Há algo podre nas Forças Armadas
20 agosto 2023 às 00h01
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Nesta sexta-feira, 18, as Forças Armadas soltaram mais uma ameaça à sociedade civil no jornal Estadão. À jornalista Monica Gugliano, o comando chegou a afirmar que a Procuradoria Geral da República estaria “tripudiando” dos militares e que “essas ações” (talvez as investigações e responsabilização) têm um limite, a partir do qual não seria fácil acalmar nem o oficialato e nem tampouco os militares abaixo da linha de comando. Clara intimidação.
A semana foi de desmoralização para as Forças Armadas. Por um lado, o ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) se aproximou de uma delação no caso do roubo de jóias que envolve seu próprio pai, general do exército Mauro Lourena Cid. Por outro, o hacker Walter Delgatti afirmou na CPI do 8 de Janeiro, na Câmara dos Deputados, que redigiu relatórios pelo Ministério da Defesa e que a alta cúpula das Forças Armadas estava envolvida em tentativa de desmoralizar as urnas eletrônicas.
Walter Delgatti afirmou ter conseguido do Ministério da Defesa o código fonte do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ele teria redigido o documento utilizado pelas Forças Armadas para criticar o sistema eleitoral. Ou seja, o TSE imaginava estar dialogando com o Ministério da Defesa, mas conversava com o possível fraudador. O intermediário entre Delgatti e o ministro da Defesa (general Paulo Sérgio Nogueira) era o coronel goiano Marcelo Jesus.
O depoimento de Walter Delgatti não pode ser tomado por seu valor de face. Primeiro, porque o hacker é um oportunista profissional, que já “mudou de lado” diversas vezes e que parece disposto a tudo para salvar seu próprio pescoço. Em segundo lugar, porque Delgatti não apresentou provas de suas acusações, apesar de ter se disposto a encarar acareações. O depoimento, entretanto, não pode ser descartado, e abre novas linhas de investigação no caso da tentativa de golpe de Estado.
Semelhantemente, o tenente-coronel Mauro Cid parece ter se interessado pela delação dos colegas em troca de redução de punições. Na noite da quinta-feira, 17, o terceiro advogado a assumir o caso do militar provocou uma confusão na imprensa ao afirmar que ele iria delatar Bolsonaro. O criminalista Cezar Bitencourt disse que Mauro Cid assumiria que de fato vendeu nos Estados Unidos as jóias dadas por chefes de estado ao governo brasileiro, mas que fez isso por determinação do então presidente.
Na manhã da sexta-feira, Bitencourt encaminhou a jornalistas uma mensagem em que afirma que Cid “tem várias alternativas”, sinalizando que pode dar outro rumo ao caso. O estrago, entretanto, foi feito. Não é apenas Jair Bolsonaro quem se enrola; os militares de seu governo repleto de militares estão no epicentro de todas as suspeitas de corrupção.
O dano à imagem das Forças Armadas começou durante a pandemia de Covid-19, quando o general da ativa Eduardo Pazuello, como ministro da Saúde, e o da reserva Walter Braga Netto, como chefe da Casa Civil, guiaram uma política desastrosa e anticientífica. As tentativas dos senadores da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de identificar a culpa de miliares, entretanto, foi reprimida com ameaças.
Quando o senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da comissão, afirmou que o coronel Élcio Franco deveria se sentir envergonhado por negociar vacinas superfaturadas, recebeu de volta uma nota com os seguintes dizeres: “As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano”. Aziz exigiu em vão ser defendido pelo presidente do Senado, mas o que deveria ter respondido às Forças Armadas é: “Se não, o que acontecerá?”
O Brasil tem com as Forças Armadas uma história mal resolvida. Ao contrário de outros países latino-americanos, o Brasil nunca resolveu seu passado ditatorial. Ainda há entre nós as vítimas de tortura e aqueles que buscam corpos de parentes ocultados. Os militares, que nas casernas ensinam sua própria narrativa de glórias e nunca seus equívocos, ainda garantem que o regime militar foi o mal menor em face à ameaça comunista.
Essa disputa pela verdade histórica é injusta, entretanto. A sociedade aberta dos civis é permeada por críticas e versões, e possui um método de responsabilizar seus crimes que, mesmo que falho, se aproxima da imparcialidade e isenção. Já os militares, julgam a si mesmos via Processos Administrativos Disciplinares (PADs) – sindicâncias sobre as quais não dão satisfação alguma à sociedade civil que os sustenta.
Sob a justificativa de preservar a segurança nacional, os militares se tornaram reservados sobre seus próprios processos e membros. Nesse ideário romântico ufanista, defendem privilégios como as pensões eternas aos parentes de “mortos fictos” (uma pessoa viva que é considerada morta para jamais perder seus benefícios previdenciários). Alegam ainda que qualquer crítica é antipatriótica e um atentado às instituições do Estado.
Eles se confundem com o estado. Nas palavras do jurista e intelectual Sobral Pinto: “Os militares, tendo proclamado a República, julgaram-se donos da República. E nunca aceitaram não serem os donos da República. Enquanto os cargos eminentes do país não voltarem para os civis, nós estaremos nesta situação terrível em que nos encontramos, de falência e de corrupção.”
Entretanto, mesmo no governo de Lula da Silva (PT), o caminho que tomamos é inverso. O Ministério da Defesa, órgão que em todo país desenvolvido é comandado por civis, no Brasil está em mãos de militares. O propósito da pasta é justamente sistematizar as políticas públicas que guiam as Forças Armadas como a burocracia do Estado que são. A pasta, quando é civil, define ações de interesse de Estado. Quando é militar, define ações de interesse da casta militar.
Justamente pelo passado de violência mal resolvido, porém, há um pavor espesso no ar. Na imprensa, raramente se vê uma crítica enfática da instituição – que precisa rever urgentemente seu currículo e os quadros de sua cúpula – sem que o civil que comenta a situação faça uma ressalva, envergonhado: “Não são todos os militares, claro. A grande maioria é decente. Apenas uma ou outra maçã está podre.”
Felizmente, as últimas notícias propiciaram uma reflexão menos constrangida. Há algo muito errado nas Forças Armadas. Na sociedade aberta, é intolerável que civis financiem aviões que transportam jóias do Estado para o extrangeiro. É inaceitável que generais em missão no exterior vendam esses bens públicos. É insuportável ser ameaçado quando se sugere que a instituição precisa melhorar.