A disputa política deveria ser feita como se todos fossem morrer amanhã
10 julho 2022 às 00h00
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A boa notícia que eventos trágicos como o da morte de Ronaldo Caiado Filho trazem é de que há humanidade na política
É da cultura ocidental, especialmente nos tempos modernos, interditar a morte. Vive-se como não se morresse nunca. Embora ela esteja presente no dia a dia, inclusa em todo noticiário, presente às vezes em várias chamadas da escalada de cada “Jornal Nacional”, a morte é vista como uma coisa “dos outros”. As vítimas são uma dúzia de afegãos, num ataque de homem-bomba; crianças numa escola dos Estados Unidos; moradores de uma favela do Rio; usuários de droga de um bairro periférico de Goiânia; ou mesmo o vizinho que bebeu e capotou o carro.
Para todos, guardamos uma certa distância do caso: basta não morar “perto” ou, se morar, não estar submetido aos “perigos” – não mexer com drogas, não dirigir embriagado. Esquecemos que “viver é muito perigoso”, como escreveu Guimarães Rosa, e não somente para quem está mais vulnerável a fatores externos.
Na fuga de um tête-à-tête com o inevitável, é interessante observar também como o verbo “morrer” acaba assumindo, na língua portuguesa, o papel de hiperbolizar ações de quem está vivendo intensamente algum sentimento muito humano: “morrer de amor”, “morrer de medo”, “morrer de rir”, “morrer de raiva”. Nesse sentido, “morrer” nem sempre expressa coisa boa, mas sempre se liga a algo forte.
Também por isso, a morte como experiência próxima e real, quando ocorre, geralmente pega familiares e amigos de maneira totalmente desprevenida. Se acontece com pessoa jovem e de forma repentina, ainda mais. Por último, a dor é multiplicada infinitas vezes em um pai ou uma mãe que perde um filho ou uma filha. Como se costumou dizer, é a inversão do ciclo natural da vida: pela lógica da biologia, isso seria um evento improvável. Mas a vida vivida não é feita de cartesianismos.
Na manhã do domingo, 3, as redações da imprensa goiana foram sacudidas por uma notícia chocante: Ronaldo Ramos Caiado Filho, o herdeiro homem do governador – que é pai também de três mulheres –, fruto de sua união com Thelma Gomes, havia sido encontrado morto na fazenda da família em Nova Crixás. Tinha 40 anos.
Caiado se tornava naquele instante o quarto governador de Goiás a perder um filho durante o exercício do mandato. Em 1952, Pedro Ludovico ficou sem Antônio Borges Teixeira, num acidente aéreo, com apenas 21 anos. Ary Valadão Filho, o Aryzinho, também morreu em consequência de semelhante tragédia, aos 30 anos, depois de agonizar por semanas com queimaduras graves, em 1981. Seis anos antes, o antecessor de Ary Valadão, Irapuan Costa Junior, e sua então mulher e futura senadora, Lúcia Vânia, perderam Irapuan Costa Neto ainda recém-nascido, por problemas cardíacos.
O que sempre chama a atenção nessas situações é como, mesmo diante do ambiente competitivo e até desumano que caracteriza a disputa política, se cria entre os adversários – alguns até mais do que isso – uma trégua não escrita. Ronaldo Caiado recebeu, pelas redes sociais, apoio e carinho de aliados e adversários. O mesmo ocorreu com Thelma, que se liga ao espectro político oposto ao do governador – filiada e militante no PT.
Dos aliados, se espera obviamente os cumprimentos virtuais e pessoais, apesar do momento de pandemia. Dos adversários, não obstante as inúmeras farpas trocadas, eles também aparecem, de forma mais contida ou eloquente. Porque nada se compara à dor de um pai ou uma mãe tragados a um luto repentino.
E, assim, Ronaldo Caiado foi consolado, pessoal ou virtualmente, por políticos de todo o Brasil: os presidenciáveis Lula (PT), Ciro Gomes (PDT) e Jair Bolsonaro (PL), adversários e desafetos entre si e com rusgas maiores ou menores com o governador; também no âmbito local, Marconi Perillo (PSDB), Gustavo Mendanha (Patriota), Wolmir Amado (PT) e Vitor Hugo (PL), todos seus potenciais concorrentes no pleito de outubro, foram solidários ao momento de luto.
Esse tipo de atitude é, na verdade, o mínimo que se espera da convivência civilizada de políticos em um ambiente democrático, como se estabeleceu no Brasil desde 1985, ainda que com eleição indireta, com a posse de José Sarney como presidente – vice da chapa de Tancredo Neves que foi efetivado no cargo após a morte do mineiro, que não chegou a assumir. Infelizmente, no entanto, no momento atual em que o ódio impera entre partidários de lado a lado na polarização que divide famílias e separa amigos e até casais, é uma postura exemplar e que merece aplausos.
Nesse sentido, parece haver uma tomada de consciência, ao menos no âmbito dos que prezam a democracia. Sim, porque o Brasil por anos duros, com corações igualmente duros, em termos de civilidade na política: no auge da crise de estabilidade que teve os governos do PT como foco, a partir de 2013, houve uma frieza até mesmo para se cumprimentar os rivais na hora de grandes tristezas.
Um exemplo foi o isolamento dos petistas quando da morte de Marisa Letícia, mulher de Lula, em 2017. As condolências foram dadas de forma fria e pelas redes sociais – não era um bom momento para estar ao lado, literalmente ou não, de petistas. Não por coincidência, apenas políticos petistas ou ligados à esquerda apareceram no velório. O que não significa que tenha sido uma atitude desumana, pelo contrário: talvez um tucano ou algum figurão da direita presente ali, no contexto da época, fosse interpretado como hipocrisia ou falsidade pela maioria de militantes.
Da cadeia, Lula saberia da morte do irmão Genival Inácio da Silva, o “Vavá”, em janeiro de 2019, e do neto Arthur Lula da Silva, de 7 anos, que não resistiu a uma infecção bacteriana, dois meses depois. O ex-presidente foi liberado apenas tardiamente pela Justiça para ir às cerimônias fúnebres de Vavá, mas acompanhou por duas horas o velório de Arthur. Também somente petistas e aliados próximos estiveram presentes, embora políticos de todas as correntes tenham enviado pêsames pelas redes sociais.
Políticos de todas as correntes – exceto a família Bolsonaro e seus apoiadores diretos. Para a extrema-direita, o PT e a esquerda nunca foram vistos como adversários, mas como inimigos. A ambos, o objetivo é impor a derrota, mas a adversários se dá um tratamento digno. A inimigos, o arbítrio.
A boa notícia que eventos ruins como o deste primeiro domingo de julho trazem é de que há humanidade na política, ainda que a militância mais radical não tenha a mesma empatia. Caiado, Thelma e os parentes tiveram o acolhimento merecido no momento de dor. Que a política possa voltar a caminhar pela estrada da civilidade. Até porque, por mais poderoso que seja um homem, ele ainda é apenas um homem, com defeitos e fraquezas, debilidades e carências. Um abraço amigo, ainda que – ou seria “principalmente”? – de um adversário ferrenho, é um pedaço do céu e um feixe de luz em meio a trevas e um desconforto imenso.
Que a política, em Goiás e no Brasil, aprenda com a morte. Não há super-heróis nas ruas nem nos palácios. A mão que hoje se estende na hora difícil, cedo ou tarde, vai precisar do ombro amigo daquele que acalentou.