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Gafe do petista-chefe sobre a Ucrânia é reveladora, porque sugere que é menos moderado do que parece. O PT não interpreta Bolsonaro com precisão 

O Editorial desta semana está escrito de uma maneira diferente. Na verdade, são micro editoriais a respeito do Brasil.

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Lula
Lula da Silva: seu discurso atual parece retratar os anos 1990 | Foto: Divulgação

Paradoxalmente, a ascensão recente do presidente Jair Bolsonaro, do PL, pode ser positiva para Lula da Silva, do PT, e para o país. Porque, com a possibilidade de superar o petista, a partir da criação da expectativa de poder derivada das pesquisas de intenção de voto, o golpismo bolsonarista tende a refluir. Ao menos em parte. Porque, por incrível que pareça, manter a democracia sobre pressão é um dos trunfos que garantem popularidade ao líder da direita.

Há quem diga que uma vitória apertada de Lula da Silva, no segundo turno, pode ser a porta aberta para um golpe de Estado. Porque o bolsonarismo poderia criar uma confusão imensa sugerindo que houve fraudes, a partir das urnas eletrônicas, e, com isto, abrir espaço para impedir a posse do petista-chefe.

Mas há outra possibilidade: uma vitória apertada do petista pode, ao mostrar que o bolsonarismo tem forte presença eleitoral, contribuir para reduzir o vigor do golpismo. É possível que se eleja um Congresso conservador, com dezenas de bolsonaristas-raiz, o que, de alguma maneira, seria uma maneira de controlar possíveis arroubos autoritários do petismo. Uma bancada conservadora, se coesa, poderia se tornar quase um governo paralelo.

Se eleito, Lula da Silva conseguirá negociar com partidos como PL, PTB, pP e Republicanos. Mas tende a enfrentar, na Câmara e no Senado, a tropa de choque do bolsonarismo, que, aguardando 2026, certamente não vai compor com o ex-presidente. Um grupo conservador forte, ideologizado, pode pressionar o petista a se moderar. Ao mesmo tempo, com alguma viabilidade eleitoral, tende também a se moderar.

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Jair Bolsonaro: a palavra “perturbado” não é ideal para compreendê-lo | Foto: Agência Brasil

A impressão que se tem é que os intelectuais do PT não examinam Bolsonaro com a devida perspicácia. Convidado para uma entrevista às páginas amarelas da revista “Veja”, o pré-candidato a governador de São Paulo pelo partido, o economista Fernando Haddad, disse que o presidente é “perturbado”.

A palavra “perturbado” não explica o caubói de Marlboro com precisão. Não se trata de uma interpretação detida, e sim de um mero ataque para “convencer” não se sabe quem, talvez os “convertidos”. Há muito de intuição em Bolsonaro, é certo. Mas há também táticas e estratégias elaboradas.

Então, o presidente pode até ser errático — sobretudo por não ouvir as figuras mais racionais do governo, como os ministros Paulo Guedes, Ciro Nogueira e a ex-ministra Tereza Cristina —, mas é mesmo “perturbado”? Não parece. O que parece “maluquice” para muitos, como a crítica à vacinação e o incentivo a medicamentos tidos como mágicos (explora-se, aí, um pouco do caráter mágico de muitos brasileiros — que, quando estão com câncer, acabam de sair de uma sessão de quimioterapia e passam num centro espírita para beber uma água milagrosa, que, como não faz mal, acaba dando algum conforto espiritual aos doentes), contêm certa elaboração política, digamos, método. O homem tido como resistente às “intempéries” é, de alguma maneira, admirado por milhões.

De fato, Bolsonaro, assim como Lula da Silva, não é culto, no sentido livresco. Porém, é tão inteligente e experiente, em termos políticos, quanto o petista.

Qual é a verdadeira explicação para Bolsonaro ter voltado a crescer nas pesquisas de intenção de voto? A economia do país melhorou, a inflação caiu, o preço da gasolina está baixo? Nada disso. Há algo no comportamento do presidente, ao transferir a culpa dos equívocos e fracassos do governo para outros — como o Supremo Tribunal Federal —, que agrada parte dos eleitores. Sua religiosidade atrai grande parcela dos evangélicos e, também, de católicos conservadores. A defesa que faz da família, apesar de ter se casado três vezes, agrada milhões de indivíduos, sobretudo nas classes médias e baixa.

Portanto, o comportamento de Bolsonaro, sua sincronia com uma espécie de pensamento médio da sociedade, talvez seja uma explicação para sua ascensão nas pesquisas.

Se o PT continuar tratando Bolsonaro como “perturbado”, sem notar certo grau de racionalidade nas suas ações, pode acabar, ao deixar de entendê-lo, alimentando seu crescimento.

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Daniel Silveira: o excesso de cobertura o transforma de “vilão” em “herói” | Foto: Reprodução

É preciso abrir um drope para a imprensa. Os jornais e revistas impressos e as emissoras de televisão perderam um tempo imenso com a história do deputado federal Daniel Silveira — que, condenado a quase nove anos de prisão pelo Supremo, foi indultado pelo presidente Bolsonaro.

Em tese, a condenação de Daniel Silveira teria sido uma jogada de mestre dos ministros do Supremo, culturalmente, em termos de conhecimento elaborado, “superiores” a Bolsonaro. Mas quem ganhou a parada, deixando os ministros desconcertados, foi o presidente.

A imprensa abriu espaço generoso para Daniel Silveira, o “vilão” que, de tão exibido, se tornou uma espécie de “herói”. A exposição excessiva de um deputado a quem o presidente da República indultou — e o Supremo ainda não “derrotou” (ele está sendo cercado financeiramente, como, de algum modo, a Rússia) — tende a transformá-lo numa estrela.

Não se está a defender que Daniel Silveira não deve ser comentado. Porque não há como ignorá-lo. O que se está dizendo é que deram uma cobertura excessiva ao caso. O que, no fundo, deixou bem Bolsonaro e o parlamentar e mal o Supremo, que ficou com a imagem de que foi “derrotado”. E, fora a pena excessiva para o deputado, o STF está correto, cumprindo a lei, corajosamente.

Na quinta-feira, 5, o “Jornal Nacional” fez uma reportagem mostrando o impacto da inflação no dia a dia das pessoas. Os restaurantes, por exemplo, estão com dificuldade de comprar legumes e verduras, com preços elevados, e não têm como repassar os custos para o consumidor. O dono de um restaurante disse que vendia 100 “quentinhas” por dia e agora vende 20, e, num dia muito bom, 40. Os pobres estão mais empobrecidos e a classe média está, em geral, endividada.

A GloboNews, cujo “Em Pauta” é muito bom, às vezes deixa de pôr o país real na sua tela para ficar discutindo, longamente, Daniel Silveira e supostos desatinos de Bolsonaro. Recentemente, num debate, a jornalista Eliane Cantanhêde, excelente analista, parecia mais líder de centro acadêmico estudantil. Aqui e ali, o grande (quando o assunto é meio ambiente) André Trigueiro parece mais um líder político do que um analista de proa da imprensa. Demétrio Magnoli representa um ponto de equilíbrio, assim como, por vezes, Mônica Waldvogel e Gerson Camarotti.

A Globo e a GloboNews, assim como “O Estado de S. Paulo”, a “Folha de S. Paulo”, “O Globo” e a “Veja”, têm o dever de explicar aos seus telespectadores e leitores por quais motivos Bolsonaro está se aproximando, perigosamente, de Lula da Silva. Há alguma coisa acontecendo, debaixo dos olhos de todos os brasileiros, que os jornalistas, em geral, não estão percebendo. Bolsonaro deve ser criticado, porque comete erros crassos, mas precisa ser, antes, interpretado. Se não for entendido, corre-se o risco de, entre maio e junho, como postula o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, ultrapassar Lula da Silva. Os programas sociais estão melhorando a situação do presidente no Nordeste ou sua ascensão deriva do reposicionamento das classes médias, que não querem o retorno do petismo ao poder?

Uma pesquisa mostra Bolsonaro à frente de Lula da Silva em São Paulo, o Estado mais rico, de economia mais moderna e avançada e com mais eleitores do país.

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Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia: Lula da Silva não soube entender que seu país é vítima e que a Rússia de Vladimir Putin é a nação agressora | Foto: HANDOUT / AFP

Na semana passada, talvez por falta de perspectiva histórica, Lula da Silva disse à revista “Time”, que lhe deu um imenso destaque, que tanto Vladimir Putin, presidente da Rússia, quanto Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, são responsáveis pela guerra que está destruindo o país do segundo.

Lula da Silva não se condoeu dos ucranianos — mostrando rara insensibilidade —, que estão morrendo e, milhares deles, saindo do país.

Nem mesmo os petistas concordaram com a, digamos, “gafe” do petista-chefe. Mas é importante, para os eleitores, que Lula esteja dizendo o que realmente pensa sobre determinados temas, sem a mediação edulcorada de marqueteiros.

Houve uma comoção, na sociedade e na imprensa, com a fala de Lula da Silva. Parece, até, que o ex-presidente nunca fez a defesa da Venezuela e de Cuba, duas ditaduras.

Porém, ao abordar mais a “rata” de Lula da Silva a respeito da Ucrânia, a imprensa também cometeu um equívoco. Afinal, exibir um projeto para o Brasil é muito mais importante do que palpitar sobre os problemas de outros países.

O que Lula da Silva tem a dizer sobre reforma tributária, federalismo, crescimento da economia, geração de empregos, combate à inflação, privatizações, abertura da economia, sustentabilidade, inovação, inclusão? A inflação está corroendo o poder de compra dos brasileiros; no entanto, para Lula da Silva e para a mídia, a fala sobre a batalha entre a Rússia e a Ucrânia parece mais relevante. Ressalve-se que guerra contribui para encarecer o petróleo e o gás no Brasil, quer dizer, todos estão sendo envolvidos por ela.

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Jaques Wagner: escalado para moderar o discurso de Lula da Silva | Foto: Reprodução

Lula da Silva é maior do que o PT. Por isso, definiu-se que, nos Estados, seus aliados devem se submeter ao projeto imperial do petista-chefe. Os projetos regionais devem ser subordinados à candidatura do ex-presidente. E ninguém pode questionar isto. Porque, se o fizer, corre o risco de ser excluído dos centros decisórios do partido.

Quando Lula da Silva fala, no PT, a água para. Ele é o Moisés do petismo. Por sua figura carismática, acima de todos, o ex-presidente acaba por intimidar as forças mais moderadas. De que adianta colocar um conservador, Geraldo Alckmin, na vice, se o postulante a presidente volta e meia radicaliza seu discurso. Qualquer eleitor sabe que vice não governa, ainda mais num governo petista, que tende a ser centralizado.

O PT de Jaques Wagner conseguiu impor uma derrota ao PT de Gleici Hoffmann e Franklin Martins, sobretudo ao expurgar o marqueteiro Augusto Fonseca e substitui-lo pelo marqueteiro dos baianos, Sidônio Palmeira. O objetivo é tornar Lula da Silva mais moderado, com um discurso mais afável e, por assim dizer, alegre e menos “envelhecido”. Porque às vezes se tem a impressão de que o ex-presidente não é contemporâneo dos demais brasileiros, que ainda não percebeu o impacto das redes sociais. As reações do PT aos fatos quentes do dia a dia parecem lentas e mal formuladas.

Porém, apesar de os moderados estarem em alta, aqui e ali, Lula da Silva retoma a exposição de uma ideia radicalizada ou, até, fossilizada. O projeto de regular a imprensa volta e meia entra na ordem do dia. O ex-presidente tem dito que foi mal-entendido, e talvez tenha sido mesmo. Mas, pelo que realmente disse, planeja ou planejava regular a mídia. Recentemente, disse que a TV Globo deveria pedir desculpas a ele. Ora, a corrupção campeou em seu governo. Hoje, no afã de “criar” um adversário para tentar derrotar Bolsonaro, estão livrando o líder red dos processos judiciais. É provável que tenham cometido exageros com Lula, sobretudo por causa do moralismo de certos jovens do Ministério Público e de alguns integrantes do Judiciário, mas quem pode dizer, em sã consciência, que não havia corrupção, até sistêmica, nos governos do PT?

Se o PT continuar insistindo que fez governos inteiramente “limpos”, sem fazer um mea-culpa, é provável que vai perder ainda mais eleitores.

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Luciano Bivar: pré-candidato do União Brasil a presidente da República | Foto: Reprodução

O União Brasil abandonou a fantasmal terceira via — na verdade, nenhuma via — e afirma que vai lançar o deputado federal Luciano Bivar, de Pernambuco, para presidente da República.

Não há a menor dúvida de que Luciano Bivar é um político experimentado, moderado e operou bem a fusão do PSL com o Democratas, constituindo uma força política poderosa no Congresso e no país. O Democratas deu ao pessoal do PSL, com o novo partido, o União Brasil, consistência ideológica.

O União Brasil é um partido gigante e, por isso, deve mesmo lançar candidato a presidente. Há quem avalie que o partido vai acabar compondo, direta ou indiretamente, com Bolsonaro.

Porém, a principal revista do país, a “Veja”, fez algumas reportagens informando que Luciano Bivar havia sido acusado de mandar matar uma ex-amante. É tudo verdade? Pode ser e pode não ser. Mas há indícios a considerar. E o pior é o uso político que se fará disso, se o pernambucano de Recife postular mesmo a Presidência.

Candidato a presidente não pode passar o tempo inteiro se explicando a respeito de escândalos. E há algo grave: uma candidatura de Luciano Bivar, se a história reportada pela “Veja” for ampliada, pode prejudicar não apenas o deputado, mas todos os candidatos do partido nos Estados.

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Bolsonaro diz que não há corrupção no seu governo. A história do tratoraço — ou tratolão — ainda está por ser contada de maneira ampla. O fato é que o governo federal liberou 30 bilhões de reais, fora do orçamento da União — criando um orçamento dito “secreto” —, para, supostamente, conquistar apoio de senadores e deputados federais e se fortalecer nos Estados. Há políticos da base bolsonarista distribuindo tratores em quase todo o país.

O tratoraço é um big escândalo e a imprensa, apesar de falar a respeito com certa frequência, não decidiu ir aos Estados para verificar se as máquinas eram mesmo necessárias. Há corrupção no caso? A “compra” de apoio, em si, é um grande escândalo.

Como exatamente Bolsonaro articulou o tratoraço? Por que, sendo um negócio tão nebuloso, não mobiliza a sociedade? Lula da Silva, no lugar de falar sobre a Ucrânia, assunto sobre o qual sabe pouco, certamente, deveria discutir o tratolão. Por que não discute? Talvez com receio do repique ser a respeito do mensalão e do petrolão.

Há outra história estranha: Renan Bolsonaro, o mais jovem dos filhos homens do presidente, estaria fazendo lobby para empresários e amigos junto ao governo federal. A Polícia Federal está investigando a denúncia. O próprio Renan ressalta que algumas pessoas usaram seu nome. Mas usaram mesmo sem sua autorização?

O senador Flávio Bolsonaro tem uma vida independente da do presidente, mas sua vocação para comprar imóveis caros, como uma mansão em Brasília, no valor de mais de 6 milhões de reais (há quem postule que vale mais), não é bem-vista nem pelo entorno do presidente. Como pode alguém com salário líquido de menos de 30 mil reais comprar imóveis tão caros? E há outros imóveis no Rio de Janeiro. Há, por fim, a histórias das rachadinhas no seu gabinete de quando era deputado estadual no Rio de Janeiro.

Bolsonaro, portanto, tem problemas dele, como o tratoraço e o suposto lobismo de Renan, e problemas que, embora não sejam dele, podem ser explorados na campanha.

O PT também não cobra bem o fato de que a economia do país, sob Bolsonaro, não está crescendo e a pobreza voltou a aumentar. A classe média, embora parte seja bolsonarista, está emparedada pela crise, com dívidas e sem perspectiva de melhoria de qualidade de vida.

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William Burns: diretor da CIA | Foto: Reprodução

Bolsonaro parece ter pouco apreço pela democracia. Portanto, o PT, no lugar de falar em regular a imprensa — no mundo digital ou não —, deveria recrudescer sua defesa da sociedade democrática.

A esquerda não aprecia que os Estados Unidos interfiram na política brasileira. Mas parece que todos ficaram “contentes” ao saber que o diretor-geral da CIA, agência de Inteligência dos EUA, William Joseph Burns, supostamente teria “puxado” a orelhas de Bolsonaro. Burns teria pedido ao governante brasileiro que pare de questionar a integridade do processo eleitoral no país (a questão das urnas eletrônicas e a ação do TSE).

Se disse exatamente que Bolsonaro precisa respeitar as regras institucionais — no caso, o processo eleitoral —, Burns está ocupando, indiretamente, o lugar que cabe ao Congresso — senadores e deputados federais. O STF está cumprindo seu papel, às vezes até se excedendo — como no caso da pena de quase nove anos para Daniel Silveira. Mas falta firmeza democrática da parte do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, até faz a defesa da democracia, mas à sua fala falta ênfase, o que sugere falta de posicionamento. O que diz é correto, mas passa a impressão de que “não fede” e “nem cheira”.

A CIA está dizendo o certo, ainda que não seja sua função (aliás, apoiou e articulou golpes de direita pelo mundo, em tempos idos), ao governo do país e aos brasileiros. Sua fala foi uma ameaça? Na verdade, não. Talvez seja um alerta.

Na sua guerra contra a China pela hegemonia econômica (que se tornará política) mundial, os Estados Unidos vão precisar do Brasil, de sua economia. Porque, ao contrário do complexo de vira-latas dos patropis, o país do presidente Joe Biden tem pleno conhecimento da importância do Brasil no mundo, sabe o peso de sua economia. É um aliado estratégico que não se pode deixar à mercê da nação de Xi Jinping.