Minha cachaça

14 janeiro 2023 às 10h13

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“Todo mundo tem sua cachaça”, vaticinou o homem por trás dos óculos.
A minha, da Abissínia
exótico nome
“Coffea arabica”.
Minha cachaça
Trouxe navios negreiros
Dor, chibata,
Mina, senzala,
Trilhos, Marias-fumaça,
Progresso,
Estações de chegar,
E de partir.
Arte de Debret e de Rugendas,
Gigantes disformes no Porto de Santos,
Estivadores da bonança do Coronel,
Da desgraça afrodiaspórica,
Da opulência colonial.
Navios trouxeram negros
E levaram grãos da mesma cor.
Importaram desesperança
E exportaram inebriantes.
Trezentos anos de horror,
Na tez ébano de Vó Leocádia,
Lembranças do terreiro,
Do pilão,
Da peneira,
Do torrador incandescente
Do moinho de ferro.
Da inconfundível bebida a extrair sabores e aromas no coador de pano.
Aspirando aldeídos, alcoóis,
anidridos, cetonas, éteres, hidrocarbonetos, ácidos carboxílicos, ésteres, lactonas, compostos sulfurados, cafeína e ácidos clorogênicos – dentre 800 voláteis – as reminiscências da Casa Grande inacessível.
Na mesa, a epopeia da minha cachaça.
Fumegante,
Inebriante,
Ouro negro regado a sangue,
A alimentar meu vício,
Entre livros e reminiscências.