Os sertões como cenário literário em Goiás

23 outubro 2024 às 17h09

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*Abilio Wolney Aires Neto
Os sertões brasileiros, como cenário literário, têm sido explorados por inúmeros autores que capturam as complexidades da geografia, da cultura e das pessoas que habitam essas regiões. Através de uma leitura comparada entre os livros Os Sertões de Euclides da Cunha, Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, Ermos e Gerais de Bernardo Élis e outros regionalistas brasileiros, podemos entender como cada autor aborda e representa o sertão de maneira única, mas entrelaçada por uma preocupação comum: a condição humana diante de um ambiente adverso e as forças sociais que o moldam.
Em Os Sertões (1902), Euclides da Cunha apresenta uma obra multifacetada que mistura jornalismo, ciência, e literatura. O livro surge como uma tentativa de narrar e analisar o conflito de Canudos, ocorrido no final do século XIX. Euclides divide sua obra em três partes: A Terra, O Homem e A Luta, nas quais o autor apresenta uma visão determinista da interação entre o meio ambiente e o ser humano. O sertão é descrito como um lugar inóspito, agreste, marcado pela seca e pela dificuldade de subsistência. Para Euclides, o sertanejo é antes de tudo “um forte”, moldado pela hostilidade do ambiente e pelo isolamento geográfico e social.
O autor utiliza o sertão como um microcosmo para discutir as desigualdades sociais e os efeitos da exclusão. A obra tem um caráter épico, mas também trágico, pois, na sua visão, a civilização e o progresso acabam por esmagar as tradições e a cultura sertaneja.
Enquanto Euclides da Cunha vê o sertão como um cenário de forças externas e inevitáveis, Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas (1956), adota uma abordagem mais introspectiva e filosófica. Rosa transforma o sertão em um lugar mítico, uma paisagem da alma onde se desenrolam dramas existenciais profundos. O romance, narrado por Riobaldo, um jagunço que percorre o sertão, explora questões universais como o bem e o mal, o destino e o livre-arbítrio, e o amor.
Ao contrário de Euclides, Rosa mergulha na psicologia de seus personagens, mostrando o sertão não apenas como um lugar físico, mas como uma metáfora da vida, com seus desafios, incertezas e ambiguidades. O sertanejo, na visão de Guimarães Rosa, é alguém que vive em constante conflito entre o pragmatismo brutal da vida no sertão e os dilemas éticos e filosóficos que moldam sua existência.
Se Euclides da Cunha trabalha com um determinismo geográfico, Rosa revela um determinismo existencial, onde o sertão é o palco para as complexas batalhas internas dos indivíduos.
Bernardo Élis, em Ermos e Gerais (1978), traz outra visão do sertão, centrada nas interações entre as forças sociais e a vida cotidiana dos sertanejos de Goiás. Bernardo Élis, um dos maiores regionalistas do Centro-Oeste brasileiro, foca sua narrativa na exploração das injustiças sociais, da opressão do poder sobre os mais fracos e da resistência dos sertanejos. Seus contos trazem uma abordagem mais direta e realista, mas sem deixar de captar o lirismo e a poesia do sertão goiano.
Élis oferece uma perspectiva semelhante à de Euclides da Cunha no que diz respeito à denúncia das condições sociais adversas e da violência, mas com uma ênfase maior no microcosmo social e nas relações de poder. Os personagens de Bernardo Élis são vítimas das elites locais, do coronelismo, e do sistema de exploração, retratando o sertão como uma terra de conflitos sociais intensos, onde a força e a astúcia determinam a sobrevivência.
Enquanto Euclides da Cunha usa o sertão como uma arena de confronto entre civilização e barbárie, e Guimarães Rosa transforma o sertão em um espaço de reflexão filosófica, Bernardo Élis oferece um panorama mais social e crítico, retratando o sertão como um cenário de luta diária contra as injustiças e a opressão.
Outros autores regionalistas brasileiros exploram o sertão como palco de dramas sociais e existenciais. Graciliano Ramos, em Vidas Secas, traz o sertão nordestino como um cenário árido, onde a luta pela sobrevivência é o tema central. O sofrimento das personagens, especialmente de Fabiano e sua família, é apresentado em uma linguagem seca e direta, que reflete o desespero e a resignação dos sertanejos diante da fome e da miséria.
Rachel de Queiroz, com O Quinze, oferece uma perspectiva feminina sobre a seca e a vida sertaneja, narrando o êxodo de uma família em busca de sobrevivência durante a grande seca de 1915. Em sua obra, o sertão é retratado com uma mistura de compaixão e realismo, revelando a força e a resiliência das mulheres sertanejas.
Em comparação, Os Sertões de Euclides da Cunha pode ser lido como uma grande crônica histórica e sociológica, onde o sertão é o palco de forças maiores que o indivíduo, como a natureza, a política e a guerra. Em Grande Sertão: Veredas, o sertão se torna mais íntimo, uma paisagem da alma, onde o conflito se dá principalmente no campo da ética e da filosofia. Ermos e Gerais, por sua vez, se aproxima da visão de Euclides ao mostrar a luta dos oprimidos, mas com um foco mais específico nas dinâmicas sociais locais, especialmente no contexto do sertão goiano.
Todos esses autores utilizam o sertão como uma metáfora maior da condição humana, onde a adversidade, a luta pela sobrevivência e as questões de identidade estão sempre presentes. Eles entrelaçam o determinismo geográfico com o determinismo social e existencial, mostrando que o sertão, com todas as suas dificuldades, também é um espaço de resistência, beleza e questionamento profundo sobre o lugar do homem no mundo.
Dessa forma, o sertão na literatura brasileira é muito mais do que um cenário físico. Ele é um símbolo de luta, solidão, conflito e introspecção. Para Euclides da Cunha, o sertão é um lugar onde o homem é moldado pelas forças da natureza e pelo isolamento, evidenciando a resistência e a resiliência do sertanejo. Para Guimarães Rosa, o sertão é um campo de batalha metafísico, onde o bem e o mal, o amor e o medo coexistem em uma dança constante, revelando o interior das almas de seus personagens. Já para Bernardo Élis, o sertão é uma representação mais direta da luta social e da opressão dos mais fracos, um lugar onde as hierarquias de poder são constantemente questionadas e desafiadas.
Quando olhamos para outros autores regionalistas, como Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz, notamos que o sertão é, antes de tudo, um espaço de sobrevivência, onde o drama humano é vivido em sua forma mais nua e crua, revelando as tensões sociais, familiares e pessoais que definem a experiência sertaneja.
A interseção dessas obras nos permite entender o sertão como um conceito literário dinâmico, que varia de acordo com o olhar de cada autor, mas que sempre retorna a questões fundamentais da condição humana: o isolamento, a luta, a opressão, a identidade e a resistência. O sertão, nesse sentido, transcende a geografia e se torna um lugar simbólico de profundas reflexões sobre o ser humano e seu papel no mundo.
Assim, tanto em Os Sertões de Euclides da Cunha, em Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, quanto em Ermos e Gerais de Bernardo Élis e em outras obras regionalistas, o sertão é mais do que um lugar físico. Ele é um espaço onde o homem e a sociedade se revelam em suas mais intensas contradições, lutas e buscas por significado.
Abilio Wolney Aires Neto

- Juiz de Direito titular da 9ª Vara Civel de Goiania.
- Delegado Adjunto da ABRAME-GO
- Expositor espírita, ex- Presidente do Núcleo Espirita Casa de Jesus em Anápolis-GO, onde é co-mantenedor com Delnil Batista, o presidente.
- Co-fundador/mantenedor do Lar de Maria em Dianópolis-TO.
- Titular da Cadeira 9 da Academia Goiana de Letras, Cadeira 23 do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás -IHGG, Membro da União Brasileira de Escritores-GO e de outras Instituições literárias.
- Graduando em Jornalismo.
- Acadêmico de Filosofia e de História.
- Autor de 15 livros de história regional, poemas, crônicas, 3 de Direito. Em ebook inédito: Cristianismo Espírita.