Lutador intransigente pela preservação dos rios e da natureza em geral, Leolídio Caiado defendeu o meio ambiente em livros e centenas de artigos de jornais, cujos títulos expressavam a urgência de seu libelo

Fui lembrado pelo doutor Bento Fleury de que neste ano se comemora o centenário de nascimento do advogado, sertanista e ambientalista Leolídio Di Ramos Caiado – nascido na Cidade de Goiás em 27/06/1921 e falecido em 12/06/2008 –, patrono da Cadeira n° 3 no Instituto Cultural Bernardo Élis Para os Povos do Cerrado, o Icebe.

Durante a refundação dessa instituição, em 2020, o patronímico se deu em razão de minha admiração por sua luta em prol da preservação da natureza e do meio-ambiente, particularmente dos rios, e em lembrança à grande amizade que unia “Leco” – como era conhecido Leolídio pelos mais próximos – a Bernardo Élis. Eram parentes, ambos descendentes pela linhagem Fleury, do bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva (o primeiro “Anhanguera”) e, mais longinquamente, do Cacique Tibiriçá, anfitrião na fundação da Vila de São Paulo de Piratininga – atual Cidade de São Paulo – em 1554. 

Tibiriçá, protetor dos jesuítas fundadores daquela vila, era pai de Bartira (M’Bicy), esposa do português João Ramalho, octavós de Rosa Maria de Lima Camargo (“Mãe Grande”) que, casada com João Fleury Coelho (“Fradinho”), são patriarcas da Família Fleury e tetratavós de Leolídio. “Leco” era, portanto, tetradecaneto (14° neto) do Cacique Tibiriçá e tridecaneto (13º neto) de Bartira e João Ramalho. 

Não por acaso, ao escrever sobre o livro “Dramas do Oeste” (1951), autoria de “Leco”, Bernardo Élis perscruta: “As viagens, especialmente a regiões pouco conhecidas, exercem excepcional fascínio sobre nossas imaginações. Será atavismo do bandeirismo?”. Leolídio foi um desbravador dos sertões, intransigente defensor dos índios, das águas e do meio-ambiente. Em seu caso, seria atavismo de seus avós mamelucos-bandeirantes, índios Guaianás e de seu tetravô Manuel Cayado de Sousa?

Família

O luso Manoel Cayado de Sousa, acima citado, foi o primeiro desta família a singrar os sertões de Goiás, há 250 anos, e fixar-se nas matas da Paciência, às margens do Rio Uru, na região da antiga capital, onde recebera uma “carta de sesmaria de meia légua de terra (equivalente a 225 alqueires goianos)”, de acordo com a historiadora Lena Castello Branco Ferreira de Freitas. Os descendentes do patriarca se estabeleceram, parte em terras goianas e parte na região do atual estado do Espírito Santo, onde também se dedicam à agropecuária, ao cooperativismo e às profissões liberais, até os dias atuais.

Dentre os membros dessa família que permaneceram em Goiás estão o trisavô de Leolídio, José Caiado de Sousa que deixou grande descendência com pendor para a política: seu bisavô Antônio José Caiado chegou a ser presidente da província ao final do Império (1883-1884) e no início da República (1892-1893); o avô Torquato Ramos Caiado foi senador estadual de 1905 a 1908; e seu pai, Leão Di Ramos Caiado (n. 25/03/1888 – f. 28/06/1974) – professor, advogado, fazendeiro e funcionário público da Receita Federal – assim como o bisavô e avô, dedicou-se à política no plano regional, sendo senador estadual pela 10ª Legislatura (1925-1928), reeleito para novo mandato iniciado em 1929, até ser destituído pela Revolução de 1930.

Leão Caiado fora levado à política pelo irmão Antônio Ramos Caiado (n. 15/05/1874 – f. 20/03/1984), icônico líder do Partido Democrata “Totó Caiado”, que protagonizou a vida política de Goiás entre 1912 e 1930. Durante o primeiro período em que Leão Caiado foi senador estadual, governou Goiás seu irmão Brasil Ramos Caiado (n. 17/05/1893 – f. 28/08/1959), cuja presidência do Estado durou de 14/07/1925 a 12/03/1927.

O ex-deputado Leão Di Ramos Caiado Filho – irmão de Leolídio – informa uma particularidade sobre o “Di”, que antecede o Ramos Caiado no nome de seu pai e de todos os descendentes desta linhagem, inclusive Leolídio: “Tendo Torquato Ramos Caiado nascido em um domingo de Ramos, celebrou o nascimento do filho Leão, também vindo à luz neste dia santo cristão, acrescentando o ‘Di’ (prefixo latino para dois), antes do Ramos”. “Duas vezes Ramos”, explica. Corroborando a informação, todos os demais filhos de Torquato Ramos Caiado, e seus descendentes, mantêm o “Ramos Caiado” original, sem o “Di”. Daí, Leolídio Di Ramos Caiado, o “Leco”.

O pai de Leolídio casou-se com Illydia Maria Perillo Caiado (apelidada “Iaiá”), filha de Francisco Perillo Júnior (várias vezes deputado e senador estadual) e da vilaboense Illydia Augusta de Campos Curado Fleury (n. 02/12/1866), terceira filha do desembargador Jerônimo José de Campos Curado Fleury (1833 – 1887) e de sua prima Augusta Henriqueta de Pádua Fleury (1846 –1909). Do enlace matrimonial de Leão Caiado e Illydia Maria nasceram dez filhos – todos batizados com a letra L no início do nome, conforme a melhor tradição dessa linhagem da família Caiado – sendo Leolídio o quinto: Leonina, Leonita, Leoni, Leonice, Leolídio (“Leco”), Leovídio, Leolice, Leão Filho, Leonino e Leonardo. O irmão Leonino Di Ramos Caiado viria a ser Prefeito de Goiânia (1969-70) e Governador de Goiás (1971-75), assim como o primo Ronaldo Caiado, quase cinquenta anos depois. 

O pendor para a escrita herdaria “Leco” da mãe, homônima com sua avó. Escritora, Illydia publicou seus trabalhos no jornal literário “A Rosa”, fundado por seus primos Josephina Caiado Fleury e Heitor de Moraes Fleury. 

Estudos

Leolídio estudou as primeiras letras em sua terra natal, seguindo em 1932 para o Ginásio Arquidiocesano Anchieta de Bonfim, atual Silvânia, GO. Retornou à casa paterna dois anos depois, para estudar no Liceu de Goiás. Em 1941 matriculou-se no Curso Agrícola Bethlem, preparando-se para o vestibular em Realengo, RJ, cursando no ano seguinte a Escola Preparatória de Cadetes, em Fortaleza, CE. No biênio 1943/44, cursou a Escola de Aeronáutica do Campo dos Afonsos, Rio de Janeiro, tornando-se piloto-aviador internacional no Aero Club de Manguinhos, diplomado pela Federation Aéronautique Internationale.

Uma viagem marcaria a trajetória de “Leco” e sua iniciação na carreira de sertanista e ambientalista. No ano de 1945, integrou uma expedição de levantamento topográfico do Vale do Rio Tapirapés, convidado pelo Marechal Cândido Rondon. Essa expedição visou realizar estudos geológicos, botânicos, zoológicos e etnográficos para a conclusão da Carta Geográfica de Mato Grosso.

Após a marcante viagem, “Leco” cursou o Preparatório Luiz Pasteur (1946), concluindo o curso científico no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. No ano seguinte, iniciou seus estudos preparatórios na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, transferindo-se para Goiânia, onde ingressou a Faculdade de Direito de Goiás, atualmente da UFG, na qual se tornou advogado.

Cronista

Os trabalhos de Leolídio em defesa do meio-ambiente se iniciaram em 1948, ao ser contratado pelo governador Jerônimo Coimbra Bueno para o Serviço de Caça e Pesca, a fim de fiscalizar a destruição causada por caçadores e pescadores no Vale do Araguaia.

Nessa função integrou a Expedição Hermano Ribeiro (1950), de escopo científico, idealizada pelo médico Paulo Carlos Smith de Vasconcellos, a fim de estudar fauna, flora, habitantes, costumes e afluentes do Vale do Araguaia. 

Lutador intransigente pela preservação dos rios e da natureza em geral, Leolídio Caiado defendeu o meio ambiente em livros e centenas de artigos nos jornais, cujos títulos expressavam a urgência de seu libelo: “O Araguaia de Hoje”, “Como salvar o Araguaia”, “Araguaia”, “Nossa Natureza”, “O homem e a natureza” e, “Reforma Agrária”, “O cobiçado Eldorado”, “Barreira da Meridiba”, “Colonização”, “Tocantins” e “Araguaia – cheia, estio e pioneiros”, foram alguns das centenas dos artigos escritos pelo “último sertanista” – apelidado pelo jornal Diário da Manhã – ao longo de 50 anos atuando na imprensa goiana. 

Na crônica “Rios imaculados”, por exemplo, publicada no jornal O Popular, de 02/06/1987, Leolídio dá mostras de sua ênfase na denúncia à atividade garimpeira: “O faiscador, para a sua sobrevivência, por alguns cruzados [dinheiro da época], não sabe o mal que está causando, envenenando as águas. O mercúrio elimina a vida aquática e contamina o organismo humano por intermédio da cadeia alimentar. O mercúrio, para separar o ouro das impurezas, corrompe as águas, destrói a vida animal e os seres humanos. As aves aquáticas, animais anfíbios e outros predadores que se alimentam de peixes morrem após algum tempo sob os efeitos tóxicos.” E arremata, defendendo as águas: “A fiscalização dos rios é mais importante que fiscalizar a fauna, porque não poderá haver vida num local contaminado. Portanto, para haver a fiscalização da fauna, antes de tudo é preciso conservar as águas despoluídas.”

Política

Leolídio Caiado mantinha-se à parte da atividade partidária que tanto absorveu e apaixonou suas famílias paterna e materna ao longo de 140 anos, desde que seu bisavô presidira Goiás pela primeira vez. Entretanto, num raro momento de desabafo político, escreveu o artigo “Decretão de Guerra”, publicado na coluna Página Aberta, do Diário da Manhã de 29/04/1985. Leolídio, que dirigira a Secretaria de Meio Ambiente (Semago) até 15/03/1983, protesta contra a insinuação de desvios em autarquias pelo então governador Iris Rezende (1983-1987), do PMDB. Iris imputara as dificuldades financeiras vividas pelo estado em seu governo, a supostas irregularidades no governo anterior de Ary Valadão (1979-1983), do PDS. 

A situação financeira do estado foi a justificativa para que Iris assinasse o “Decretão” (Decreto 2.201, de 21/03/1983), que demitiu milhares de servidores estaduais. Leolídio termina o artigo apelando ao governador pelo retorno dos atingidos pelo “Decretão de Guerra”, particularmente os demitidos da Semago, “a maioria eleitores do PMDB”, de acordo com o ambientalista. O governador voltou atrás e readmitiu grande parte dos servidores. 

Tempo depois, por ocasião dos escândalos do Banco do Estado de Goiás (BEG) e da Caixa Econômica Estadual (Caixego) que marcaram as eleições de 1998 em Goiás, e levaram Marconi Perillo e seu Tempo Novo ao poder estadual, Leolídio escreveu a crônica “Eleição do Rombo” (republicada no livro “Acontecimentos”, p. 261-62) apenas para protestar contra a prisão de um então adversário político de sua família: “Um ilustre médico, de bom conceito, conhecido e estimado em Goiânia, proprietário de conceituado hospital, Dr. Otoniel Machado, suplente de senador de seu irmão Iris Rezende, processado e preso, teve os bens imóveis indisponíveis e outros sofrimentos humilhantes. Não acreditamos nessa história. O doutor Otoniel foi o ‘bode expiatório’”. Assim era Leolídio Caiado, que sabia levantar a voz para protestar, quando necessário, mas não se comprazia com o que considerava injusto, ainda que fosse um adversário político. 

Livros

Leolídio Caiado iniciou-se como escritor em 1952, contemplado pela Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos de 1946 – da Prefeitura de Goiânia –, com “Expedição Sertaneja Araguaia-Xingu (1945)”, onde relata suas observações durante aquela jornada científica, também denominada Vieira da Rosa. Recebida a láurea quando tinha apenas 25 anos e era acadêmico de Direito, Leolídio Caiado juntou-se a outros seis escritores também ganhadores desse prêmio literário até a publicação de seu livro: Bernardo Élis (“Ermos e Gerais – contos goianos”, 1944); Veiga Neto (“Antologia Goiana”, 1944); Americano do Brasil (“Nos Rosais do Silêncio”, 1947); José Godoy Garcia (“Rio do Sono”, 1948); Eli Brasiliense (“Pium”, 1949); Mário Rizério Leite (Lendas de Minha Terra, 1951). 

“Expedição Sertaneja…”, dedicado a seu irmão Leovídio Caiado, foi prefaciado por Zoroastro Artiaga e teve uma segunda edição fac-similar lançada em 2019. A Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, ainda existente sob o patrocínio da Prefeitura de Goiânia, é a mais tradicional e antiga do Brasil e conta atualmente com a curadoria da União Brasileira de Escritores, Seção de Goiás (UBE-Goiás). 

Seu segundo livro escrito – mas o primeiro publicado, em 1951 – foi “Dramas do Oeste”, que teve duas outras reedições. De acordo com Amália Hermano Teixeira, o livro “prende, do começo ao fim, a atenção do leitor, com sua viva e real narrativa de uma de suas habituais excursões ao lendário Araguaia, precisamente à Ilha do Bananal, formada por dois braços do famoso afluente do Tocantins”. 

Em 1969 publicou “Curichão da Saudade”, escrito em 1963, em que faz relatos e reflexões sobre suas viagens de cunho sertanista, ambientalista, etnográfico e, termo usual naquela época, “indigenista”. Fruto de novos tempos, já conhecido como “ecologista” (vocábulo advindo da Ecologia, campo de estudo criado pelo alemão Ernest Haeckel, derivado da palavra grega “oikos” = casa, ou seja, estudo das relações do homem com sua morada, a Terra), Leolídio Caiado publicou “Araguaia – o rio da vida” (1999), com capa de Maria Guilhermina e apresentação de orelha de Jacy Siqueira. O trabalho trata de acontecimentos de viagens, preservação ambiental, pessoas, aldeias indígenas, turismo ecológico e a culinária do dadivoso Rio Araguaia e seus afluentes, além da Ilha do Bananal.

A escritora Moema de Castro e Silva Olival, na ótima crítica “Leolídio Caiado: o sertanista poeta”, escreveu sobre “Arapoema” (1975), prefaciado por Brasigóis Felício e dedicado a Zoroastro Artiaga, onde Leolídio “expõe a saga dos ‘cristaleiros’, em torno do garimpo de ótimo cristal que tinha o nome de ‘Rebojo’, povoado que passa a chamar-se Arapoema”. O enredo entremeia “aventura e corajosos libelos, dirigidos, aqui, contra os irresponsáveis causadores de dramas ecológicos e sociais, como a invasão e posse de terra na mata do Lontra, ao mesmo tempo que conta o romance de Maria e Raimundo e ‘expõe as vicissitudes da constituição da família de ambos, no coração de Goiás’”, completa a escritora, citando Paulo Nogueira Neto.

Sob a presidência do historiador Nasr Chaul, a Agência Goiana de Cultura (Agepel) publicou em 2004 “Acontecimentos” (304 páginas), que segundo Leolídio “são crônicas escritas em diferentes épocas, nos principais jornais desta capital, relatando fatos sucedidos em nossa terra”. As 101 crônicas são completadas com a transcrição de pronunciamentos de José Luiz Bittencourt, Bariani Ortencio e Carmo Bernardes, além de uma fortuna crítica de Moema de Castro e Silva Olival e prefácio de Lêda Selma. 

Academias

Leolídio Caiado era palestrante obrigatório em todo evento científico ou técnico sobre meio-ambiente por quase quatro décadas. Em 03/12/1971 foi empossado como o primeiro ocupante da Cadeira 27 na Academia Goiana de Letras (AGL), patronímica de Bartolomeu Antônio Cordovil, atualmente dignificada pelo professor e escritor Emílio Vieira das Neves. No Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG) foi também o primeiro titular de Cadeira 45, cujo patrono é o Marechal Cândido Mariano Rondon, atualmente ocupada pelo sócio Heitor Rosa.

Foi membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), da União Brasileira de Escritores, secção de Goiás (UBE-GO) e, em 01/02/2020, tornou-se patrono da Cadeira n° 3 do Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis Para os Povos do Cerrado (Icebe), cujo primeiro titular é este autor. 

Leolídio Di Ramos Caiado casou-se em primeiras núpcias com Regina Antônia Pires Graça (n. 05/01/1930 – f. 06/2005), natural do Rio de Janeiro, RJ, Contabilista, filha de José de Oliveira Graça, carioca, e de Emília Pires Graça, mineira de Ponte Nova, MG, com quem teve Elizabeth Regina Graça Caiado. “Leco” casou-se em segundas núpcias com Sílvia Pereira Caiado, com quem teve Carlos Eduardo Di Ramos Caiado. Os dois filhos legaram-lhe cinco netos. 

O imortal Bernardo Élis (n. 15/11/1915 – f. 30/11/1997), da Academia Brasileira de Letras, um dos grandes amigos de Leco, escreveu: “O que faz da obra de Leolídio Caiado uma narrativa diferente é o lado humano. Como bom sertanejo, Leco vê com amor e trata com carinho os bichos, os vegetais e semelhantes, o irmãos indígenas e sertanejos esquecidos da civilização. Mesmo para com as feras, abate-as só por necessidade, com o mínimo de sofrimento. Se estivesse na vontade de Leolídio, o imenso Vale do Rio Araguaia ou ‘Berocan’, não seria o que hoje já é: um quase deserto, de onde os animais silvestres foram impiedosamente exterminados ou escorraçados”. O “último sertanista” faleceu em plena temporada do Araguaia que tanto amava, no ano de 2008 (12/06), a poucos dias de completar 87 anos. Leco deixou um grande vazio na defesa do meio-ambiente do bioma Cerrado em Goiás e no Centro-Oeste. Após cem anos de seu nascimento, sua memória precisa ser reverenciada.