A era pós-Bolsonaro pode ser uma grande oportunidade para a Nação
31 julho 2022 às 00h00
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O dia era 17 de março de 2019, um domingo, e o local era a residência de Sergio Amaral, então embaixador do Brasil nos Estados Unidos, em Washington. Jair Bolsonaro realizava sua primeira viagem internacional como presidente da República e era o principal convidado daquele jantar chique, regado a ovos de salmão e bifes especiais. Na mesa com ele estavam Steve Bannon e Olavo de Carvalho, os maior ideólogos da extrema-direita mundial e nacional, respectivamente.
Bolsonaro tinha então apenas dois meses e meio à frente do governo, mas em sua fala aos ali presentes sintetizou seu objetivo no cargo:
— Eu sempre sonhei em libertar o Brasil da ideologia nefasta de esquerda. (…) O Brasil não é um terreno aberto, onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa, para depois nós começarmos a fazer. Que eu sirva para que, pelo menos, eu possa ser um ponto de inflexão, já estou muito feliz”, afirmou, em seu português longe de perfeito, mas, nesse caso, bastante explícito quanto a suas intenções.
Depois de três anos e meio como mandatário, não se pode negar que o presidente cumpriu grande parte de sua meta, em várias áreas da esfera pública. Órgãos fundamentais no combate à destruição ambiental no Brasil, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) foram desmontados no atual governo – quem confirmou isso foi o próprio vice-presidente, Hamilton Mourão, ainda em setembro de 2020, quando comandava o Conselho Nacional da Amazônia.
O resultado da “desconstrução” promovida pelo atual governo federal no setor se mostra nos índices recordistas e alarmantes de queimadas e desmatamento, algo que impacta o Brasil não apenas ambientalmente, mas também nas relações exteriores – outro ponto em que o País regrediu como nunca antes em sua história. O ex-titular do Itamaraty, Ernesto Araújo, chegou a dizer que não importaria se o País se tornasse um “pária internacional”.
Na área da educação, houve uma inacreditável sequência de titulares da pasta que puseram ao chão toda a reputação do MEC. O colombiano Ricardo Vélez desfilou desconhecimento, despreparo e xenofobia nos poucos meses em que esteve à frente do ministério. Seu sucessor, Abraham Weintraub, preferiu atacar as universidades federais – para ele, nada mais do que locais de “balbúrdia” e de plantar maconha –, debochar da China no Twitter e defender, em reunião ministerial com o presidente, a prisão dos integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF). Carlos Decotelli foi nomeado, mas nem assumiu, porque tinha um currículo vitae adulterado. O último foi o pastor Milton Ribeiro, que levou religiosos para o MEC e acarretou o que talvez seja o maior escândalo de corrupção envolvendo denominações evangélicas.
Na rotina do Ministério da Educação, além da perda severa de recursos para as instituições de ensino superior, houve, entre outras coisas, a incompetência total para lidar com o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), um dos motivos de, na semana passada, ter caído o quinto presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) – que cuida da gestão – no atual governo.
Na saúde, os números da pandemia demonstram o caos desnecessário que o País passou diante da emergência sanitária, pelo discurso negacionista, incentivo a aglomerações e demora na compra de vacinas. Nada mais significativo, dentro da meta bolsonarista de querer implodir as estruturas estabelecidas, do que, em plena escalada de mortes pela Covid-19, demitir dois médicos do comando do Ministério da Saúde para colocar um general que declararia nem saber “o que era o SUS”.
Já a política econômica do superministro Paulo Guedes desconstruiu até mesmo as esperanças dos liberais mais pacientes. À frente do cargo, o “Posto Ipiranga” colecionou gafes, não avançou nas reformas – a trabalhista e a previdenciária foram articuladas no governo Temer – e, na melhor das hipóteses, vai entregar o País estagnado para seu sucessor.
Jair Bolsonaro, obviamente, não está derrotado. Ainda que se comporte como tal – queixando-se de fraudes eleitorais a embaixadores, questionando urnas eletrônicas, atacando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministros do STF –, o presidente está jogando todas as fichas na redução do valor dos combustíveis e nas inúmeras benesses que vai distribuir para os mais pobres, além de caminhoneiros e taxistas. Tudo à custa de rolar para o ano que vem uma grande batata quente nas contas públicas.
Porém, apesar da tentativa desesperada, o mais previsível é que essa batata vá queimar a mão de outro. Muito provavelmente, a do petista Luiz Inácio Lula da Silva. Se o PT se queixou de receber uma “herança maldita” das mãos do tucano Fernando Henrique Cardoso em 2003, não há expressão que possa retratar o quadro catastrófico que terá pela frente. Porque, de fato, durante todo o tempo em que está à frente do poder, Bolsonaro vem cumprindo fielmente a agenda com que se comprometeu no jantar com ovos de salmão e extremistas de direita em 2019, nos Estados Unidos da era Trump. E, se destruir é sua missão, fica no ar o que poderá fazer após a iminente derrota eleitoral se consolidar, quando terá ainda mais de dois meses com a caneta presidencial na mão.
De positivo, diante do atual cenário de caos administrativo, resta a oportunidade que passa bem clara à frente de todos os homens públicos e seus partidos com bons propósitos: jogar fora a chave da prática recorrente de interromper os projetos da gestão anterior, por pura e mesquinha questão política. É preciso dar sequência nos bons programas de governo, reconhecendo os méritos de quem os iniciou e, se possível, aprimorando-os.
Não é o que tem sido visto no transcorrer de nossa história, em mudanças em todos os níveis – municipal, estadual e federal. Talvez ainda demorem algumas gerações para que os atores políticos entendam que o bem-estar do povo deve ser maior do que qualquer picuinha partidária ou vantagem eleitoral. O importante, porém, é ter um bom motivo para mudar – e, de fato, iniciar essa mudança. O fato de ter de reconstruir o Brasil, inclusive democraticamente, do “zero”, pode até ser um facilitador da tarefa.
A aliança entre PT e PSB para a chapa presidencial, trazendo Lula e o ex-tucano Geraldo Alckmin em dupla, passa uma boa mensagem para quem quer essa pacificação administrativa, depois de tantos anos de um conflito permanente gerado no próprio Palácio do Planalto. Experientes como são, os dois podem atuar como líderes dessa nova fase, em que precisam ficar para trás o extremismo e a violência política de qualquer lado e devem prevalecer a temperança, o diálogo e o bom senso em meio ao poder.