdidas.
Integrante da milenar Igreja Católica — religioso de Deus —, padre Júlio não é nenhum nefelibata. Portanto, sabe que os usuários de drogas também precisam de comida, vestimentas e, eventualmente, assistência médica (vacinação contra a Covid, por exemplo). Necessitam manter-se em pé, com o mínimo de dignidade.
Então, contra a vontade e a opinião de muitos, o padre Júlio acerca-se desses pobres — deserdados de tudo — e oferece a eles alguma dignidade. Claro que outras pessoas altruístas o ajudam. A situação da Cracolândia, e não só dela, só não é pior, possivelmente, por causa de pessoas como o religioso.
Não é fácil lidar com usuários de drogas, sobretudo em situações-limite, com é o caso dos que moram nas ruas de São Paulo. Entretanto, mesmo tendo 75 anos, o padre Júlio não desiste da missão que se impôs, ou seja, de cuidar dos pobríssimos, daqueles que não têm nada, exceto a mal-ajambrada roupa do corpo, por vezes um pouco de droga e um lugarzinho no chão quente ou frio de uma rua para se sentar ou deitar.
A direita e as eleições de outubro
Se o Padre Júlio assiste aqueles que poucos querem ajudar — a maioria não quer nem ver, por motivo de insensibilidade ou de segurança —, por que alguns afortunados o atacam e até querem constituir uma CPI para investigá-lo?

Responsável pela proposição de uma CPI, o vereador Rubinho Nunes (União Brasil) planeja investigar o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto — a Bompar (entidade filantrópica ligada à Igreja Católica) — e o coletivo Craco Resiste (denuncia a violência policial na área da Cracolândia). Mas o alvo principal é o padre Júlio, que tem sido criticado pelo parlamentar nas redes sociais.
Como se sabe, este ano, daqui a oito meses e alguns dias, o País terá eleição para prefeito e vereador em todas as cidades. Então, políticos ficam alvoraçados em busca do apoio de eleitores. Como a Cracolândia é malvista pela sociedade — que tem suas razões, dada a violência nas ruas —, aqueles que prestam assistência aos usuários de drogas e outros pobres se tornam alvos a serem atacados, com o objetivo de angariar apoio. Acredita-se que atacar o padre Júlio — que não inventou a Cracolândia nem os pobres — pode render votos em outubro.
Não se deve estranhar a razão de tantos vereadores apoiarem a convocação da CPI. Eles acreditam, como Rubinho Nunes, que vão cair nas graças dos eleitores. Porém, como a imprensa — a GloboNews e alguns jornais — não aderiu ao coro dos contentes, alguns parlamentares recuaram. Portanto, a CPI, que poderá ser instalada em fevereiro, em seguida ao recesso legislativo, pode naufragar. O que parecia um belo patinho se tornou, de uma hora para outra, um autêntico patinho feio.
Rubinho Nunes diz que o padre Júlio “não” é a Arquidiocese de São Paulo. Porém, a Igreja Católica respondeu prontamente: “Na qualidade de vigário episcopal para a Pastoral do Povo da Rua, padre Júlio exerce o importante trabalho de coordenação, articulação e animação dos vários serviços pastorais voltados ao atendimento, acolhida e cuidado das pessoas em situação de rua na cidade”.
A Arquidiocese de São Paulo enfatiza: “Reiteramos a importância de que, em nome da Igreja, continuem a ser realizadas as obras de misericórdia junto aos mais pobres e sofredores da sociedade”.
Na verdade, o padre Júlio está sintonizado com as pregações sociais do papa Francisco. E mais: nada tem de “comunista” — o xingatório preferido da cultura inculta da direita patropi —, pois é tão-somente um integrante da Igreja Católica que leva ao pé da letra a fraternidade cristã.
O tiro da direita pode acabar promovendo o padre Júlio. Talvez seja difícil, mas imagine se, por defender os pobres, o religioso ganhar o Nobel da Paz de 2024. Rubinho Gomes e seus apoiadores ficarão com cara de, por assim dizer, “tacho”. A direita brasileira não precisa mesmo de “inimigos”. Porque é sua própria “inimiga”.