Caso do estagiário demitido após postagens contra feministas mostra que as redes sociais não são terra sem lei e discurso de ódio não é opinião

Publicações de estagiário acabaram gerando repercussão negativa nas redes | Montagem/Reprodução-Facebook

Há um grande dilema moderno que me intriga muito: nunca sei se as redes sociais deram voz a um bando de ignorantes adormecidos, que destilam ódio e se encontraram na reprodução de preconceitos, ou se o ambiente digital, por democratizar a (des)informação, encoraja as pesso­as a compartilharem todo tipo de idiotices sem o mínimo de reflexão.

Na última semana, um estagiário de engenharia civil do Paraná acabou dispensado por uma construtora após causar polêmica no Facebook com declarações em que atacava os direitos humanos e o movimento feminista, sempre acompanhadas de fotos em empreendimentos da cons­trutora. “Analisando um projeto hidrossanitário da Rede Esgoto por onde vai passar os argumentos das feministas, aborteiras etc”, dizia uma das publicações.

A decisão (correta) foi aplaudida por diversos internautas, que conseguiram entender que, além de inapropriados e preconceituosos, os comentários do estudante não se enquadravam no tipo de profissional que a empresa procurava para seu quadro de funcionários. Independentemente do posicionamento político do dono — disseram se tratar de um deputado “de esquerda” —, não dá para levar a sério um rapaz que faz piada com uma luta secular, que garantiu acesso das mulheres a, por exemplo, o voto popular. De forma reducionista, ignorante e até infantil, os “questionamentos” não passavam de ataques gratuitos — e preconceituosos.

No entanto, a polícia do politicamente incorreto — que tem como grandes ícones o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) e humoristas como Rafinha Bastos — logo saiu em defesa do pobre rapaz, vítima de “intolerância” e dos “esquerdopatas”. Fizeram um mutirão na página do Facebook da construtora para avaliá-la negativamente, criticando o “atentado à liberdade de expressão”.

Sem a menor ideia do que se trata o artigo 5º da Constituição Federal de 1988, dezenas de usuários copiavam e colavam o mesmo texto, dizendo que a empresa estava cerceando o direito à opinião do dispensado. Primeiro que é importante definir o que é “liberdade de expressão” — que pouco tem a ver com o caso acima. De fato, as garantias individuais permitem que cada um pense e se expresse da maneira como quiser, sem censura, justamente para evitar que haja opressões de qualquer tipo. No entanto, existem sim parâmetros claros: delimitados pelo abuso do poder, que acaba descambando ao preconceito, à injúria, à calúnia, à difamação e ao desrespeito.

Quando foi informado que tais co­mentários não eram condizentes com os valores e que colocavam em xeque o nome da empresa, não houve, de forma alguma, uma tentativa de censurá-lo. Na verdade, trata-se de uma restrição legítima, pois, mesmo que em nenhuma das fotos aparecesse o logo, ele trabalhava para a marca. O argumento da construtora foi claro: “Apesar das fotos terem sido feitas em nossos empreendimentos, ressaltamos que não reflete a opinião do grupo, mas particular”. Vários manuais modernos de como se portar nas redes sociais, em especial, no que diz respeito à vida profissional são claros: jamais se deve colocar um comentário ou informação que possa causar controvérsia e abra margens para questionamentos sociais.

Ao atacar feministas, sugerindo, inclusive, que só homens são capazes de descarregar um caminhão de cimento, o jovem demonstra seu completo desconhecimento das pautas defendidas pelo movimento e, acima de tudo, sua visão binária de um mundo que não pode ser (é não é) tão simplista. “Conservador declarado” — dei uma (desagradável) fuçada no perfil do jovem —, são recorrentes as postagens de cunho agressivo a, por exemplo, mulheres que defendem o aborto (a quem ele se refere como “aborteiras”). Discurso extremista que incita o ódio não pode ser considerado liberdade de expressão. Por mais que os “politicamente incorretos” tentem argumentar que são “meras” opiniões, fica claro o significante intimidador naquelas palavras.

Ademais, é preciso lembrar que as bases de fundação do artigo 5º e, na verdade, de toda a Constituição Cidadã é dar voz, garantir e favorecer os oprimidos, as minorias, aqueles que não fazem parte do chamado “establishment” (ordem dominante, política e economicamente). Portanto, pode-se dizer que o texto combate a apologia à violência e a incitação ao ódio muito mais do que os assegura. Um jovem que se utiliza de seu lugar social privilegiado para zombar da luta de milhares de mulheres, historicamente injustiçadas que vão às ruas pedir igualdade de gênero, na busca por condições equânimes, não pode querer se fazer de vítima em uma situação como essas. De fato, o tom jocoso de todas suas postagens mostra como tudo aquilo não passava de uma grande diversão.

Nos dias de hoje, sob as falsas máscaras da liberdade de expressão e do humor, pessoas como o “ex-estagiário” — que acabou ganhando emprego em uma empresa que comunga com os mesmos pensamentos — destilam ódio e reforçam os preconceitos. É papel da sociedade, como um todo, impedir que a violência — seja de gênero, cor, orientação sexual ou posicionamento político — continue a ser banalizada. Esse sim é o preceito da Cons­tituição que precisamos empunhar.