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Branca nada! Era uma viana escura, com cabo de osso, dormida no tronco da bananeira “pra mode a nódia envenenar a bicha e taiá o sangue mais ligeiro”. […] Faca curtida na bananeira era a mais perigosa. Ainda mais enferrujada: se o pecador não morresse sangrando, morria de “teto”

“Caipira picando fumo” (1893), óleo sobre tela de Almeida Júnior | Foto: Reprodução / Pinacoteca do Estado de São Paulo

Janjão arrumou fama de valentão indesde que matara três irmãos na “chancina dos sete”. Por alá se dizia “morte dos mata oito”, por mó de sete ser número de mentiroso. Os irmãos mandaram “comer milho pela raiz”, juiz, promotor e dois soldados. E a promessa era torar na bala ou na peixeira todo mundo que se achegasse e tivesse cabelinho na venta. O delegado telegrafou ao Chefe de Polícia e pediu reforço da capital.

A mãe dos rapazes era fazedeira de farinha de mandioca-mansa. Todo tipo de farinha: de pau, de beiju, de puba. Vendida no comércio a 200 cruzeiros a quarta, ou a 500 o saco, sempre alvíssimo, que ela não se avexava pedir de volta: além de regrar nas despesas, era mandinguenta por nascença. Levava a sério o adágio “quando Deus dá a farinha, o diabo carrega o saco”. Não carecia arriscar. Rezadeira afamada, dessas que cura “maloiado”, sara mal-de-engasgo, frieira, e benze contra cobreiro: 

– “O que é que te corto?”, perguntava com os olhos cerrados a benzedeira.

–  “Cobreiro brabo!”, respondia o crédulo enquanto passava de um lado para outro do portal, olhos fechados.

Toc! Toc! Toc! – batia a vidente de maneira repetida com o fio do machado, a riscar o batente, ritual repetido por sete vezes, enquanto balbuciava a reza inaudível dos ciganos. A erupção cutânea dolorosa causada pelo herpes recalcitrante de quem contraiu varicela – injustamente imputada à passagem de aranha pela região – desaparecia dentro de poucos dias, com o final do ciclo de transmissão do vírus. Ponto para a benzedeira!

Dona Eugênia fazia reza pra fechar o corpo, desfazia amarras do coração e responsava: “Ninguém sabe responsá como Donogênia!” Responsou que os filhos passariam grande prova. Não prova de amor, coisa de bruaca e de caboco fraco: “Prova de home macho! Prova de fogo!”. Somente teriam que “permanecer na mesopotâmia dos corgo, jamais cruzar açude, rego d’água, nem Alemão, nem Pontilhão. Nem cisterna!” Estariam seguros, se guardassem seus preceitos.

O entrevero que resultou na morte do juiz e do promotor aconteceu na venda de Absalão, no largo da mangueira. Armazém com piso de tábuas, onde se vendia de um tudo, em suas vitrines, prateleiras, balcões e tulhas: sal, açúcar, banha, sabão de bola, querosene, remédio, marmelada de Santa Luzia, gasolina em lata, chapéus, botinas, calçados femininos, galochas, roupas, enxovais de cama e mesa, sombrinhas e guarda-chuvas, folhinhas do ano, catecismo, bentinho, armarinhos em geral, perfumes nacionais e franceses, pomada Minâncora, sabonetes, dentifrícios, Leite de Rosas, fumo de rolo, palheiros, cigarros com e sem filtro, bingas, bombinhas e foguetes festivos, arame, estribos, selas, ferraduras, dobradiças de porteira e toda sorte de ferragens e ferramental. Até máquina de costura Singer. E, claro, cachaça Tatuzinho e outras mais de vinte qualidades de pinga.

O juiz bebia uma branquinha com o promotor, mais Benga Tocantins. Virava na goela, derramava pro Santo e cuspia grosso no chão taiposo, a fazer careta. Formado no Largo do São Francisco, lá pelas bandas da capital de São Paulo, era juiz escorreito, probo, direito, e trajava sempre terno de linho. A oposição udenista dizia ser pau mandado do governo pessedista, cabo de chicote do partido oficial. Que a diferença dele com anzol é que o apetrecho de pesca tinha linha. Que mandava prender até que o desinfeliz bandeasse de lado e aderisse ao PSD do governo.

Ao ver Lubero “prá lá de meio-dia” – no calorão de duas da tarde –, com peixeira na cintura em pleno dia de Reis, em conversa afogueada com o irmão Sumpliço, a beber pinga, o magistrado intentou apreender a arma branca, por precaução. Branca nada! Era uma viana escura, com cabo de osso, dormida no tronco da bananeira “pra mode a nódia envenenar a bicha e taiá o sangue mais ligeiro”. Lubero trazia no ombro um bornal com lima “Kaefe”, enxada Duas Caras, um vidro de Agarol e outro de creolina Pearson. A “crolina” era adjutório para queimar bicheiras na vacama e matar as lombrigas dos meninos – que simpatia e melado de rapadura azeda com erva-de-Santa-Maria não dava mais jeito no amarelão da anemia.

Decerto que era gente trabalhadeira, de mãos grossas, trincadas e calejadas. Bastava o juiz acalear a palma dos dois para assuntar que era povo correto, acostumado a lavrar vinhático no machado e carpir pé-de-galinha na mansinha. No início das águas plantava com a matraca arroz e feijão-andu em roça de toco, formada no cerradão de cultura, derribada árvore por árvore, e depois enleirada e queimada. Cultivava também melancia, abóbora, maxixe, bucha, fumo, uns pés de café, feijão de corda, o milho da “pomonha” e das galinhas, milho-pipoca para a meninada e cabaça – pra mó de fazer cuia e coité. No forte da seca, moía cana, coava garapa e apurava melado, moça-branca batida e rapadura, que embrulhava com embira de bananeira. Prensava macaxeira para farinha d’água, polvilho doce e também azedo. Plantava algodão, raleava e carpia nas águas, e na seca colhia os capulhos, cardava, fiava, tingia e fazia pano, em anchos teares de madeira, que depois virava calça nova e camisa para a missa dominical e cobertor para o tempo do frio.

Galinhas eram criadas à solta e, no mangueiro, porcada caruncho – sangrado no sovaco, sapecado com palha de milho e depois barbeado com água fervente e faca amolada – cujas bandas eram esquartejadas sobre o folhal de bananeira no terreiro, ou nas gamelas de madeira branca. Fazia carne de lata, torresmo e banha, fritas no tacho de cobre ou de folhão. Madrugava na curralama do antigo retiro em que eram agregados, para ordenhar seis vaquinhas gir-de-leite, malhadas. Casqueava, aparava as crinas e arrancava na unha os bernes e rodoleiros da mula e da eguinha baia. Gente que cheirava terra e raiz. Gente do eito, criada na mão-de-pilão, que só bebia cachaça quando ia ao comércio, por respeito à mãe viúva.

O Togado quis “tirar farinha”. Deu voz de prisão! Dizer dele a arma ficaria “acautelada no Cartório do Crime”. Que não se importava que não houvera crime. Que ele era autoridade e podia mandar prender e mandar soltar quem bem entendesse. Que estava ali o doutor promotor, que não o deixava mentir. Ne que o togado aluiu para tirar a arma da cintura do matuto, recebeu uma facada nos rins que vazou nos buchos. Faca preta. Vixe! Faca curtida na bananeira era a mais perigosa. Ainda mais enferrujada: se o pecador não morresse sangrando, morria de “teto”. Não era a faca apreendida, a tal que ficaria “acautelada no Cartório do Crime”. Era outra bicuda, socada por Sumpliço até o cabo nas ancas do bacharel. O juiz caiu molengó, a segurar os quartos, com os olhos esbugalhados, mirando abismado o promotor impassível, que retribuía com olhar atônito. Aquilo não acontecia. Era uma autoridade. Amigo do governador. E morria de morte matada? À traição? Pelas costas? Na maior covardia, como um capado piau erado? Arre!

Na quizumba que se seguiu, o promotor também berrou no capa. Levou duas peixeiradas nos bofes. Benga correu porta afora, aos gritos: “Acode! Mataram o juiz!”. E a multidão se achegou metediça, abelhuda, assuntando de longe. O povaréu acorria que nem em morte de vaca raiada por coriscos. Nisso chega um soldado bate-pau, paisano, a dar voz de prisão. Que prisão que nada! Também entrou na biguana. E ainda perdeu o três oito para os irmãos já exibidos de valentões. Ao chegar o quarto soldado, foi recebido a tiro. Morreu de chumbo certeiro, no meio do cocoruto. Bala dum-dum, dessas que explode. Fez um oco na testa do desinfeliz. Devia ser mandinga de Donogênea. Quatro mortos! Uns diziam cinco… Chega Felisbero, o terceiro irmão, que nada tinha a ver com a arrelia. Estava consumada a predição da prova de fogo. Não poderiam mais saltar veio d’água, “nem Alemão, nem Pontilhão”.

Nisso chamaram Janjão. Parece que fora o prefeito. Ou o delegado, no dizer “do zoto”. Janjão era um brutelo de quase dois metros, calvo, bigodões, e pesadiço. Era gente lá das bandas dos Pireneus, onde o rio lava os pecados das almas e os carreiam ao Maranhão, que tributa o Tocantins e, por fim, o Atlântico equatorial, na Baía de Guajará, no Marajó do Grão-Pará. Janjão tinha fama de valente e era “pau pra toda obra”. Se havia doido no mês de agosto do desgosto, Janjão era escalado para amarrar o mentecapto e encaminhar ao Adalto. Se aparecia malfeitor, Janjão tratava de tirar o delinquente de circulação, para a cadeia ou “dessa para a melhor”. Alma boa, amparava os desassistidos da cidade, amigo dos bobos, dos cachorros e dos tipos de rua.

O boato é que a bala fora benzida por dona Petronilha de Mané Ingá. Dizer dos pentecostes ela tem parte com o Capiroto: “dorme no sumitero toda lua cheia da coresma”. Gente da mandinga, acostumada a comer lesma. Foi ela quem benzeu três balas e deu o veredito:

– “Está feito! Deix’ês’sartá o corgo e manda bala. Não mira! Os guia vai guiá as bala. Só tem uma coisa: trinta dia sem assuntá muié!”

Janjão fez serviço enxuto, limpo, mas não rápido. Os irmãos ficaram um dia e uma noite a atirar e ser atirados, acoitados num quintal por de lá da mangueira do largo. Temiam pular o córrego e afrontar o preceito da mãe. Mas chegou reforço da capital e a troca de tiros se esticou. Foi bala à ufa! Felisbero trouxera um “chimiti” e uma cartucheira. Conforme chegava reforço, os rapazes tiveram que pular o arroio do Alemão. Era atravessar e levar tiro certeiro de Janjão. Três mortos! Morreram em fila, um após o outro. Estão sepultados no cemitério da cidade. Três túmulos rasos. Três cruzes. E foi o fim! Sete ou oito mortos? Nunca saberemos! Janjão virou herói de Mataúna.