“Coisas humanas” foi uma das melhores leituras que fiz no ano passado. É um daqueles livros que podemos ler e fazer paralelos com vários contextos contemporâneos: a fachada das mídias sociais, abuso sexual, imigração, feminismo. A obra faz uma critica contundente e sutil sobre a era das mídias sociais: jornalistas são respeitados pelo número de seguidores, a vida real não é mostrada apenas compartilhada por “filtros”.

Logo no início do livro, a autora Karine Tuil nos brinda com um breve ensaio sócio-filosófico sobre o sexo e as relações conjugais. Ao mesmo tempo, que fala sobre um dos maiores escândalos sexuais dos Estados Unidos, o de Mônica Lewinsky e do ex-presidente Bill Clinton. Na sequência desse parágrafo, ela vai nos narrando outros casos de escândalos sexuais, sempre mostrando como as mulheres são dominadas pelos homens e seus jogos de poder.

Mas vamos ao livro: a história é centrada no casal Farel. Jean, um famoso apresentador francês, tem dificuldade de aceitar o que de mais natural existe: o envelhecimento. Com isso, procura mulheres cada vez mais jovens. Sua esposa Claire, conhecida por seus compromissos feministas, é 27 anos mais jovem que ele. Juntos, eles tem um filho, um estudante de uma prestigiada universidade americana.

Tudo parece ideal, até surgir uma acusação de estupro que abala essa suposta estrutura social perfeita. Karine Tuil coloca vários pontos de vista sobre a mesma questão, nos aproximando a cada momento de um determinado personagem. Isso dá enorme complexidade ao livro, que, assim como a vida, é regido por várias subjetividades.

Karine Tuil nos obriga a olhar e questionar nossos valores e opiniões, vendo a oscilação dos nossos próprios sentimentos. Essa aproximação com cada voz mostra todos os pontos de vista e a verdade defendida por cada narrador, aproximando o leitor dos personagens, gerando certa empatia. Ela constrói essas vozes narrativas por personagens bem desenvolvidos, com diferentes tons entre seus discursos; um domínio difícil, por uma autora que captura com perspicácia os tempos atuais.

Magistralmente, a autora conseguiu me fazer pensar além do óbvio, “militar” para mim mesma. Pois em algumas passagens, me peguei questionando a vítima, em outras, odiava o acusado. Deparamo-nos com a dificuldade da verdade, como essa pode ser moldada através das dinâmicas de poder.

Claire desperta uma empatia enorme. Feminista, luta pelos direitos das mulheres, mas como mãe de um homem acusado de estupro, passa a se questionar se fez a coisa certa, se educou corretamente seu menino branco privilegiado.

Uma situação que a autora descreve e que marca bem essa relação de entendimento consensual, é quando ela nos conta que o acusado, anos antes, havia escrito um texto em que foi premiado com o tema “Os homens são violentos por natureza ou por causa da violência social?”

Como uma mulher que ainda não decidiu sobre a maternidade ou não, é uma questão que penso muito: se tiver filho, como será uma educação para evitar uma situação dessas, em uma sociedade que ainda é feita para meninos se tornarem machistas?

A tarefa mais difícil de todas: a de criar um ser humano empático para que não repita o padrão. Aqui, o interessante foi perceber que mesmo com uma educação feminista, não foi “suficiente” para o homem entender sobre consentimento, sobre abuso sexual, sobre uma relação consensual.

Outro ponto curioso é ver como aqui, nesse livro, a autora conseguiu fazer exatamente como na realidade, a total descredibilização da mulher vítima de violência. As dinâmicas do poder, de posição, de força dos homens. E como, mesmo indiretamente, as mulheres são vítimas e enfrentam a vergonha e a humilhação. Karine Tuil também mostra as dificuldades e diferenças sociais e profissionais para homens e mulheres.

Genialmente, ela consegue mostrar essa opressão machista tanto em Mila, de 18 anos, em Claire, de 40 anos, quanto em Françoise, de 70 anos, mostrando que o machismo impacta e atinge as mulheres em toda e qualquer idade.

Gosto como ela descreve as relações de forma tão precisa, sem romantizar, direta. Ela conta tudo de forma muito objetiva, mostrando os desgastes, a forma como, muitas vezes, as relações são uma espécie de troca. Mas o que fica desse livro para mim é perceber o quão estarrecedor é a percepção de consentimento, a diferença desse conceito para homens e mulheres.

“Coisas humanas” é um livro que permanece reverberando mesmo depois de muito tempo de leitura, tal sua complexidade e atemporalidade. A literatura nos ajuda aproximar-nos do indizível, nos colocar no lugar do outro, nos gerar empatia. A obra de Karine Tuil é, sim, demasiada humana, e mostra como no mundo real os erros não possuem o mesmo peso para homens e mulheres.