Salatiel Soares Correia, especial para o Jornal Opção

Belíndia é um país fictício, criado, nos anos 1970, pelo economista Edmar Bacha.
Esse país é o resultado da junção de dois países de realidades contrastadas: a Bélgica, desenvolvida; e a Índia, subdesenvolvida. As leis e impostos dessa Bélgica pequena e rica são aplicados, nesse país, que tem a realidade social da Índia.

Para melhor esclarecimento ao leitor, reproduzo um trecho da fábula: “O rei da Belíndia: uma fábula para tecnocratas”.

“Era uma vez, um reino situado num longínquo rincão a meio caminho entre o Ocidente e o Oriente, denominado Belíndia. Por aquele reino, passou certa feita um economista. Tão impressionado ficou o monarca com o visitante que de imediato o contratou para estimar a taxa de crescimento da Belíndia… O rei compreendeu então que o Produto Interno Bruto (PIB) era uma espécie de Felicitômetro dos ricos.”

E, por que razão, afinal, ficam os ricos felizes com o modo que o mais famoso indicador da economia é calculado? Eis a resposta: por esse indicador colocar, na mesma cesta, a riqueza gerada pelos ricos e pobres. Sendo assim, o número expresso provoca distorções, na realidade, pois trata desiguais como iguais. Resultado: ao não ponderar a participação da riqueza, gerada entre ricos e pobres, a média resultante disso não reflete a realidade de um país rico como a Bélgica, imerso numa realidade, socialmente, drástica como é o caso da Índia.

Moral da história: o exemplo de que nos fala o doutor Edmar Bacha reflete o quanto de falseamento da realidade existe quando se analisam investimentos públicos, considerando todo agregado expresso por médias com o único objetivo de enganar o público, que se deseja desinformar.

Estabelecidos os cuidados, que um analista sério, compromissado com a verdade dos fatos, deve ter com os indicadores e as grandezas agregadas, eu convido você para avaliarmos um artigo publicado, há alguns dias, num diário local por um mensageiro a Garcia, não sei dizer se dele mesmo ou da instituição, que ele representou—a ENEL.

Posto isso, vamos aos fatos e argumentos.

Primeiro: O Paradoxo dos investimentos em energia
Os dados, apresentados pelo autor, sem referência de fontes, induzem o leitor a uma conclusão falaciosa: de que os investimentos da Enel vêm construindo, do ponto de vista da energia, um paraíso para o povo de Goiás, aqui mesmo, na terra. Será?

Para isso o mensageiro apresenta ações da seguinte ordem: investimentos—de 2017 a 2021—de R$ 5,7 bilhões; antecipação de investimentos, visando melhorar não só a qualidade, como também atender as exigências do órgão regulador. O autor apresenta, como grande resultado, a melhora dos indicadores de Duração (DEC) e Frequência de desligamento (FEC). Só para esclarecer a leitores não muito versados nesse assunto, esclareço: o DEC e o FEC mensuram melhora ou piora na qualidade da energia. Desse modo, quanto mais decrescem esses indicadores, maior será a duração de desligamento e pior será a qualidade da energia. Por outro lado, quanto esses indicadores crescerem, pior será a qualidade da energia fornecida aos consumidores. A respeito disso, esse mensageiro, sei lá, se nomeado ou autonomeado, para levar a mensagem a Garcia, o povo de Goiás apresenta um quadro de sensível melhora na qualidade da energia em Goiás, quanto a esse assunto, fala o mensageiro: “quanto à duração média, ou seja, o tempo médio que os goianos ficam sem energia ao ano, a Enel precisa chegar a 12,18 horas em 2022 e hoje está em 18,80.”

Resumindo: a Enel investiu, pesadamente, e esses investimentos resultaram numa melhora contínua da qualidade de energia. Será? O compromisso que tenho, na condição de formador de opinião é mostra o outro olhar sobre a energia e, Goiás. Para isso, procurarei não cometer o desatino de argumentar sem citar fontes.

Foco meus argumentos na construção de outra realidade centrada nos documentos—sempre explicitando a fonte oficial, expressa pelo órgão regulador do Setor Elétrico Brasileiro—a Aneel.
Documento Desempenho Global de Continuidade (DCG)

Esse documento avalia o Desempenho Global de Continuidade. Na verdade, esse indicador é resultante da média entre o DEC e FEC. Quanto maior ele for, mais comprometido ficará o sistema. Com isso, a qualidade da energia piora. Por outro lado, quanto mais decrescer esse indicador, melhorará a qualidade de energia

Considerando os resultados obtidos pela Enel, em 2021, no tocante a esse índice para unidades de mais de 400 mil consumidores, no universo de 29 empresas pesquisadas, o desempenho da Enel, nos estados do Rio de Janeiro, Ceará e Goiás apresentaram resultados, altamente, comprometedores, no tocante à Continuidade do Fornecimento de Energia elétrica. Aos números :Enel Rio de Janeiro: 23º; Enel Ceará 25°, Enel Goiás :27°

Estabelece-se, assim, um paradoxo: de um lado, o mensageiro aposta na melhora da qualidade da energia. De outro, considerando a continuidade da energia fornecida, a Enel encontra-se ranqueada nas últimas posições do Setor Elétrico Nacional. Nesse sentido, vale ainda ressaltar que a empresa é uma das campeãs de reclamação no Procon.

Segundo: a avaliação agregada esconde as desigualdades regionais.
Nesse sentido, vale ressaltar alguns pontos da fala do mensageiro. Esses, certamente, ser-nos-á útil para responder uma pergunta, que merece resposta a quem a Enel serviu? Vamos, pois, ao que disse o mensageiro.

“Há poucos dias, foi entregue o sistema de alta tensão de Cristalina, beneficiando uma das maiores áreas irrigadas da América Latina. Mais de R$.. 90 milhões investidos pela Enel.”

Depoimento como esse acima, evidencia para que parte da Belíndia destinam-se os investimentos da Enel. Ou seja: atender ao grande capital, representado entre nós pelo agronegócio e o capital industrial. A índia da Belíndia não interessa às empresas multinacionais. Dito de outro modo: empresas dessa natureza focam sua expansão capitalista em regiões onde o potencial de crescimento da economia é grande. Por outro lado, pouco se interessam por regiões de baixo crescimento econômico. Como Goiás são quatro dentro de um só, regiões inseridas nos dois primeiros goiases (o que cresce por modernização e o que cresce por modernização e expansão de espaço) sempre serão preferidos. Por outro lado, os outros dois goiases (o que cresce por incorporação de espaço e o Goiás, que não cresce) ficam a margem do processo de desenvolvimento.

Moral da história: como pouco interessa atenuar as desigualdades regionais, o goiano, que mora na próspera Rio Verde, tende a ficar mais feliz com Enel do que aquele goiano, que vive em Cavalcanti. E, assim, a empresa, que atende ao crescimento econômico, jamais será um instrumento de indução do desenvolvimento. Decididamente, atenuar os desequilíbrios regionais vão de encontro aos interesses da expansão capitalista em torno de sua atratividade maior: o lucro.

Terceiro: E os ganhos de produtividade? Quem se apropria deles?
Eis aí onde mora o pulo do gato: os ganhos de produtividade, que a população não vê mais sente. Produtividade, que se eleva de várias maneiras: demitindo gente, mudando a estrutura organizacional, implantando inovações tecnológicas. Enfim, medidas como essas refletem em enormes economias de escala. E isso vale dinheiro, muito dinheiro. Nos meus tempos de Setor Elétrico, a lei era bem clara: tais ganhos deveriam ser repartidos entre a empresa e a sociedade. Especificamente, nesse ponto, cabe, aqui, uma indagação: quem se apropria dos ganhos de produtividade: A Enel? A sociedade goiana? Eles estão sendo partilhados entre a Enel e a sociedade?

Nesse sentido, cabe aqui uma constatação: vozes do mercado revelam a espetacular valorização da Enel, comprou uma empresa falida por dois bilhões e, hoje, num curto espaço de tempo, vale mais de 8 bilhões. Enquanto isso, o consumidor absorveu, via tarifa, pesadíssimas elevações no custo da energia. Isso posto, deixemos que os órgãos competentes respondam o incomodo questionamento de quem se apropriou dos ganhos de produtividade.

Encerro esta longa matéria citando o grande pensador Francês Paul Valéri no momento em que ele refletia em torno da sociedade que o cercava: “que somos nós senão uma fantasia organizada?” Talvez, o mensageiro a Garcia (está curioso em saber quem é?), no seu meio século de Setor Elétrico, possa responder a indagação que nos inquieta.

Salatiel Soares Correia é :Engenheiro, Administrador de Empresas, Mestre em Energia pela Unicamp. É autor, entre outros livros, de A Construção de Goiás.