Às vezes me pego pensando nas peças que essa vida nos dá.

Gabriel García Márquez, um de meus autores preferidos e um dos maiores que já tivemos, foi um escritor de memórias. Cada livro seu, um pequeno retrato de tudo que viveu, escutou, aprendeu, apreendeu e romanceou.

Seu objetivo era a permanência. Permanência da vida, das estórias, da oralidade, do amor que molda e constrói o mundo, de reter o tempo.

Assim, me pego pensando como um homem como Gabo, no fim da sua vida, sofrendo de um câncer linfático, passa a ter lapsos de memória. Por vezes esquecendo quem eram os filhos, a esposa.

Gabriel García Márquez faria hoje 97 anos.

Gabo, em seus primeiros anos de vida, morou na casa dos avós maternos em Aracataca, Colômbia, enquanto a família mudou-se para Barranquilla.

O tom fantástico que a avó de Gabriel dava as história que contava, acabou por influenciar sua narrativa.

A superstição tão característica nossa, latino-americanos, que ele soube traduzir tão bem da sua avó, acabou por deixa-lo vivendo entre dois mundos.

Onde tudo era fantástico, sobrenatural, mas que no fundo era o cotidiano, aquela vida acontecendo, mas através dos olhos da avó, transmitidos para ele pela oralidade, se tornavam mágicos.

Seu avô também foi uma fonte de inspiração. Em “Ninguém escreve ao coronel”, ele se baseou tanto na história desse avô, que esperou a vida toda uma pensão de veterano da guerra civil que nunca veio, quanto inspirado em sua própria história, como certa vez disse.

Quando se viu desempregado e sem dinheiro em Paris, pedindo ajuda a todos os amigos, esperava cartas de retorno que não chegavam.

Assim, ele disse que a medida que ia escrevendo esse livro, se via na mesma situação, então o que escrevia condizia com sua realidade.

Por isso, contrariando seus críticos, Gabo considerava essa sua melhor obra. Sua preferida.

É bonito ver como a influência dos avós tendeu a expandir essa imaginação, onde ele criou um universo próprio, que a linha entre o comum e o extraordinário; o cotidiano e o surreal, são muito tênues.

A vida latino-americana contada através de realismo mágico.

Os absurdos humanos ao lado da poesia, poética da vida.

Sua forma especial de enxergar o mundo, a primazia que ele teve de negar o humano, o natural.

Seus livros são sutis, mas não deixam de entrar nas miudezas da história e da política colombiana (e também da América).

Me emociona falar, escrever, indicar Gabo, pois vejo minha avó materna, com suas fábulas, histórias e estórias – inventadas e reais – para entreter os filhos e depois os inúmeros netos.

Vejo minha avó paterna e suas superstições, seus fantasmas, invenções para suportar a solidão da velhice.

Posso passar laudas e laudas escrevendo sobre ele e seus livros, mas quero me reter aqui nos preferidos (se é que consigo limitar).

Seu primeiro romance “A revoada”, foi considerado ruim. Chegaram a aconselhar que Gabo fizesse outra coisa da vida. Imagina!, esse que pode ser considerado o primeiro romance de vanguarda, quase foi desacreditado.

Em “Cem anos de solidão”, a fictícia aldeia de Macondo é o pano de fundo para a saga da família Buendía.

Macondo: o nome mágico inspirado em Aracataca, essa é uma história resultante de muitas outras estórias, e foi o primeiro livro que li e pensei que era algo que gostaria de ter escrito.

Uma estrutura perfeita do nascimento e morte de uma dinastia familiar.

“Amor nos tempos do cólera”, é a história de amor de seus pais. Aqui, vemos forte a nostalgia dele de dias ouvindo estórias, a oralidade como inspiração de escrita. Seja para o jornalismo, seja para a literatura.

O que no fim, para García Márquez, era uma só coisa, já que o jornalismo não era apenas seu ganha-pão, mas uma forma de literatura.

“Meus livros são, no fundo, grandes reportagens escritas em romance.”

Ilustrando essa frase de Gabriel, quando ele trabalhou no “El espectator”, fazia reportagens que mais pareciam obras literárias.

“Crônica de uma morte anunciada” acho de uma genialidade singela. Escrito como uma crônica ficcional, é um livro que começa pelo fim, que já no título tem uma quebra de expectativa ao nos predizer o que vai, de fato, acontecer. Porém, faz justamente o contrário: nos mostra, em um estilo enxuto, o grande autor que Gabo é. 

“Doze contos peregrinos” é de uma beleza singular.  Nos mostra a solidão, o poder, amor e morte em contos que retratam latino-americanos vivendo na Europa.

“Relato de um náufrago” foi uma notícia que saiu em todos os jornais, assim, Gabo passou um mês com o naufrago da história real, depois escreveu como se fosse uma novela.

O jornal vendeu muito, compravam  só pela coluna do Gabriel, apesar de ser uma história que todos já haviam contado.

Uma realidade que já havia sido contada mil vezes, mas pela perspectiva mágica dele.

“O outono do patriarca” fala sobre um ditador solitário, obsessivo e onipotente. Segundo o próprio Gabo, ao ler o livro com outra visão, tirando o ditador do centro, tem-se um escritor no lugar dele.

Seu material de inspiração era sua própria vida. Daquelas existências tão fantásticas, que o mundo perde por não o ter mais aqui. Muito de si e dos seus está ali, nos seus livros.

O que pode haver de mais lindo que isso?

Gabriel não é um autor de uma leitura só, pois à medida que o (re)lemos, vemos que Gabo enriquece a realidade.

E ao reler “cem anos de solidão”, vejo que nem o amor pode salvar da destruição dos mundos.

E ao reler “o amor nos tempos do cólera”, ele nos mostra que o amor pode salvar da destruição dos mundos.

“Escrever muito” foi a receita de Gabo para vencer a morte. Então como não ler, não indicar e não achar o maior dos clichês – a necessidade de ler Gabriel García Márquez?