Livro ‘Colheita’, de José Cândido Póvoa, nos leva na tela mental ao mirante da Serra Geral
15 julho 2022 às 15h33
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por Abilio Wolney Aires Neto*
É tempo de Colheita
O ceifeiro vai partir. Nos leva na tela mental ao mirante da Serra Geral, andar onde começa o outro lado mundo, erguido em altiplanos a perder-se no azul da imaginação do menino que deixou a terra sem querer. E parte nas suas crônicas rumo aos contrafortes do maciço central do Brasil, embalado num sonho, naquele ondear longínquo de chapadas esplêndidas, imitando cordilheiras, quadros naturais imponentes em região alpestre num tumultuar de morros, para nos sugerir Euclides da Cunha.
Vai como o retirante, saudoso ante o contraste belíssimo do seu anfiteatro de esculturas geológicas espetaculares, entre muralhas a pique. Galga os “portões” daquele horizonte, convocado pela vida, no paradoxo da amplitude dos gerais e o fastígio das montanhas.
Por ali, a luz da Lua beija, em silêncio, a beleza melancólica das amplidões que ficam como um convite de regresso, mesmo que tardio.
Nos fala da sua vocação e nos remete ao Colégio, às freiras da Congregação das Escravras em Dianópolis.
Cândido Póvoa nos faz pensar como Mário Quintana: O passado não tem seu lugar. Está sempre no presente, frase tantas vezes utilizada pelo Mons. João Magalhães.[1] É todo saudade, como se pudéssemos rescitar: Olha o que o vento traz antes da chuva chegar…[2]
Em Reminiscências o nosso cronista beira a poesia, tão sua em Poemas Azuis, obra com a qual debutou em livro. E viajamos com ele num dossel de estrelas, no firmamento do sertão. Dialogamos com a escumilha da noite, louco por ter deixado a própria aldeia. Só outro poeta para entendê-lo:
Ora (direis) ouvir estrelas! Certo perdeste o senso. E eu vos direi, no entanto, que, para ouvi-las, muita vez desperto e abro as janelas, pálido de espanto… E conversamos toda a noite, enquanto a via láctea, como um pálio aberto, cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, inda as procuro pelo céu deserto”.[3]
Seu livro é vida que dá a vida. Algo de poesia da natureza no ciclo multimilenar de nascer no seio da terra com a indagação filosófica: de onde viemos, por que estamos e para onde vamos. A semeadura é livre; a colheita é obrigatória. De fundo reprisa a mesma indagação dos sábios da Grécia antiga. Anota como saudoso cronista que as pessoas especiais sempre nos deixam assim, no vazio da incerteza. Rebusca-se, como a se procurar no deserto das doces ilusões que desertaram ante os embates do tempo e das provações, que nos aprovaram para os dias seguintes. Da alegria de superar-se no campo da consciência, quando nos fala do amor, de volta ao futuro, contanto que ele retome a direção da terra natal. É um vocativo:
Não amaldiçoeis a vossa terra sonhando com outras terras. É para o azul que se olha e não para a poeira do chão. E o céu é azul em qualquer terra.[4]
Bela sinestesia: Das suas floradas no início das primaveras, apenas o perfume guardado em minha alma. Embarga-se. Lágrimas que não caem da comporta dos olhos… Saudades guardadas numa ânfora de cristal.
Na crônica Coincidência o historiador se mostra num prosoema, recordando os anos 80, quando Dianópolis recebeu as antenas de televisão pela primeira vez. Em dado momento, o avião decola. Parece cena de filme. O Cel. Danton é chamado pelo rádio avisando que José Cândido ficou para traz. A aeronave vai ganhando a altura de cruzeiro quando o piloto faz a manobra e em minutos retorna à pista de pouso para buscá-lo. Conversávamos sobre o episódio, quando descobri que Cândido Póvoa fora eleito Vice-Prefeito de Dianópolis em 1972 para o 1º mandado do Prefeito Hercy Ayres Póvoa, diplomado pelo MM. Juiz de Direito Dr. Anésio da Rocha Brito, que marcou época na Terra das Dianas.
Colheita é algo que tem pressa da suavidade do vento soprando ao prenúncio do arrebol, tangendo pendões do canavial, das plantas do quintal. Trigais maduros que capeiam a obra do ilustre dianopolino.
O Escritor José Cândido Póvoa emerge na crônica, como o ceifeiro cuidadoso a jugular as mãos dos que poderiam trucidar as flores. Alinhavou sua prosa evitando que os frutos fossem abortados no instante da germinação. Nos remete ao passado: Com a morte dos nove homens no massacre do tronco, a história de várias famílias sofreu uma interrupção…
A vida tem urgência de cantos ternos. Deixa-nos ouvir essa música de consolo tão inefável, como dizia Mozart. Decanta Dianópolis! Berço dos índios e tumba dos mártires.[5]
O mérito que esta obra traz ao seu autor destaca-se mais pela sua vinculação às origens, à sua casa, à literatura; o seu valor é testemunhado porque, contemporêneo a ele e aos fatos, conheceu os vultos assinalados na composição narrativa dos lances destacados, que repercutem na imaginação e levam a mente a reconstruir e tornarem-se as cenas mais valoradas, por exemplo: De fato, este álbum de crônicas tem a arte de prender o leitor, do término de uma cena sentir-se amarrado à leitura da seguinte.
A sua singularidades situa o trabalho em campo mais agradável e com ele o estilo elegante, linguagem polida, porém simples, como Guimarães Rosa, que coloca tão bem os seus pronomes.
A mais de tudo, o autor trata de fatos verídicos, acontecidos, razão pela qual se multiplicam os méritos. Há criatividade em atrair a atenção, conseguindo agradar sem cansar, conduzindo o leitor a destinar-lhe tempo sem economia de trabalho e afazeres.
A propósito da vivacidade de descendente da Inteligência dos Póvoa, o autor descreve, de forma agradabilíssiam. Belos lances em Uma Casa, Uma História, Chuvas do Caju, Reencontros… É arte, sim, e mete saudável inveja, o escritor sabe prender a leitura, geneticamente, é dom não deixar fechar a indagação da Colheita. Uma suave lei de causa e efeito – plantar e colher.
Dentro do enfoque que nos brindou, é-me impossível nesta rápida apreciação transcrever tudo que realmente senti, tomado de orgulho e prazer de conhecer o escritor, primo ilustre, imortal da Academia Dianopolina, circunstância que mais me honra e envaidece, pela distinção que me conforta e estimula.
Dianópolis sempre representou para nós o começo e o fim na trajetória. Começo de uma existência simples, pontilhada de vicissitudes, porém marcada por inquebrantável força de vontade, a qual nos tem acompanhado pelo mundo afora e servido, a um só tempo, de lenitivo e estímulo. Fim de todas as ambições sadias de servi-lo, nem que seja com páginas, com o resgate da nossa história, o nosso púlpito, o pretório. A vigilância para delatar os erros, colimando revivescer o meio onde nascemos.
Urge concluir: “Prefácio não é publicidade; é dignidade que se confere ao prefaciador; é honraria que se destaca; valor que se atribui ao escolhido; distinção quando se sabe que o salão da cultura é rico, excelente; não se deve retardar retendo o acesso a leitura, dançando à porta com as chaves na mão”.[6]
Vamos à leitura.
[1] AIRES NETO, Abílio Wolney. Um Homem Além do Seu Tempo, Ed. Kelps, 2009.
[2] Idem. O Duro e a Intervenção Federal, texto prefacial, Kelps, 2006.
[3] Poema A Via Lactea, de Olavo Bilac, o príncipe dos poetas.
[4] Frase do Dep. João d’Abreu.
[5] Frase de Voltaire Wolney Aires em sua obra debutante de Mensagens e Poemas.
[6] Adahyl Lourenço Dias ao prefaciar o livro “Troco e Outras Notas”, de João Asmar.
[7] Juiz de Direito, professor e escritor.