Três décadas de Catedral das Artes e suas ondas culturais. A crista da vez é o Ninho Ancestral

10 julho 2024 às 18h48

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A história de um dos centros culturais de artes mais importantes de Goiânia é a ideia de um menino que nasceu em uma fazenda na região do antigo Olhos d’Água, hoje cidade de Americano do Brasil, interior de Goiás. Noé Luiz da Mota era uma criança curiosa. Certa vez seu pai foi até a cidade com a caminhonete cheia de porcos na carroceria. Deixou os animais e voltou trazendo um rádio.
Escutar rádio sempre exigia uma cerimônia e, naquela época, a família sintonizava apenas em programas sertanejos e na rádio nacional pela noite, para evitar gastar pilha. Respondendo a um movimento de curiosidade e descoberta, Noé, de nove anos, abriu o aparelho para descobrir qual tamanho tinha a pessoa dona daquela voz que saía do rádio. O explorador ficou decepcionado ao encontrar fios e peças.
Décadas depois, enquanto adulto, o goiano se mudou para a capital Goiânia com o sonho surrealista na cabeça. O projeto de se criar um espaço no qual promovesse iniciativas que envolvem arte, cultura, educação, cinema e tudo que permeia a diversidade cultural estava desenhado. A construção da catedral assumiu arquitetura moderna sustentável, feita literalmente de barro e pelas mãos do fundador.
A forma e estrutura com que a Catedral foi levantada é um protesto com a intenção de criticar e questionar os atuais padrões de edifícios e imóveis residenciais. A maioria das construções civis atuais não respeita e não colabora com as práticas que preservam e colaboram com o meio ambiente. Localizada na Rua Campo Verde, no bairro Santa Genoveva — zona norte de Goiânia — é feita de barro. As áreas internas são frescas como água. A aparência de cupinzeiro é uma referência ao bioma cerrado.
As obras da Catedral das Artes iniciaram em 1988. Dez anos depois, em julho de 1998, o Instituto Cultural foi inaugurado com uma exposição de produções de artistas goianos como Cleber Gouvêa, Maria Guilhermina, Antônio Poteiro, entre outros. Além das artes plásticas, o cineclube goiano sempre foi forte por conta do compromisso de décadas de pessoas que insistem nessa prática de lazer, análise e valorização do audiovisual de Goiás e do Brasil.
Como registra o livro “Centenário do Cinema em Goiás – 1909/2009”, de Beto Leão, publicado em 2010, a criação do Cineclube Centro de Cultura Cinematográfico (CCC) em 1966 alavancou as atividades de discussão e promoção de grupos que discutiam cinema.
O nosso método de produção é a guerrilha mesmo. Muitas vezes não temos projetos para manter. Porém, a gente segue conseguindo deixar a iniciativa viva, sempre fazendo alguma coisa. Quem quer fazer algo tem que comprar a guerra .
Noé Luiz da Mota, artista e cineasta
As ondas dos artistas que integram a Catedral das Artes vão e vêm. Hoje, a crista da onda é o projeto Ninho Ancestral, iniciativa financiada pela Lei Paulo Gustavo. A iniciativa ocupou o espaço da Catedral das Artes e promoveu oficinas de grafite, gravura, desenho, fotografia, colagem, bonecaria de papel, brinquedos, estandarte, cenário e criação artística.
O projeto foi idealizado e proposto pelo educador popular e produtor cultural Leo Cassimir. Lançado em fevereiro deste ano, o Ninho Ancestral se dividiu em três linhas/trilhas de atividades. São elas a Trilha das Formigas, dos Vagalumes e dos Besouros.
Trilha Formiga: envolve produções realizadas pelo Laboratório de Projetos Audiovisuais Independentes, oficina de cinema independente — produção, roteiro, direção e montagem — exibição de filmes e encontros para discutir desafios, mentorias e referências com artistas diversos.
Trilha Vagalume: cineclube que promoveu sessões exibindo centenas de filmes com curadores de personalidades como Eudaldo Guimarães, Heloísa Marina, Alessandra Gama, Eriky Ely, Lidiana Reis.
Trilha Besouro: houve oficinas de produção, gravura, desenho, lambe-lambe, cenografia, pintura, fotografia com os profissionais Larissa Pitman, Cássia Oliveira, Diogo Rustoff, Genor Sales, Wes Gama, Roger Thomas e Jhony Aguiar.
A ideia do Ninho Ancestral surgiu em agosto de 2023, quando foi firmada uma parceria com a Catedral das Artes para a produção de projetos. Segundo Leo, produtor da iniciativa, a proposta se assemelha aos comportamentos de um cupinzeiro real no que se refere às alianças formadas.
O Ninho Ancestral começa com um projeto e se torna depois um coletivo. É uma reunião hoje de artistas e profissionais de diferentes áreas, formados como um coletivo que propõe fazer esse trabalho de formação com mestras e mestres.
Leo Cassimir, produtor cultural
O aniversário da Catedral das Artes é comemorado em julho e, neste ano, contou com a exibição de três filmes goianos recém-lançados. São eles “O Conto da Bixa” (2023), “Exotismos” (2024) e “Eu Não Nasci Pra Isso” (2024). A reunião celebrou os 33 anos de trajetória do Instituto Cultural com essa perspectiva de resistência e insistência na arte.
“O Conto da Bixa” foi idealizado por Stella de Eros e dirigido por Karvalho. Tem 11 minutos e treze segundos de duração e foi gravado em Goiânia. A sinopse mostra que “Em meio às encruzilhadas das noites goianas, no íntimo, acontecem as descobertas. Os corpos trans produzem suas tecnologias e se acolhem em suas vivências. É neste lugar que se constrói a comunidade BallRoom: o significado de família, em uma junção que une as suas potências, existências e artes”.

A minha vivência enquanto travesti aqui em Goiânia é de luta e de muita felicidade também. Eu tenho um ciclo de amigos que me apoiam muito. Mas desde o começo foi muito difícil, porque no processo de me entender como travesti, eu fui expulsa de casa e aí, na época, eu só tinha a galera que me rodeava. O dinheiro do projeto ajudou, além da vontade muito grande de fazer arte. Então o que me salvou de não ir para a esquina, foi a começar a produzir arte.
compartilha Stella de Eros em entrevista
“Exotismos” teve direção de Alessandra Gama, foi gravado em Goiânia e tem duração de quinze minutos. A sinopse explica que “A artista Exotismos surge da ambição de Yoná por confrontar estereótipos associados à beleza e à estética, que exploram as inseguranças da autoestima. Com abordagem artística, ela cria cortes e cores que transcendem as mudanças visuais. Em um cenário vibrante e intimista, o curta-metragem “Exotismos” retrata diálogos e transformações que revelam não só a expressão dos cabelos, mas também a individualidade de corpos não conformistas, na efervescência cultural da capital goiana”.

Num sentido amplo, o termo exotismos se refere à todas as pessoas irresignadas com os padrões estabelecidos historicamente e pelos quais essas pessoas não se vêem refletidas ou representadas e isso inclui gênero, etnia e racialidades, moda, estética e padrões beleza normativos, excludentes.
diz Alessandra Gama
“Eu Não Nasci Para Isso” foi dirigido por Erik Ely, gravado em Anápolis e Goiânia e lançado neste ano. A sinopse mostra que “O processo de alistamento militar obrigatório traz consigo uma determinação da qual não se pode fugir, forçando muitos jovens a servirem contra a própria vontade. Mas determinadas convocações são perpassadas por um complexo jogo de forças, que envolve desejos e preconceitos, em relação aos alistados com comportamento fora dos padrões normativos do ponto de vista social, racial e sexual”.

Eu tento fazer esse filme para jovens que estão passando por esse processo de alistamento ao exército. O sistema tem uma linguagem mais rápida, tem algumas questões de jogos em vários aspectos que envolve essa cultura de militarismo. Tento passar uma imagem para os jovens que estão nesse processo, tentando dizer que vai ficar tudo bem, né. O questionamento sobre as coisas que permeiam esse contexto como violências, racismo, preconceito, devem ser trazidos à tona.
considera Erik Ely
A continuidade da Catedral das Artes como centro de arte é crucial para preservar e expandir a diversidade cultural em Goiânia. Esse espaço dá voz às histórias locais, incentiva a criatividade e oferece à comunidade um refúgio para a expressão artística. Manter este centro ativo é essencial para honrar o legado de Noé Luiz da Mota e garantir que futuras gerações desfrutem de um ambiente que valoriza e celebra todas as formas de arte. Em um mundo em constante mudança, a Catedral das Artes continua sendo um farol de inovação, inclusão e resistência cultural.