Quem tem razão é o ministro-general Santos Cruz: “Este governo dá muita munição à imprensa”. O presidente deveria afastar a família do governo e qualificar sua equipe política

Jair Bolsonaro, Carlos Bolsonaro, Fabrício Queiroz e Gustavo Bebianno: crises são made in governo e made in Bolsonaros, nada têm a ver com possíveis excessos da imprensa

No Brasil, no momento, quem precisa de oposição é a oposição. Não é o governo do presidente Jair Bolsonaro. As primeiras crises de seu governo não têm o dedo da oposição, mas as digitais do presidente, de parentes, de aliados políticos e de auxiliares. Mas a Imprensa, segundo o diagnóstico bolsonariano, é “culpada” de “alguma coisa”. O “mordomo” da hora.

Nos governos do PT, de Lula da Silva a Dilma Rousseff, durante mais de uma década, jornalistas petistas ou ligados ao petismo criaram e cristalizaram a ideia de que existe um Partido da Imprensa Golpista no Brasil. Nos blogs e nas redes sociais, militantes e inocentes-úteis propagaram a história do PIG, que, no fundo, é uma farsa, não existe. Não há imprensa golpista. O que há é imprensa crítica, às vezes dura, mas sempre contemplando as diversas versões (as de quem quer apresentá-las). Costuma-se exigir que a imprensa seja imparcial. Talvez seja mais realista cobrar que seja justa. A imparcialidade é um mito construído mais pelo público do que pela própria imprensa. A rigor, contemplar versões divergentes não é necessariamente ser imparcial. Tanto que, em geral, uma parte sempre, ou quase sempre, se considerará prejudicada. A verdade, por incrível que possa parecer, é parcial, porque não agrada a todos.

No momento, assiste-se a esquerda, inclusive a petista, apoiando a imprensa. O senador Randolfe Rodrigues fez, recentemente, uma defesa feroz da imprensa, sugerindo que a democracia exige uma imprensa que investiga sem temor e publica tudo, corajosamente, em defesa da sociedade. O político do Amapá não está equivocado. Mas, enquanto a imprensa estava investigando os governos petistas, que azeitaram a corrupção sistêmica, a maioria dos esquerdistas criticava jornalistas, jornais, revistas e emissoras de televisão. Mesmo depois de prisões e condenações, eles não fizeram autocrítica. Mas agora, ao vasculhar o governo de Bolsonaro, da direita, a imprensa se tornou companheira de jornada. A “Veja” e a “Globo”, antes tão execradas, voltaram a ser deusas. Repete-se a história de que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”.

A questão é que a imprensa não é “inimiga” de Lula da Silva e de Bolsonaro. Ocorre que, sem depender mais tanto dos governos — ao menos parte da imprensa —, pode investigar políticos poderosos, sem antes verificar a conveniência dos interesses ou da sobrevivência. O PT locupletou-se, deixou pistas fartas e acabou descoberto tanto pela Polícia Federal e Ministério Público quanto pela imprensa. A reconstrução do PT só será possível, se for, quando fizer uma autocrítica severa do que aconteceu. Enquanto não fizer, a sociedade vai votar contra petistas. A “negação” de que havia corrupção nos governos petistas não é aceita pela sociedade — as urnas de 2018 deram uma resposta dura aos petistas — mas continua sendo repetida pelos próceres do PT. Se o PT quiser se defender de verdade, se quiser continuar como partido político, tem de assumir os erros e fazer a crítica dos que erraram, ou pelo menos erraram mais.

Bolsonaro comporta-se como o PT da Direita

Bolsonaro e seus aliados — muito mais o presidente e seus filhos, que ganharam seguidores tão fanáticos quanto os petistas — repetem o PT em quase tudo, notadamente na crítica à imprensa, que se tornou um demônio, presente em todos os lugares. Mas os problemas “de” Bolsonaro e de seus filhos não foram criados pela imprensa, sobretudo pela “maldita” Globo, que está deixando de ser o sorriso do governo e a cárie da sociedade. Tais problemas foram e estão sendo criados pelo presidente e sua prole política.

Fabrício Queiroz — o homem que ganhou milhões vendendo carros (as concessionárias e as montadoras ainda não o contrataram como garoto-propaganda), menos Elba — e o senador Flávio Bolsonaro tinham uma relação ainda não suficientemente explicada. Não se sabe exatamente por qual motivo Fabrício Queiroz, quase um personagem do português Eça, tinha tanto poder no gabinete do filho de Bolsonaro. Resta explicar a razão de movimentar tanto dinheiro. Vender carro usado rende algum mas não muito dinheiro. Não se trata de fundos de investimento.

Mas vamos lá: a imprensa “inventou” Fabrício Queiroz? Óbvio que não. Se alguém inventou o personagem, entre o trágico e o cômico, este alguém é Flávio Bolsonaro, que o colocou em seu gabinete. Uma investigação detida pode piorar as coisas. A imprensa deve, claro, ter cautela. Mas uma possível ligação do “motorista-banco-concessionária” com milícias pode produzir consequências graves.

Vamos lá mais uma vez: a imprensa inventou a crise Gustavo Bebianno-Bolsonaro? Aí é que está a questão-chave: a imprensa não precisa inventar nem exagerar nada. Os personagens políticos atuais, notadamente os que cercam o presidente — familiares ou não —, geram problemas de sobra. A imprensa só recebe e transcreve, de maneira precisa, os pepinos. Seguindo um filho, Carlos Bolsonaro, o presidente disse que um ministro, de sua estrita confiança — da cota pessoal —, havia mentido e, em seguida, o demitiu.

Com o objetivo de preservar sua imagem, para não ficar cristalizado como “mentiroso”, Bebianno divulgou áudios nos quais fica evidente que conversou com Bolsonaro. Não havia mentido. O presidente alega que conversar pelo WhatsApp não é o mesmo que conversar. Uma curiosa interpretação, pois o presidente aprecia dialogar com a sociedade — parece falar mais para “convertidos” do que para a sociedade, que é o todo, incluindo aqueles que não o escolheram para governar — por meio de redes sociais, sem a intermediação da imprensa.

O que Bolsonaro não quer perceber, e deve ser mais bem orientado a respeito, é que a imprensa não gerou os problemas. A imprensa foi apenas o canal para reportá-los. Com menos de dois meses de governo, o governo de Bolsonaro começa a fornecer material adequado para as manchetes. Quem não publicar, se tiver o material em mãos, não sabe o que é jornalismo e vai ficar para trás. Aliás, jornais que sonegarem informações, para agradar políticos e empresários, vão ser “atropelados” e, até, “abandonados” pelos leitores. Por um motivo bem simples: aquilo que se esconde “aqui” vaza “ali” — o que contribui para a desmoralização dos que “escondem” informações. Assessores de imprensa mais bem preparados sabem que o fundamental, especialmente na comunicação contemporânea — com a facilidade de se divulgar notícias, inclusive nas redes sociais, fora dos centros tradicionais —, é apresentar a versão o mais rapidamente possível, e de maneira abrangente. Quem esconde “aqui” verá o fato explodir “ali”. Não é inteligente, portanto, tentar esconder o sol com uma peneira.

A ditadura civil-militar de 1964, que durou até 1985, fez um mal terrível aos militares, porque cristalizou a ideia de que são antidemocráticos. Na verdade, em momentos de crise, foram tão antidemocráticos quanto centenas de civis. Aliás, as vivandeiras não saíam dos quartéis, pregando o golpe e sugerindo que os militares precisavam ser duros com a corrupção e contra o comunismo. O resultado é que os militares, açulados por civis — que exploraram como poucos, inclusive, a “possibilidade” de os comunistas tomarem o poder no Brasil (um mito azeitado pela direita — dada a Guerra Fria), derrubaram o governo de João Goulart e instalaram uma ditadura no país. Mais tarde, ao ser interrogado por qual motivo havia “matado” a ditadura, o general-presidente Ernesto Geisel respondeu de maneira sintética: “Porque era uma bagunça”. Ele próprio teve de lutar contra uma tentativa de golpe militar e pôs o ministro do Exército, Sylvio Frota, para correr, o que Castello Branco não conseguiu fazer com Costa e Silva, na segunda metade da década de 1960.

Generais Hamilton Mourão, Augusto Heleno e Santos Cruz são exemplo de democratas e líderes moderados

Militares e o pecado da omissão

Sabendo que não se constrói “mundos perfeitos”, totalmente depurados — quem acredita que a corrupção e a criminalidade podem ser “extirpadas” (linguagem da barbárie) 100% precisa, urgente, comprar um passagem para Marte —, os militares atuais, em sua maioria democratas, não querem saber mais de ditadura e, na verdade, representam, mais do que os políticos (a articulação política de Bolsonaro é do segundo time, e por isso nem é ouvida direito por ele), o ponto de equilíbrio do governo. Observe-se que o ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz, disse palavras apropriadas (aladas, diria Homero): “Este governo dá muita munição à imprensa”. Noutras palavras, a munição não é fornecida pela imprensa. Ela recebe a munição e, percebendo o quão é explosiva, divulga com destaque. É seu papel, e não há outro.

Bolsonaro apresenta-se como novo e moderno (na verdade, parte do governo é isto mesmo. A parte moderna é representada pelos ministros Paulo Guedes e Sergio Moro e, sim, pelos militares). Mas manter a família dentro ou nas proximidades do Palácio do Planalto não tem nada de moderno. Biografias equilibradas, como a escrita pelo jornalista Lira Neto, sugerem que o presidente Getúlio Vargas era honesto. Mas havia corrupção no governo e mesmo um grupo pró-violência. Seu “protetor” Gregório Fortunato — contratante de um pistoleiro para matar Carlos Lacerda (acabou matando um militar) — era corrupto e protegido por um dos irmãos do presidente. Denunciava-se que havia um mar de lama no Catete, o palácio presidencial. Na verdade, havia um riacho, no qual Vargas não se banhava. Mas o riacho virou rio e, na imaginação popular — potencializada por Carlos Lacerda, Roberto Marinho e Assis Chateaubriand —, se tornou mar. O resultado é que, para não permitir que um golpe civil-militar fosse adiante, Vargas se matou, em agosto de 1954. O golpe que abortou com sua morte reacendeu-se entre março e abril de 1964 — quase dez anos depois. Bolsonaro não precisa afastar a família — inclusive o Tonho da Lua — de seu convívio, mas não deve permitir que partilhem as decisões do poder. O público não é assunto privado dos Bolsonaros.

A história prova: a imprensa raramente é culpada de alguma coisa. Às vezes, só às vezes, é, sim: de omissão. No caso do PT, não foi omissa. Sem a imprensa, que levou a sociedade a pressionar por investigações rigorosas, a Lava Jato teria se tornado Lava Nada. Agora, sob Bolsonaro, a imprensa faz o seu papel: denunciando os malfeitos e, até, contribuindo para impedir malfeitos. Claro, a imprensa não agrada ao poder. E deve ser assim mesmo: se estiver agradando o poder, eventualmente porque está recebendo verbas publicitárias, certamente não deverá ser chamada de imprensa, e sim de propaganda. Antes uma imprensa crítica, que até erra, do que uma imprensa acrítica, espécie de sorriso do poder.

A imprensa, insistamos, não tem de ser imparcial (e nem é inimiga de ninguém). Tem de ser objetiva e justa. Até agora, não há do que reclamar. Já Bolsonaro tem de entender, antes que seja tarde, que teorias conspiratórias e paranoias, se não ajudam a governar, contribuem para atrapalhar até gestores eficientes. Sergio Moro e Paulo Guedes — os verdadeiros agentes das possíveis mudanças, no campo das leis e da economia — só vão governar de maneira competente se tiverem apoio político equilibrado, que só pode ser fornecido por quem tem a caneta nas mãos e entende mais de política. Está se falando, lógico, de Bolsonaro — aquele que ganhou a eleição.

O ministro do Turismo é a crise que avizinha. Ele deve viajar, breve — talvez para Minas —, para se tornar um retrato na parede. Há um drummond alaranjado — quase um iceberg — no seu caminho.