Por décadas, o cinema brasileiro tem sido uma vitrine de resistência e reflexão, e “Ainda Estou Aqui”, o mais recente longa de Walter Salles, não foge à regra. Inspirado na autobiografia de Marcelo Rubens Paiva, o filme reconta a luta de Eunice Paiva, esposa do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido durante a Ditadura Militar, e coloca a memória como protagonista,  não apenas no roteiro, mas na trilha sonora cuidadosamente tecida por Warren Ellis.

Ellis, músico e compositor australiano é conhecido por seu trabalho em bandas como Nick Cave and the Bad Seeds e Dirty Three. Versátil em instrumentos e estilos, ele dá ao filme uma profundidade sonora que transcende a narrativa. Porém, o verdadeiro coração da trilha está na escolha de músicas brasileiras emblemáticas que pontuam a história, dialogando diretamente com o contexto emocional e político do filme.

Ao longo do filme, canções de Tim Maia, Gal Costa, Erasmo Carlos e Caetano Veloso guiam o espectador por uma jornada que combina a intimidade da família Paiva com o ambiente de repressão que marcava o Brasil dos anos 70. A inclusão de músicas como “É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo” e “As Curvas da Estrada de Santos” não é apenas um resgate histórico, mas um ato de resistência artística. Essas obras, criadas sob o peso da censura, ecoam a luta de Eunice para manter viva a memória de Rubens e proteger sua família.

Gal Costa, com sua voz única, em “Falsa Baiana” reflete um misto de leveza e saudade, enquanto Tim Maia, em “A Festa do Santo Reis”, carrega uma energia quase ritualística, como se abençoasse os momentos de respiro em meio ao caos. Já Caetano Veloso, com “Fora da Ordem”, torna-se um narrador lírico, unindo o pessoal e o coletivo em versos que transcendem gerações.

Warren Ellis (1965) | Foto: Reprodução

Além das canções populares, a trilha instrumental de Warren Ellis é uma obra à parte. Suas composições, que alternam entre o minimalismo melódico e camadas densas de som, ampliam o impacto emocional do filme. Ellis cria texturas que evocam tanto o íntimo da memória quanto o vasto vazio da ausência. A trilha não está lá apenas para acompanhar,  ela se torna parte da história, como se as notas musicais fossem vozes sussurrando lembranças perdidas e silenciadas.

Ellis já havia demonstrado essa sensibilidade em colaborações com Nick Cave em filmes como “Blonde” e “O Leopardo das Neves”. Em “Ainda Estou Aqui”, ele produz um trabalho que reverbera além da tela, capturando a essência do Brasil sem cair em estereótipos.

Fernanda Montenegro (1929)

Na cena final, quando Eunice (Fernanda Montenegro) assiste à Comissão da Verdade na TV, o silêncio fala tanto quanto as palavras. Porém, é a música que dá forma àquela memória, uma memória coletiva que, como o filme, insiste em permanecer viva. A trilha de Warren Ellis, junto às vozes icônicas da MPB, é o fio que costura essa narrativa de luta, perda e redenção.

Assim, “Ainda Estou Aqui” não é apenas uma obra cinematográfica. É uma experiência sensorial que reafirma o poder da música como registro histórico, ato político e expressão do inefável. Ao sair do cinema, o espectador não leva apenas a história dos Paiva, mas também a certeza de que, enquanto houver música, a memória resistirá.

Walter Salles, com sua sensibilidade e ousadia, nos lembra que contar histórias como esta é essencial. E Warren Ellis, com seu talento singular, reafirma que a trilha sonora é, muitas vezes, a alma de um filme. “Ainda Estou Aqui” é uma obra para ser sentida e ouvida  profundamente.

Fazem parte da Trilha sonora: “A Festa Do Santo Reis”, Tim Maia; “Jimmy, Renda-Se”,   Tom Zé; “É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo”,  Erasmo Carlos; “Acaua”, Gal Costa; “Je T’aime Moi Non Plus”, Serge Gainsbourg;  Et Jnae Birkin; “Alexander”, Philip May, Alan Walker, Richard Taylor Clifford, John Povey; “Take Me Back To Piaui”,Juca Chaves; “Baby”,  Os Mutantes; “Agoniza Mas Não Morre”, Nelson Sargento; “As Curvas Da Estrada De Santos” e “Como Dois E Dois”; ‘The Ghetto”, Donny Hathaway; “The Fight”, Johann Johannsson; “Fora Da Ordem”,  Caetano; “Petit Pays”- Cesaria Evora; “Um Indio Live In Brazil”, Caetano e “Falsa Baiana”, Gal Costa.

Com uma seleção tão rica, não foi tarefa fácil destacar apenas uma das obras da trilha sonora de “Ainda Estou Aqui”. Mas escolhemos “Petit Pays”, da inesquecível Cesária Évora (1941–2011), cantora de Cabo Verde, cuja voz atravessa gerações com uma força emocional singular.

Cesária Évora (1941–2011) | Foto: Reprodução

“Petit Pays” surge em um momento delicado do filme, quando a família, talvez pela primeira vez, se permite falar abertamente sobre a saudade.

Observe que  a voz de Évora, envolvente e cheia de alma, carrega uma profundidade que parece abraçar o ouvinte, criando um espaço de intimidade e reflexão. Sua interpretação é um equilíbrio perfeito entre força e sutileza, amplificando o impacto emocional da cena e conectando o público às memórias e sentimentos que a história evoca. Uma escolha que sintetiza a essência de uma trilha sonora marcada pela diversidade e pelo poder de tocar o coração.