Washington Novaes era um mestre que ensinou gerações a fazer jornalismo de qualidade

30 agosto 2020 às 00h00

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Ele queria mudar o mundo, torná-lo melhor para todos, mas frisava que era preciso preservar o meio ambiente, cuidar de maneira mais eficaz do lugar onde se vive
Na década de 1980, surgiu em Goiás o jornal “Diário da Manhã”, fundado por Batista Custódio e dirigido por Carlos Alberto Sáfadi, Hélio Rocha, entre outros. Faziam parte da equipe Abadia Lima, Aimée Beatriz, Alziro Zarur Rodrigues, Antônio Carlos Moura, Batista Cardoso, Carlos Honorato, Djalba Lima, Edmilson Souza Lima, Edson Souza, Isanulfo Cordeiro, Jayro Rodrigues, João Só, Joãomar Carvalho, José Luiz de Oliveira, Lauro da Veiga Jardim (discípulo de Aloyzio Biondi), Lisa França, Lorimá “Mazinho” Dionízio, Lúcia Pedreira Barros, Luiz Augusto “Gugu” da Paz, Luiz Carlos Bordoni, Luiz Sérgio dos Santos, Mara Moreira, Marco Antônio da Silva Lemos, Phaulo Gonçalves (o humorista do Para-Choque), Rachel Azeredo, Raquel Mourão, Rosalvo Leomeu, Sérgio Paulo Moreyra (professor da história da UFG), Servito Menezes (professor de ciência política da UFG), Shirley Camilo, Vilmar Alves, Wilson Silveira e, entre outros, Wilson Silvestre. Os jornalistas listados fizeram um bom jornal, que incomodava “O Popular”, então o jornal líder em circulação. O proprietário queria mais, planejava chegar à Corte, Brasília, e criar um jornal dito nacional a partir do Cerrado. Por isso, sondou tanto Claudio Abramo, que havia sido editor da “Folha de S. Paulo”, quanto Mino Carta, criador da revista “Veja”, que acabaram por indicar Washington Novaes, que planejava trocar os grandes centros por uma região menos intranquila.

Washington Novaes havia trabalhado no “Estadão”, “Veja”, “Folha de S. Paulo”, na TV Globo (fora editor do “Jornal Nacional” do “Globo Repórter”). Era apontado como um jornalista brilhante por seus pares, admirado, não só pelo texto de estilista da Língua Portuguesa, mas também pela clareza de suas ideias e seus posicionamentos. Era um dos pioneiros do jornalismo de análise e defesa do meio ambiente e crítico agudo da aceleração capitalista de destruição do campo. Ao mesmo tempo, distinguia-se como um editor gabaritado, um chefe cooperativo e formador de novos talentos. Era o homem certo para “reinventar” um jornal que, de fato, já era bom. A reinvenção, no caso, tem a ver com o fato de inseri-lo no plano nacional e, ao mesmo tempo, atrair jornalistas e intelectuais nacionais para colaborar em suas páginas. O sociólogo e filósofo José Guilherme Merquior escreveu artigos exclusivos que deveriam ser reunidos em livro, tal a qualidade e a perenidade das ideias propugnadas. Mino Carta e Janio de Freitas também escreviam para o jornal.
Como editor-chefe, Washington Novaes trabalhou com a mão de obra local, mas trouxe também José Antônio Menezes, o Pindé, Aloysio Biondi (jornalista que, de tão notável, influenciava economistas), Reynaldo Jardim (um dos artífices do “Caderno B” do “Jornal do Brasil”, e poeta, dos bons. Trabalhei com Reynaldo Jardim — sabia tudo de jornal, era um gênio inventivo, o que nem sempre compreendiam; onde punha a mão deitava beleza), Marco Antônio Coelho e Marco Antônio Coelho Filho.
Na gestão de Washington Novaes, o “Diário da Manhã” se tornou um jornal de respeitabilidade nacional, com presença, por exemplo, em Brasília. Esperava-se o domingo para ler, salvo engano na página 2, o artigo do jornalista, que escrevia muito bem, crítico e ponderado. Por certo, não apreciaria o termo, mas era um lorde. Sua crítica, mesmo quando contundente, nunca era ofensiva. O jornalista parecia duplo: um homem e uma multidão. Tinha, por assim dizer, o sentimento do mundo. Apreciava caminhar com a história, mas não ao lado das elites. Sob sua batuta, o jornal ganhou um texto mais refinado, mas não pernóstico nem pomposo. Mas engajado (na melhoria da sociedade), porém, embora pareça contraditório, não ideologizado. A redação ganhou um conselho editorial com a participação da sociedade. O jornalismo ficou mais rigoroso, objetivo e ganhou massa crítica. A leitura do jornal era prazerosa.

Com a ascensão de Iris Rezende a governador, em 1983, e o consequente atrito com Batista Custódio, o jornal fechou as portas. Washington Novaes partiu para outros projetos.
Ferrovia Norte-Sul
Em 1987, Washington Novaes foi o paraninfo da minha turma de Jornalismo da Universidade Federal de Goiás, da qual fui orador (o hoje professor da UFG Lisandro Nogueira, crítico de cinema, formou-se nesta época). Terminada a formatura, conversamos brevemente sobre história, porque no discurso eu havia falado sobre a história recente do Brasil, e depois fomos embora. Uma das características do jornalista era escutar atentamente o que as pessoas diziam. Não falava antes que o interlocutor terminasse o que estava expondo. Era uma questão de educação, mas ele queria entender de fato o que outro pensava, para assimilar suas ideias ou para persuadi-lo, em seguida, com uma argumentação mais ampla e mais bem fundamentada. Teria sido um bom psicanalista, dada sua excelente escuta.
No mesmo ano, a partir de fevereiro, comecei a trabalhar no “Diário da Manhã”, levado pelo poeta e amigo Valdivino Braz, que lá trabalhava. Formado em História pela Universidade Católica de Goiás, dava aulas nos colégios Maria Auxiliadora (gerido por freiras salesianas, uma delas, irmã Conceição, excepcional diretora), Galáxia e Imafi (supletivo), particulares, e nos colégios Marechal Ribas Júnior, na Vila Redenção, e Isabel Esperidão Jorge, no Alto de Glória (não havia nenhum edifício na região), da Prefeitura de Goiânia (fui aprovado num concurso, ao lado do, mais tarde, deputado estadual Luis Cesar Bueno e da historiadora Zulma de Paula). Comecei na área de Economia, tendo como editor Gilson Cavalcante e como colega de editoria Elaine Ponchio.

Depois, me tornei editor do “DMRevista”. Os chefes de redação eram João Bosco Bittencourt e Deusmar Barreto. Uma dia, estava sentado, conversando com o jornalista Ferreira Júnior — o que mais entendia de ciência na redação, era o nosso Google, na feliz expressão do jornalista Nilson Gomes —, quando vejo Washington Novaes entrar na redação, que ficava na Avenida 24 de Outubro, em Campinas. Encaminhou-se diretamente para a sala de Batista Custódio. Pouco depois, Maria do Carmo, secretária de Batista Custódio, vai à redação e pede que eu vá à sala do editor-geral.
Lá, Washington Novaes me cumprimenta, tendo se lembrado de mim. Batista Custódio, com aquele jeitão mezzo parnasiano e mezzo romântico, ordena: “Menino, deixe tudo que está fazendo, pois você vai trabalhar na equipe de repórteres do Washington”. Na prática, continuei como editor do “DMRevista”, na parte da manhã, e, à tarde, trabalhava como repórter do novo projeto do jornal, que seria uma espécie de caderno-livro sobre a Ferrovia Norte-Sul.
Com o apoio, salvo engano do Antônio Só (o editor de arte), Washington Novaes havia planejado um caderno tão instrutivo quanto belo. Os artistas plásticos Siron Franco, Fernando Costa Filho, Sanatan. D. J. Oliveira, Omar Souto, Iza Costa, Amaury Meneses colaboraram, com desenhos e pinturas, para tornar o projeto mais arejo e criativo. Os escritores Bernardo Élis e Carmo Bernardes deram suas contribuições. Eu, Fábio Nasser e Britz Lopes fomos os principais repórteres fixos. A gaúcha Eloí Calage era tanto repórter como uma espécie de subeditora. Tinha texto de primeira linha, fundindo objetividade e subjetividade com raro brilho. Lembro-me que, um dia, fomos entrevistar um artista. Ela pediu para ir ao banheiro, e a pessoa disse: “Espere um pouco”. Voltou minutos depois e disse: “Pode ir”. Na volta para a redação, Eloí Calage, que havia trabalhado na Globo e morado na Alemanha, me perguntou: “Por que os goianos têm vergonha de seus banheiros? Ora, banheiros não são lugares muito bem organizados mesmo.”
O jornalista Janio de Freitas havia denunciado a fraude na licitação da Ferrovia Norte-Sul. Washington Novaes me deu seu telefone e pediu: “Ligue para o Janio e faça uma reportagem”. Liguei várias vezes, quando me atendeu, o articulista da “Folha de S. Paulo” disse: “Não falo sobre o assunto. O que tenho a dizer publicarei na ‘Folha’”. Havia me atendido porque era amigo de Washington Novaes.
O projeto sobre a Ferrovia Norte-Sul teve o apoio do governador de Goiás, Henrique Santillo, e do presidente da República, José Sarney. Ao término, ao receber o caderno, José Sarney ficou emocionado. Estive em Brasília algumas vezes, sendo recebido, no Palácio do Planalto pelo jornalista e escritor Napoleão Saboia, de quem eu havia lido o romance “O Cogitário”. Saboia era tão educado e gentil quanto José Sarney, que ficou fã de Batista Custódio, segundo me disse Saboia. Na capital, meu contato era com o pessoal da Valec, que me passava material técnico sobre a Ferrovia Norte-Sul.
Depois, quando Washington Novaes foi para o Rio de Janeiro, para finalizar o documentário “Xingu” — sobre indígenas —, fiquei encarregado de editar o caderno-suplemento. Ao final, apareci no expediente como editor assistente, contando com o apoio inestimável do diagramador Antônio Só (me ajudou até na revisão), ao lado de Eloí Calage. Mas o projeto era mesmo de Washington Novaes.
Tempos depois, eu estava na redação, ainda na sede de Campinas, quando uma pessoa da portaria me chama: “Tem um tal de Zuenir querendo falar com você”. Atendi. Para minha surpresa, era o escritor e jornalista Zuenir Ventura, que havia lido uma resenha feita por mim de seu livro “1968 — O Ano Que Não Terminou”. Com sua generosidade habitual, e sem me avisar, Washington Novaes havia enviado o texto para Zuenir Ventura, que na época era editor do “Jornal do Brasil”, acho que de Cultura. O “biógrafo” de sessenta e oito me disse: “Apreciei inclusive as correções”.
Certas coisas, aprendi com Washington Novaes, que sempre me dizia que editor era cargo e que a profissão do jornalista é a de repórter. Portanto, nenhum editor deveria se acomodar. Para manter a mente ativa, frisava, era preciso ficar em contato permanente com pessoas comuns, do povão, e escrever diariamente. Nunca esqueci a lição. Gostava de sugerir a leitura de livros de história e sobre meio ambiente para que o jornalista entendesse melhor o presente. Às vezes, nos encontrávamos na banca do João, na Tamandaré. Ele, como eu, apreciava a leitura do “Estadão”. Era articulista do jornal.
Washington Novaes, paulista de Vargem Grande do Sul, nasceu em 3 de junho de 1934 e morreu, aos 86 anos, em 24 de agosto de 2020, numa segunda-feira, em Goiânia. Ele havia se submetido a uma cirurgia — tinha um tumor no intestino — e não resistiu. Pioneiro do jornalismo ambiental, Washington “levou” Goiás — o Cerrado — para o Brasil e para o mundo. Era um mestre — doce, firme, gentil, generoso — que ensinou, direta ou indiretamente, gerações a fazer jornalismo, bom jornalismo. “Tinha todas as virtudes, era um indivíduo de primeira linha”, disse o jornalista Hélio Rocha ao Jornal Opção. Os goianos (e os demais brasileiros), os quem conhecem sua história, certamente têm orgulho do jornalista, do escritor, do ambientalista, do ser humano. Ele queria mudar o mundo, torná-lo melhor para todos, mas frisava que, para tanto, era preciso preservar o meio ambiente, cuidar de maneira mais eficaz do lugar onde se vive.