Violência sexual contra servidora dentro da Câmara Municipal de Goiânia é mais uma prova de que precisamos lutar contra a cultura do estupro e não podemos nos calar 

“O silêncio mata”: protesto em São Paulo no meio do ano passado reuniu milhares de mulheres contra a violência | Foto Paulo Pinto/AGPT

“Uma pessoa que acredita na igualdade social, política e econômica dos sexos.” É assim que Chi­ma­manda Ngozi Adichie, ativista e uma das mais importantes autoras africanas, definiu, em uma palestra histórica, o que é ser feminista. Não se trata de defender “privilégios” para as mulheres, muito pelo contrário, é a luta por uma sociedade mais justa e menos opressora.

Em tempos de redes sociais, ambiente em que se fala demais e se ouve de menos, há uma tentativa de criminalizar movimentos em defesa de minorias e grupos sociais oprimidos. Contudo, o caso da jovem atacada dentro de um banheiro da Câ­mara Municipal de Goiânia comprova que temos um longo (e tortuoso) caminho a trilhar. Alana, assessora parlamentar da vereadora Dra. Cristina Lopes (PSDB) — que, inclusive, foi vítima de violência doméstica e teve 85% de seu corpo queimado pelo ex-companheiro —, foi surpreendida por um homem que tentou entrar no mesmo box que ela na quarta-feira, 1º de março.

O crime choca não só por ter acontecido dentro da sede do Poder Legislativo goianiense, mas pela constatação clara da vulnerabilidade em que toda mulher se encontra. É ultrajante perceber como a tentativa podia ter se tornado um estupro consumado. Imaginem só se, em vez de sair correndo e gritar, a vítima tivesse “congelado”? Se não tivesse conseguido esboçar alguma reação? Seria mais uma mulher que entraria para as trágicas estatísticas do 5º país que mais mata mulheres no mundo. Fico aqui a pensar do que os relativizadores do sofrimento alheio acusariam a jovem Alana. “Ah! Mas também… Tirar a roupa para fazer xixi?”, “Ah! Mas também… Não olhar debaixo da porta para ver se não tem um homem?”, “Ah! Mas também… Entrar no banheiro sozinha?”, “Ah! Mas também… Trabalhar?”.

Não adianta: entra Carnaval, sai Car­­naval, e o número de mulheres abusadas e violentadas só aumenta. Neste ano, a cada quatro minutos uma mulher foi agredida durante o feriado no Rio de Janeiro. Entre as 8 horas do dia 24 de fevereiro e as 8 horas de 1º de março, o Jornal Extra registra que a polícia atendeu a 15.943 solicitações, tendo sido 2.154 chamadas pedidos de socorro sobre violência contra mulher. Um dos casos foi o da bióloga Elisabeth Henschel, de 23 anos, que estava com o namorado em um bar quando foi apalpada por um homem. Ao confrontá-lo, a vítima levou dois socos no rosto.

Mesmo assim, há pessoas no mundo, como o apresentador Ale­xandre Garcia, que conseguiu em apenas um tuíte demonstrar toda sua falta de humanidade e compaixão para com a dor do próximo. “E eu com isso?” respondeu o jornalista à notícia de que a atriz norte-americana Jane Fonda revelou que foi estuprada quando criança. Realmente, um homem heterossexual, branco e rico pouco entenderia o sofrimento que deve ter sido conviver com esse pesadelo durante todos esses anos, ou a coragem que foi necessária para uma mulher se abrir e falar de um tema tão doloroso… Eu mesmo não consigo imaginar como seria, mas — graças aos deuses — sinto empatia, me solidarizo e luto contra a cultura do estupro que domina nossa sociedade. Algumas dizem que não posso me classificar como feminista, pois o protagonismo deve ser das mulheres, e preferem que me classifique como pró-feminista. Aceito qualquer uma das duas definições, o que não sou, em absoluto, é machista.

E reconheço que vivemos em uma sociedade patriarcal, machista e que relativiza a violência contra as mulheres em atividades corriqueiras, como os passeios com meu cachorro. Eu e minha irmã revezamos as saídas com nosso Cocker Spaniel: definimos que ela fica com as de durante o dia e eu com os noturnos. No entanto, às vezes ocupado com trabalho, peço para que ela saia com Amon à noite. Enquanto eu vou de shorts, camiseta cavada e chinelos, ela coloca blusa de frio, calça jeans e sapatos. Pode parecer uma escolha, mas não é. Minha irmã sai toda coberta porque tem medo de ser abordada. Tem medo de que, quando virar a esquina, um homem possa atacá-la. Não se trata de mero mecanismo de proteção. É absurdo, para mim, que uma mulher não possa sair de casa para caminhar com seu cachorro de estimação sem estar constantemente preocupada. Não é possível que não percebamos o descalabro que é aceitar que nossas mulheres estejam, a todo tempo, amedrontadas, acuadas e ameaçadas. Minha irmã tem a possibilidade de não sair à noite com o cachorro, mas e quantos milhões de mulheres pelo país não têm opção? Ou saem de casa às 5 horas da manhã ou não têm dinheiro para colocar alimento à mesa dos filhos? E por favor não me venham com essa conversinha de que “homem também sofre violência”. Evidente, meus caros: o Brasil, como relatei em meu último artigo, é o país não em guerra que mais mata no mundo. Aqui, compadres, tem criminalidade para todos, mas precisamos reconhecer que são as mulheres as que mais sofrem. Eu não tenho medo de sair de shortinho pela rua, nem de dia, nem de noite porque sei que as chances de eu ser abordado, constrangido e estuprado são ínfimas.

Seria falso, exagero e injusto dizer que todo homem é um potencial estuprador? Talvez. Se analisarmos friamente o que o termo quer dizer e nos despirmos de convenções sociais não será tão revoltante assim. Para que haja estupro é preciso que haja um autor e este é, na maioria esmagadora das vezes, um homem. Isso significa que todo homem um dia estuprará uma mulher? Não. Porém, é preciso que façamos uma reflexão de como vivemos em uma sociedade que ensina, instiga e autoriza garotos a pensarem que podem estuprar. Veja, sou goiano e cresci ouvindo, não dentro de casa pois fui privilegiado em ter um pai que, apesar de nascido na metade do século passado, sempre foi moderno e culto, que homem tem que ser “pegador”, que tem que agarrar as gatinhas e não pode ser frouxo. Vi primos serem levados para perder a virgindade em bordeis, porque, afinal de contas, tem que provar a todos que é macho. Quem nunca ouviu aquele infame ditado “segurem suas cabras porque meu bode está solto”?. Por que criamos nossos garotos com a ideia de que eles são dominadores, superpoderosos e superiores? Porque, no fundo, ainda acreditamos que o homem é superior à mulher. É ele quem deve prover, que tem a força, que comanda, que decide. Inclusive, sobre a vida e a morte.

Relativizamos a dor de uma mulher que foi abusada porque passeava com vestido curto ou estava bêbada, mas não nos espanta que o goleiro Bruno — condenado por homicídio triplamente qualificado, sequestro, lesão corporal e constrangimento ilegal, após matar a ex-namorada — seja tietado por homens e, tristemente, também por mulheres nas ruas. Marginalizamos e atacamos implacavelmente uma mulher que teve fotos nuas vazadas, mas elegemos deputado federal Pedro Paulo (PMDB-RJ), acusado de espancar a ex-esposa. Culpamos uma adolescente estuprada por 33 homens no Rio de Janeiro, mas aplaudimos Casey Affleck, ator e diretor investigado por assediar duas assistentes.

Termino com alguns questionamentos da brilhante Chimamanda Ngozi Adichie, cantados em uma música da cantora Beyoncé:

“Ensinamos meninas a se inferiorizarem, a se fazerem menores. Dize­mos a meninas: você pode ter ambição, mas não muita; você pode se em­penhar para ser bem sucedida, mas não tão bem sucedida, porque pode ameaçar seu homem. Por ser mulher, esperam que eu almeje me casar; que eu tome todas as decisões de minha vida sempre me lembrando que o casamento é a mais importante delas; o casamento pode sim ser uma fonte de alegria, amor e apoio mútuo, mas por que ensinamos as meninas a aspirarem o casamento e não ensinamos os meninos o mesmo? Criamos as meninas para que elas se vejam como competidoras; não por empregos ou conquistas, mas pela atenção dos homens. En­sinamos a garotas que elas não são seres sexuais da mesma maneira que os meninos são. Feminista: uma pessoa que acredita na igualdade social, política e econômica dos sexos”.