Durante a pesquisa para o meu mestrado, tive a oportunidade de estudar um pouco mais sobre os primeiros movimentos da política brasileira logo após o golpe civil-militar de 1964. Há detalhes que só um olhar mais demorado consegue identificar. Há palavras que não podem ser reduzidas às páginas dos livros escolares. Um documento que olhei demoradamente foi o primeiro Ato Institucional publicado no dia 9 de abril daquele ano. Era a primeira publicação dos novos donos do poder. Ali estão traçadas muitas linhas que iriam conduzir as ações da ditadura ao longo dos vinte e um anos de sua existência. Há também outras coisas que estavam escritas, mas que foram deixadas de lado. Sabe como é, né? “Teve uma revolução!”

Os militares não queriam que o movimento que depôs Jango fosse visto como algo ilegal, inconstitucional. Era preciso ter amparo jurídico para explicar a saída dos quartéis e a ocupação do poder. Para cumprir essa função, nada melhor que um expert no assunto. O nome do jurista Francisco Campos foi lembrado. Ele que redigiu a Constituição de 1937, que deu amplos poderes para Getúlio Vargas e deu início à ditadura do Estado Novo. Conhecido como Chico Ciência por causa do seu notório saber jurídico, lá estava o autor da Carta que deu amparo jurídico para a ditadura varguista presente em outro golpe de Estado. O cronista Rubem Braga escreveu sobre ele: “Todas as vezes que Chico Ciência resolve acender sua luz, há um curto-circuito nas instalações democráticas do Brasil”. No breu da Brasília recém-inaugurada, na democracia brasileira igual vela acesa em frente ao ventilador, Chico Ciência acendeu sua luz. Foi assim em 1937 e se repetiu em 1964.

A princípio, o Ato Institucional não foi numerado. Acreditava-se que os militares ficariam no poder até a posse do novo Presidente da República eleito pelo voto direto em 1965. Alguns aliados diziam que nem era preciso um ato igual aquele. Mas, lá estava o primeiro AI da ditadura. Pela primeira vez se reconhecia o movimento de 31 de março de 1964 como uma revolução. Está lá escrito logo nas primeiras linhas do perambulo, o texto de abertura do ato: “É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.”

Quando li isso mais atentamente durante minha pesquisa para o mestrado, me chamou muito a atenção. Quer dizer que o termo “revolução” surgiu numa canetada? “A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.” Como toda revolução, é preciso dizer que ela representava toda a população. E mais a frente se lê: “Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional. Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.” Trocando em miúdos, o Congresso Nacional só foi mantido aberto por vontade dos agora autoproclamados revolucionários. Foi ou não foi assim durante os 21 anos de ditadura? Várias vezes o Parlamento brasileiro foi cercado por tanques e soldados, várias vezes o Parlamento baixou suas portas por causa de alguma ordem vinda do Palácio do Planalto ou depois da publicação de um novo ato institucional.

A Constituição de 1946, que estava em vigor na época, também permaneceu. Não por causa da sua soberania sobre as demais leis e ações do Poder Público, mas porque a revolução assim a quis. Tanto é que, quando essa Carta não servia mais aos interesses dos militares, outra Constituição foi preparada tendo um Congresso acuado por Atos Institucionais mais agressivos do que fora publicado no dia 9 de abril de 1964. Eu fiquei muito impressionado quando li com mais atenção o que aquele documento trazia em seu teor. O tempo passou, mas Chico Ciência continuava afiado.

Os artigos que seguiam depois do perambulo tratavam sobre as eleições para Presidente e Vice-Presidente que aconteceriam dias depois e os seus plenos poderes. A escolha caberia ao Congresso Nacional. O artigo segundo dizia que o mandato do Presidente eleito naquele abril de 1964 terminaria no dia 31 de janeiro de 1966. Isso não aconteceu. Estava tudo ali redigido: o movimento que virou revolução, o Congresso mantido pelo Ato Institucional e o Presidente da República com plenos poderes. As entrelinhas do primeiro AI da ditadura diziam muita coisa sobre os rumos que o Brasil tomou depois do 31 de março de 1964. Não tem como não começar sobre os estudos da política brasileira sem ler com os olhos demorados este documento.