por Abilio Wolney Aires Neto*

O historiador e ensaísta escocês Thomas Carlyle dizia que a história da humanidade não é senão a essência de inúmeras biografias. Para ele, um dos principais deveres do homem é cultivar a amizade dos livros. Tudo o que a humanidade tem sido, feito, pensado ou lucrado, encontra-se como que magicamente preservado nas páginas dos livros e, portanto, os livros são amigos que nunca nos deixam mal. Uma vida bem escrita é quase tão rara como uma bem vivida. E diz, ainda, ele, que o homem nasceu para lutar e a sua vida é uma eterna batalha e um cidadão sem propósito é como um navio sem leme.

Antônio Oliveira põe a efeito a biografia do Homem Abilio Wolney, tão importante para se compreender os movimentos revolucionários de sua época no setentrião goiano-baiano, lá onde as fronteiras dos estados foram galopadas pelo estadista da Serra Geral. Norte goiano, hoje sudeste do Tocantins. Oeste baiano, hoje a próspera Barreiras, onde o autor se ambienta em livro denso, mergulhado nos conteúdos do início da República, no primeiro quartel do Século XX, enfiando-se nos socalcos do Planalto Central, quando uma hipótese geográfica foi submetida ao capricho da paixão e do poder da oligarquia mais violenta do Brasil.

Num belo aprumo de escritor, noticiarista, plumitivo e redator, se faz repórter dos autores que cita em sua obra recorrente aos textos dos que narraram essa página fulgurante de heroísmo libertário, de oposição aos mandos e desmandos, mas também tarjada de horrores, no ponto culminante do episódio nas aldravas do tronco, a reboque da Chacina do Duro, entre o barulho e os mártires em 1919.

Traz à colação, dentre outros, o escritor Godoy Garcia, para quem

Totó Caiado era em Goiás a lei e a borracha. Uma voz, uma única voz se levantou, de forma aberta contra o impulsivo sátrapa, a do Deputado do norte de Goiás, Abílio Wolney. Foi, nesse dia, um ato heróico. Voz destemida que se levantava, todos reconhecendo a temeridade daquela resistência, no vigor da atitude política que viria colocá-lo no pelourinho, hoje ou amanhã.

Godoy Garcia

É trabalho de pesquisa, no coleio dos fatos protagonizados, com a qualidade de resumir numa só obra a saga do protagonista, onde hoje está Dianópolis, sudeste do Tocantins, de par com Barreiras, oeste da Bahia. E vem com o sabor de um documentário jornalístico, resultado de anos de vivência na Terra das Dianas, colhendo aqui e ali da tradição oral, lendo tudo a respeito e descerrando o pano de boca dos acontecimentos, biografando, atravessando o épico, a política, o poder, a tragédia, as quedas e ascensões até o sequestro e morte dos nove ou dez reféns.

Rico nas fontes e bibliografia, documenta tudo, faz remissão aos anais do Diário do Congresso Nacional de abril de 1919, passa pelos autos do processo goiano que apurou as responsabilidades do Juiz e comissionados e esclarece em caracteres de monografia, com o arrojo de Dissertação.

E denuncia… A comitiva policial que forma a coorte do Juiz Celso Calmon visava ao final promoções e vantagens escusas; o soldado era um elemento despreparado, que não compreendia a própria função a desempenhar; era um medroso feito homem, desde que armado, assim escondido atrás da espingarda sobraçada, da comblain a tiracolo, feito uma canga dependurada no pescoço, e que no final só lutaria para não morrer; eram todos subornáveis, corruptos, porquanto sabiam que os donos do poder, os políticos que estavam por trás de tudo, não se preocupavam com ordem nem justiça, senão com medidas capazes de assegurar seus votos, suas eleições. Abílio era uma oposição perigosa no nordeste goiano, com os arroubos de chefe local.

Por aí vai o jornalista Antônio Oliveira, pervagando essas estradas que deram um épico e que o vai consagrando como escritor. Nos remete ao dia 20 de Dezembro de 1918, como narrei alhures:

No raiar do dia foi ter o magistrado capixaba ao Buracão. Na retaguarda, o Tenente Catulino, o cabo Mathias e o civil Alexandre, seu cabra particular, mais o Escrivão ad hoc Guilherme Ferreira Coelho. Vão desarmados à fazenda do “inimigo”, ficando na Vila a força pública e os comentários nos aquartelamentos: – Como é que o juiz saiu em segredo, sem avisar a tropa? Dizem que foi fazer a busca e apreensão do Inventário. Trincheiras abertas no cume dos morros e algumas tranqueiras pelo flanco das colinas. Garantidos desde a noite anterior, amanheciam de bruços, outros com os olhos fixos por trás de colmos, dedos enclavinhados nos fechos das armas, tocaiavam a estranha visita.

Antônio Oliveira

Todo o comando maior entendia a ordem subliminar do magistrado. Ao oficial de justiça cabia ler o mandado e a polícia faria o resto. Ou melhor, a polícia faria tudo, e depois o Oficial de Justiça faria a leitura dos mandados.

Tinir de ferros, patadas de cavalos em galopes afoitos, legião de fardas negras como a noite e homens, todos portando pistolas, rifles e carabinas à baioneta calada para estripar. Difícil descrever com minúcias os planos de selvageria em meio ao tilintar das armas, augurando aqueles presságios para o romper da aurora.

Lá estavam no alto do Buracão. Na umbria da serra e da mata que a cingia, a fazenda ainda permanecia no crepúsculo da alvorada, prenunciando rara perspectiva para o amanhecer: um grande ciclo em percurso de cumeadas circundando as casas do vale como uma cordilheira de vertentes envolventes, eriçadas de penedos a esmo e em cerros emendados em círculo, à maneira de grande coliseu.

Tiros estalam ao prenúncio do arrebol. No canavial, desflaldavam os pendões ao vento matinal. A paisagem amortalhada da noite agora clareava as árvores acolhedoras que, pela sua paz ao rumorejar do vento leve, faziam do trecho fúnebre um paradoxo incompreensível. Uma vasta rede de criminalidade, calúnia, maledicência e morte reboavam como opressão das hostes do poder que um dia galgou, do qual agora já era deposto de deputado a reputado inimigo. Estava posta a toga da falha justiça humana, conjugada com parlamentos e decretos conspirando para a lei da força.

Noutro lance, o autor põe Os Sertões de Euclides da Cunha nos gerais da Bahia, em gostosa metáfrase:

Ao cair da tarde, muito baixo no horizonte, o Sol descia vagarosamente, tangenciando o extremo das chapadas remotas do oeste baiano e o seu último clarão, a cavaleiro das sombras, que já se adunavam nas baixadas, caía sobre o dorso da montanha… Aclarou-o por momentos. Iluminou, fugaz, a frota jagunceira, que se aproximava de Barreiras. Os seus últimos raios cintilaram nos píncaros altaneiros à distância. Estes fulguravam por instantes, como enormes círios, prestes acesos, prestes apagados, bruxuleando na meia-luz do crepúsculo.

Euclides da Cunha

E com eles vem a noite. Brilharam as primeiras estrelas. Rutilando na altura, a cruz resplandecente de Órion, alevantava-se sobre o sertão da Bahia. Sob a umbela do céu escampo, os bandoleiros chegavam a Barreiras, onde aportaram a mando dos seus chefes. Na mesma noite reforçaram o aparato bélico com a aquisição de mais arma e 40.000 (quarenta mil) cartuchos ali comprados e emprestados por amigos em reforço à munição que vinha nas patronas.

Enquanto isso, em São José do Duro, um cenário horrível dava palco ao interior do Sobrado, com os reféns agonizando em vida. A soldadesca abre buracos cada vez mais de uma casa a outra para o intercâmbio fácil dos milicos de quartel a quartel.  Improvisam trincheiras a mais do interior dos seus QGs.

Do pavimento superior, o alferes Ulysses ainda comandava o Sobrado com um mosquetão de sabre à bandoleira, uma pistola e um punhal, ouvindo de dentro os tiros que vinham de fora, de onde os jagunços deflagravam carabinas, clavinotes, winchesters, sendo rechaçados pelas armas da polícia, que bem entrincheirada nos quartéis impediam a aproximação definitiva do inimigo, batendo com os rechinos duros dos trabucos e fuzis, com o zunido cheio e sonoro de comblain; com os sibilios finos de mannlicher, transvoando a todos os pontos: sobre o âmbito das linhas para todos os lados; sobre as casas próximas aos quartéis.

A Chacina Oficial, Kelps, 2ª ed, 2013

Como resposta, tiro nos miolos. Nos ombros. No coração. Tórax broqueados a bala. Desse modo, o acme da insurreição se ia marcando por espantosa carnificina, com todos sangrados, sumariamente sarjados a faca e a pontaços de baionetas. Sobre o peito de todos desenhava-se, em recalque forte, a lâmina do sabre estocado.

De tempo em tempo estourava uma deflagração luminosa, traçando em segundos nova listra de lampejos dos três lados sitiantes. Sucediam-se novas réplicas, coruscando como relâmpago do alto do Sobrado, no estrépito da batalha invisível… Súbita quietude sobrepõem-se ao atroar furioso da guarnição fugitiva. Não retiravam, fugiam na última debandada, folgadamente. Deserções “heróicas”, compreensíveis, em que o soldado se aventura aos maiores riscos.

Ali, no tronco, um quadro dantesco, macabro. Tochas mortiças, candeeiros e a cena pungente: Esticados na presilha, estavam sete mortos, além de outros dois num quarto contíguo, todos expostos num sacrifício singular: faces horrendas, empastadas de escaras e de sânie; braços inteiriçados repontando desnudos, num retesamento de angústia; mãos espalmadas e rígidas, mãos contorcidas em crispaduras de garras, apodrecendo, sinistras, em gestos tremendos de apelos excruciantes.

Rompe a aurora nublada… Amanhece o dia. As vivendas derruídas e esburacadas a bala delatavam o regime de desmandos consumado no vilarejo. Esteios e traves, cercas arrombadas e invadidas de mato, velhas roças em abandono mostrando em derredor, indelével, o rastro da Expedição do Governo.

Enfim, chega Abilio Wolney… Lágrimas ardentes misturavam-se aos seus soluços de irremediável aflição naquele tremendal das paixões humanas. Diria ele ao posterior comando da Intervenção Federal:

Às autoridades de Goiás eu não me entrego. Fujo ou brigo. Prefiro abandonar tudo quanto possuo ou morrer lutando a entregar-me à polícia do meu Estado e morrer com o pé no tronco.

Pois a “justiça” ali passava, deixando seus rastros, a viuvez, a orfandade, em traços de selvageria. À Vila subjugada impuseram o regime do sadismo, promovendo os aleijões, ceifando vidas, como anotaria o Major do Exército:

Se nesta exposição em que procuramos pôr em exercício a máxima imparcialidade, são encontrados períodos que possam merecer o qualificativo de apaixonados, foram eles ditados pelo mais acurado sentimento de justiça, revoltado passo a passo contra a brutal e hedionda tragédia, ornamentada pela mais torpe covardia e pelo mais repugnante cinismo, cuja reconstituição foi-nos dado fazer em nossa peregrinação por aquelas regiões quase desconhecidas de nosso imenso país.

Cadáveres… Todos trajando vestes empastadas do lodo do início da decomposição. E marcados, estampando os estigmas de sofrimentos cruciantes, o ferrete infame do mesmo gênero de morte no madeiro horizontal do tronco: cicatrizes sanguinolentas, retalhadas, confusas, num emaranhado de golpes e sobre golpes, em tudo agravado pelo início da putrefação. Velas de cera quase abafadas, vasquejavam crepitando, revivendo ao sopro da viração do entardecer e chofrando precípites clarões sobre aquele limpo, onde foram amortalhados. E o choro convulso, exausto sob o excesso das lágrimas.

Hoje o local é uma praça pública, onde o mausoléu dos mártires é uma igrejinha, erguida sobre os despojos de seus próceres inocentes e coberta por um bosque onde o sussurro das frondes, balouçadas pelo vento, oferece a paz, ante a dor que só se esquece no perdão. (O Diário de Abílio Wolney, Kelps, 2. Ed)

Acaba o Barulho em São José do Duro. Fim da tragédia, bem nos moldes da República Velha. Na parede, à esquerda de quem entra, uma lápide em mármore branco o epitáfio.

E Antônio Oliveira dialoga com autores outros:

O discurso do magistrado aos seus chefes políticos é bem o retrato fariseu-hipócrita do seu tempo, valendo bem as palavras que usou para ele próprio, pois as suas atitudes deixaram efetivamente “rolar no lamaçal da politicagem vesga e odienta” a imparcialidade que deve aureolar a sublime função de um Juiz de Direito.

Questão que merece a nossa observação diz respeito à colocação pontualmente trazida da obra Quinta-Feira Sangrenta, segundo a qual

Nem com a irmã ajoelhada aos seus pés, o Cel. Abílio recuou. “São apenas encenações e ameaças covardes para conter nosso ataque. Meu maior amigo era meu pai e não atendi ao seu chamado na hora extrema… vamos atacar”, disse o Coronel a sua irmã. E entraram na cidade disparando “a torto e a direito”. A tropa militar respondia, entre o medo e a falta de armas e munições a altura dos sitiantes. Alguns praças já começavam a fugir, tomando o rumo de Natividade.

Quinta-Feira Sangrenta

É que a narrativa do escritor Osvaldo Póvoa é contextualizada com um antes e um depois que aparecem mais claramente na 4ª edição da obra daquele valoroso autor, quando faz remissão aos autos dos processos judiciais que apuraram os fatos e o Relatório da Intervenção Federal nos trazem um Abílio Wolney refém dos chefes que contratou para a retaliação contra a morte do pai e o assalto surpreso à Vila para libertar os reféns do tronco. Nunca conseguiram entrar na cidade disparando “a torto e a direito”. Os reféns foram fuzilados três dias antes dos sitiantes conseguirem fechar o cerco da Vila.

O enfoque jornalístico do autor desta obra instiga o leitor, num entrecho de repórter… Nos fala do escritor Bernardo Élis ao trazer a colocação de que havia uma horda de jagunços a serviços do ‘coronel’ destituído de repente das graças do governo estadual. Abilio Wolney nunca teve qualquer graça do governo dos cunhados de Totó e foi um solitário deputado de oposição, trabalhando em três mandatos dentro da cidade de Goiás. São José do Duro era um povoado com a feição de fazenda, num quadrado de casas que talvez não chegasse a 30 vivendas.

Segundo o Relatório do Exército, no lado dos sitiantes não houve baixa. Entretanto houve autores citados pelo autor que afirmaram que “policiais e jagunços tombavam sobre muros, telhados das casas e sobre o chão do largo da Vila e os policiais aumentavam a pressão sobre os prisioneiros, como se estes fossem criminosos”. O Relatório do Ministério do Exército, em sede de Intervenção Federal, é claro na conclusão da minuciosa sindicância: “Não houve qualquer baixa do lado do Governo”…

De tudo, uma reflexão do autor nos chama a atenção:

Bernardo Élis encerra seu romance, segundo ele com personagens fictícias, porém com fatos centrais narrados, “tirando pormenores, que aconteceram realmente em Goiás”, com uma longa narrativa da fuga do Coletor e seus comparsas. Nada da dor do Cel. Abílio Wolney, seus amigos e parentes.

Algo inovador em Antônio Oliveira… Ele percute a questão da vida além-túmulo, no maravilhoso capítulo Reflexos do “Barulho” no “outro lado da vida”, onde traz à colação comunicações psicofônicas do início dos anos 80, constantes do livro Mensagens e Poemas do Além, de Voltaire Wolney.

Quanto à abordagem da direção que o cinema deu ao episódio é bem analisada na Segunda Parte da obra, onde o autor trata do “Barulho” no ambiente cinematográfico, apontando os erros publicados em livro. Fala da queixa-crime proposta contra o Diretor do Filme O Tronco, que não foi julgado, posto que tida como decadente no tempo.

De tudo cuida o autor… Fala da repercussão dos fatos na imprensa nacional da época, as manchetes… A investida das forças federais, quando da Intervenção da União, culminando num relatório ao Ministério da Guerra, com conclusões, como lembra o autor, que corroboram com o objetivo do seu trabalho: trazer a público as verdades desse fato da história de Goiás e parte da Bahia que foram ocultados por interesses pró-fama literária e políticos. Eis o texto final do Relatório da Intervenção Federal em Goiás, elaborado pelo Major do Exército, Álvaro Mariante, publicado na Imprensa Oficial em 1919, cuja cópia foi encaminhada ao Congresso Nacional para providências:

Recapitulando agora, depois de compulsar os documentos colhidos, longe do teatro dos fúnebres acontecimentos que nos foi dado estudar em pondo em exercício a máxima imparcialidade e os mais acrisolado sentimento de verdade e de justiça, podemos concluir em síntese:

A- Os lamentáveis acontecimentos de São José do Duro derivam da ação política e administrativa dos atuais dirigentes do Estado de Goiás;

B- Há indícios de que o Governo do Estado cabe grande responsabilidade ao fúnebre desfecho do conflito;

C- A autoria da polícia goiana nos assassinatos de Buracão e São José do Duro é irrefutável;

D- A ação de autoridades estaduais orientadas pela facção política dominante no Estado é perigosa e pode ser contraproducente;

E- A ação de autoridade federal estranha ao conflito ou a simples presença da tropa do Exército naquela região pode, bem orientada, fazê-la voltar ao trabalho pacífico e produtivo.

Álvaro Mariante

Lembra do vulto pacificador do Deputado Francisco Rocha, médico e então Intendente de Barreiras, que se pôs a cavalo na direção de São José do Duro, como segurança e norte ao Chefe do Estado Maior do Exército Brasileiro.

O trabalho do autor evoca um épico de lances dolorosamente heroicos, embaído nas cenas fortes, pois o mártir é fadado ao martirológio. Refunde a linguagem parafraseada para traspor novamente os Sertões, agora para dentro de um Sobrado:

Em seguida, a Comitiva foi levada ao Sobrado, onde se deu a tragédia que ceifou vidas alheias às intrigas políticas. Narra o Dr. Abílio Neto esta visita: “Adentrou a penumbra, sendo-lhe mostrado os recantos escuros dos quartos onde estiveram os reféns. Era preciso valor para atravessar aqueles compartimentos lúgubres, de cujas portas e janelas mal se divisava em reflexo pálido do dia, mostrando em paredes alvinitentes do seu interior, cabriolando, doudamente, a caligrafia da Chacina nos riscos de sangue esguichados entre os pontos escarificados a ponta de instrumentos a literatura rude da selvageria”. Uma página demoníaca daquele período curto, incisivo, arrepiador, delatando os horrores daquele campo de operações. No chão batido dos rastros haviam turbilhonado na vozeria das vítimas: paixões, ansiedades, esperanças, desalentos indescritíveis – reflexo das agruras que os alancearam. E não podiam encontrar melhor cenário para ostentarem a forma mais repugnante da hediondez do que o esterquilínio de cadáveres e trapos, imersos na obscuridade lôbrega do calabouço em que se transformou o prédio do Sobrado em São José do Duro …”

Sobrado

Lembra o autor que a agroindustrialização, fruto do seu trabalho de difusor da idéia em sua Revista Cerrado e em Jornais, hoje é prática bastante defendida nas fronteiras agrícolas do oeste da Bahia e sudeste do Tocantins.

Na Quarta Parte da elaboração, o autor traz a razão do nome do seu livro, epigrafando os reais fatos da história, que apontam um Wolney totalmente oposto aos rancores e atraso dos legítimos coronéis. Com quase 20 anos de vida pública e com 37 anos de idade o biografado vê seu sonho morto na carreira política promissora em Goiás. A Bahia o receberia para governar Barreiras. Traça o empreendedorismo do protagonista e de seu pai Joaquim Wolney, este que, segundo o autor, foi daqueles homens que se doaram à política sem interesses pessoais, apenas objetivando o bem comum. Nomeado Intendente do São José do Duro, cargo em que permaneceu por pouco tempo, promoveu realizações muito a frente de seu tempo, como obrigar que os pais mantivessem seus filhos na escola. Ele doava seus proventos à causa da educação. Em 15 de setembro de 1894, promulgou a Lei nº 1 autorizando a abertura de um crédito para a Viação e Obras Públicas (espécie de secretaria municipal) para arcar com os custos que cabiam ao Município, criado em 24 de agosto de 1884, mas só instalado em 1890, na construção de uma estrada que ligaria Porto Nacional, na região central do antigo norte goiano, até Taguatinga, no antigo nordeste de Goiás. Partindo de Porto, a estrada serviria – como ainda serve – os municípios de Natividade, Duro, Conceição, Palma (hoje Paranã), Arraias e Santa Maria de Taguatinga.

No diálogo, agora com seus leitores, lembra o autor que, inserido numa sociedade eminentemente Católica, Abilio Wolney já admitia os fundamentos espíritas. Tinha ele um conceito muito além de seu tempo sobre religião e espiritualidade. Talvez seja ele um dos primeiros simpatizantes da doutrina codificada, em 1857, pelo pedagogo francês Hipolite Lion Denizard Rivail, Allan Kardec, no norte de Goiás e até no Brasil, conforme anota ele em seu Diário em 1904.

Fantástico o Capítulo Abílio Wolney na Bahia. Tenho um livro inédito a respeito e o trabalho do escritor Antônio Oliveira me servirá como bibliografia. Barreiras carece desse resgate. Outro dia me deparei com o livro de um escritor, que se diz da região, mas que só encontra defeito nos vultos barreirenses. Nenhuma virtude nos Rocha, nos Balbino e pouca coisa no Intendente Abilio Wolney, que idealizou o projeto de irrigação de milhares de hectares pela represa e dutos de São Desidério, cidade onde construiu o primeiro mercado municipal, mas onde deixou algum despeito a adversários dos Rocha. Homem do seu tempo e político que foi a vida toda, naturalmente terá os seus ‘versários’ e os adversários, dada a própria lógica das facções nos pleitos eleitorais, filiado a partidos nas sociedades goiana e baiana, onde exerceu cargos continuados e longos. Não veio ao mundo para ser unanimidade, pois no mundo não há. Não se conhece um político que não seja visto à luz, pelos que o amaram, ou à sombra, pelos que o odiaram.

Dizia o Presidente Kennedy que o segredo do sucesso ninguém sabe, mas o do insucesso certamente é querer agradar a todo mundo. Do orientalismo, o Dalai Lama nos traz alguma sabedoria ao observar que pouco importa o julgamento dos outros. Os seres são tão contraditórios que é impossível atender às suas demandas, satisfazê-los. Tenhamos em mente simplesmente ser autêntico e verdadeiro e isso o protagonista foi. De um franqueza e autenticidade que causava espécie, segundo todos os seus biógrafos, mesmo os que o focaram com os óculos da maledicência.

Nas duas viagens de pesquisa que fiz a Barreiras anos atrás, ouvi colocações sinceras como as que o escritor Antônio Oliveira ouviu e anotou, em regra destacando todos os valores do protagonista, mas também noticiando coerentemente o boatejar de um ou outro descendente de rancorosos adversários políticos de Francisco Rocha ou mais diretamente do vulto insuperável de Geraldo Rocha em Barreiras, por quem Abílio Wolney foi indicado para ser o Interventor (Prefeito) da urbe entre 1932 e 1937, por razões de ligação de amizade e trabalho, como o autor desta obra detalha no Capítulo referido.

E o fio da meada das insinuações, sem um fato concreto, está por conta daquele autor, que não tem autoridade para falar sobre Barreiras e que pouco crédito mereceu nas linhas microscópicas de um livro sem altitude, onde ataca de modo irresponsável homens que construíram o oeste da Bahia. Tem ele uma inclinação psicológica de censurar, lançar dúvida e intriga sobre os que foram bons para a região, para ver se desse agressão lhe resulta algum destaque e ele possa sair do próprio ostracismo de uma vida apagada e brilhar à custa da luz dos que tiveram luz. Forja-se em mentiras boquejadas e mal urdidas em comentários isolados, que teria ouvido de um ou outro, que lhe contou, por ouvir dizer, sem tradição oral ou informe da mente coletiva de Barreiras.

O tal autor, cujo nome deixo de lançar para não lhe dar fama, que não merece, tem por capricho roborar os seus doestos, colhendo os estigmas da luta sem luta de São José do Duro, num sofisma, entre ironias e invectivas. Parece subsumido num quadro psicológico tormentoso, pois, segundo Young, ele vê no outro aquilo que ele próprio é por dentro. Atira no próximo o que é e nega ser. Uma projeção da própria sombra. Ou se não é, porque não conseguiu ser, despeita-se dos personagens por aquilo que gostaria de ser, mas não teve e pelo visto não terá oportunidade de desvelar. Então, recalca-se… O único personagem que mereceu luz nas suas “biografias” de homens tão importantes para Barreiras foi a sua mãe, que muito bem desempenhou o ofício louvável de merendeira de uma Escola Pública da rede local.

E como a calúnia é como um amontado de penas lançadas do alto de um edifício, recentemente alguém escreveu sobre São Desidério desdobrando a notícia plantada pelo primeiro de que no governo de Abilio Wolney em Barreiras, o então Distrito e hoje município de São Desidério teria um senhor, filho de alguém que fora vítima da truculência policial do regime da ditadura Vargas ou do governo de Juracy Magalhães, que nomeou Abílio para a Prefeitura local. Ora, o governo de 30 era o da Revolução de Getúlio e o governador da Bahia nomeava o interventor. Se algum policial bateu em alguém, como acontece em qualquer governo, ainda hoje, se algum “boi remeteu” (sic) na rua ou na ação de policiais nos anos 30, como ainda ocorre nos nossos anos 2.000, é preciso sindicar qual autoridade o consentiu, se o governante ao menos soube do fato. Se os ódios políticos diziam respeito ao governo federal ou estadual da época ou se era do alcaide municipal, naturalmente tido como adversários pelos inimigos de partido.

As fotografias de época em Barreiras mostram um Abílio Wolney envolvido em eventos religiosos, publicando no seu Jornal O Tempo, construindo a ponte São João, na saída de Barreiras para São Desidério ou sob a notícia de edificações no então Distrito, planejando e separando as terras no platô da Serra para a construção do Aeroporto de Barreiras, lá mesmo onde está hoje, idealizando para São Desidério a barragem que propiciaria a irrigação de milhares de hectares de terras, o que está lá, tudo isso e mais narrado pelo autor Antônio Oliveira. O valor de um dirigente de povo se mede pelo alto percentual de satisfação da comuna e não pela mágoa de uma ou das pessoas do bloco natural de oposição política, saudável, quando é saudável.

Antônio conseguiu entrevista com a ex-vereadora, pedagoga e historiadora barreirense, Ignez Pitta de Almeida, que disse com a autoridade local, que só ela tem:

Talvez por não ter encontrado mais clima político – mesmo com o desmoronamento da estrutura caiadista – e sentimental para permanecer na sua cidade natal, o Cel. Abílio Wolney veio morar em Barreiras, onde sempre gozou de prestígio político e de simpatia da sociedade local. Não veio fazer política. Quem sabe buscava a paz. E a buscou exercendo a profissão de farmacêutico, com farmácia própria e muito bem montada. Mas, antes, tão logo se aportou naquela cidade, fora convidado pela família Rocha – Geraldo Rocha e Francisco Rocha – para gerenciar a Sertaneja Agro-Pastoril S/A, uma empresa de propriedade dos Rocha. Fruto do visionário e empreendedor Geraldo Rocha, a empresa era o que é hoje um grande complexo agropecuário, agroindustrial e de agronegócio. Administrava fazendas de cultivo e cria; um grande frigorífico, para aquela época; aviário e abate de aves; cruzamento industrial de gado, etc. Mais além desses ramos, a Sertaneja administrava uma companhia de energia elétrica, cuja usina geradora, construída por Rocha, e movida por um canal puxado por ele, do Rio de Ondas, nas imediações daquela cidade, até a usina, hoje em ruínas e em zona urbana. Nesta Companhia, Wolney foi um realizador, correspondendo com o espírito empreendedor dos Rocha, principalmente do idealizador do complexo, Geraldo Rocha. Certa vez, enfrentando as dificuldades da falta de uma ponte sobre o Rio Grande, que divide ao meio todo o perímetro urbano daquela cidade, os donos da Sertaneja incumbiram Wolney a dar solução ao problema. Com sua excepcional inteligência e noção de várias atividades das ciências humanas e exatas, o ex-deputado goiano constrói um ajoujo. Na verdade, uma grande balsa presa a um cabo de aço ligando as duas margens do Rio e que se movia de uma margem a outra, transportando pessoas, carros, animais e mercadorias, movida pela correnteza d’água. Era a única que se tinha conhecimento na região oeste da Bahia. No final dos anos 1920, Abilio Wolney elege-se vereador e torna-se presidente do Conselho Municipal (mesma função exercida hoje pela Câmara de Vereadores). Chegou a prefeito de Barreiras, entre 1932 e 1937 por indicação de lideranças políticas locais ao então Interventor da Bahia, Juraci Magalhães. Foi um tocador de obra e entre suas principais iniciativas, como constam nos anais dos poderes Legislativo e Executivo deste município baiano, destacam-se, entre outras, a construção da estrada ligando Barreiras ao povoado de Sítio do Mato; o primeiro aeroporto do Município, no Vale, onde hoje esta o loteamento – habitado – São Pedro e o Hospital Regional do Oeste; ligou Barreiras, via ponte sobre o Rio Grande, município de São Desidério e às demais localidades na direção sul do Município (Correntina, por exemplo). É dele, também, o Projeto de Irrigação Barreiras/São Desidério, construído e administrado pela Companhia de Desenvolvimento do São Francisco e Paranaíba (Codevasf). Em funcionamento até os dias de hoje o sistema, muito avançado para época, irriga, a partir de uma represa construída na cidade de São Desidério, a aproximadamente 30 quilômetros de Barreiras, mais de 3 mil hectares de terras para cultivo e cria. Ainda em Barreiras, como veículo de informação, integração e ideal político, fundou e dirigiu o jornal “O Tempo”, um semanário, conforme este se definia, “político, noticioso e literário”. O periódico era dirigido por seu amigo João Gualberto D’Almeida . Naquela época, por meio de seu jornal ou nas tribunas das atividades social e política, Abílio Wolney já defendia a criação do Estado do São Francisco – emancipação da região oeste -, cuja bandeira se reacendeu décadas depois e permanece viva, embora falte-lhe lideranças fortes e unidas no seu propósito. Com sua grande inteligência e visão de estadista, o Cel. Abílio Wolney pensou, criou e sugeriu muitos projetos de interesse de seus dois estados de atuação – Bahia e Goiás – e do Brasil.

Ignez Pitta de Almeida

                          Dizia Marco Túlio Cícero, filósofo romano do I Século: A história é a pedra de toque que desgasta o erro e faz brilhar a verdade.

                          Vamos ao livro…

                          Goiânia, maio de 2014.