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A 26ª Marcha a Brasília em Defesa dos Municípios, realizada de 19 a 22 de maio, revela o clima político que começa a se desenhar para 2026. Com pauta hostil para o governo federal e com independência política cada vez maior do Executivo (e maior dependência de emendas ao orçamento do Legislativo), os prefeitos vaiaram o presidente Lula (PT) três vezes em seu discurso enquanto aplaudiram governadores e líderes do Congresso. 

Historicamente, os municípios tiveram desvantagem em suas relações com os governos estaduais e federal. Enquanto têm a obrigação de reforçar a fiscalização para a coleta de impostos como o ICMS, o mais importante imposto para os estados, têm pouca voz nos conselhos e fóruns que decidem para onde vão os recursos. As cidades são os lugares onde as pessoas vivem de fato, os municípios têm proporcionalmente maior encargos em prestação de serviços e são cobrados pela população em um nível mais direto e imediato. Como resultado, recorrem ao “pires na mão” — dependem de repasses como o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Há ainda repasses “carimbados” para fundos de custeio de áreas como educação e saúde, em que não há discricionariedade dos gestores. 

Esse jogo de forças começou a mudar nos últimos anos, entretanto. Com maior fatia do orçamento sendo definida pelo Legislativo por meio de emendas parlamentares, caiu a necessidade de os prefeitos estarem politicamente alinhados aos governadores e ao presidente. Uma boa métrica para verificar esse fato é a comparação do número de prefeitos do PT eleitos em 2008 com o número eleito em 2024 — ambos sob presidência de Lula da Silva (PT). 

Em 2008, o PT fez 554 prefeitos; o segundo partido a fazer mais administradores de municípios naquelas eleições, mas o primeiro em número de capitais: foram seis. O PSDB teve mais municípios, 786 no total, mas comandou “apenas” duas capitais. Já em 2024, o PT fez 252 prefeituras, e por pouco não ficou sem nem uma capital: Evandro Leitão venceu com 50,38% dos votos válidos em Fortaleza. Hoje, os gestores municipais são principalmente de partidos com maior presença no Congresso — PSD, MDB, PP, Republicanos. 

A situação gera uma pressão nova — do Executivo municipal sobre o Executivo federal. Em parte, na marcha dos prefeitos em Brasília, a Confederação Nacional de Municípios (CNM) o de sempre: aumento do FPM e outros repasses (querem reajuste anual de 1,5%). Mas boa parte das demandas de hoje seriam impensáveis em 2008; e só foram possibilitadas pela tranquilidade proporcionada pelo orçamento secreto. A entrega das obras feitas com emendas parlamentares construiu palanques Brasil adentro. 

A CNM demanda maior participação das associações de municípios nos fóruns e conselhos nacionais, com participação no Conselho Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) da Reforma Tributária. Quer estar autorizada a propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs). Querem principalmente aprovação da Pec da Sustentabilidade Fiscal (66/2023); que estende regras da Reforma da Previdência a estados e municípios; equiparação das regras de benefícios dos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) municipais às da União (Reforma previdenciária) e a desvinculação de receitas. 

Na marcha em Brasília as vaias contra Lula revelam algumas fragilidades. Primeiro, o presidente negligenciou em 2024 as eleições municipais. Não veio a Goiânia, por exemplo, onde sua candidata esteve em segundo lugar nas pesquisas por boa parte da campanha. Segundo, suas propostas estão em desajuste com o zeitgeist: o espírito dos nossos tempos indica pulverização do poder — o poder sobre o orçamento se divide; os estados adquirem mais independência; se fala mais em vocações locais do que em cadeias de cooperação. 

A pauta de Lula vai na direção contrária: a PEC da Segurança preconiza o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP); a reforma tributária centraliza em Brasília os recursos dos impostos para depois distribuí-los; o crescimento induzido pelas estatais significa centralização da produção nas mãos do governo. É um projeto legítimo, mas está em profundo desarranjo com a visão de mundo dos prefeitos — daí as vaias. 

Ronaldo Caiado (UB) fez discurso diametralmente oposto e colheu aplausos. O governador de Goiás disse: “Querem transferir a arrecadação para um comitê gestor em Brasília, que depois passaria os recursos. Mas os gestores não foram eleitos para receber mesada. Eles têm capacidade de gerar desenvolvimento e precisam de garantias constitucionais de autonomia, tanto na área econômica quanto na segurança. Não podemos permitir retrocessos.” 

Sem entrar no mérito da efetividade das propostas, Ronaldo Caiado mostrou um discurso mais afinado com o modelo político do Brasil de hoje. Em parte, decorre desse tipo de atrito com a platéia a impressão de que a comunicação de Lula falha. Outra parte da irritação dos prefeitos é explicada pelo fato de que o presidente anunciou que 2025 seria “o ano da colheita”, que até agora não veio.