O jovem formado por Harvard salvou centenas de indivíduos das garras de Hitler, na França, mas só teve reconhecimento pós-morte
Diga-me, leitor: quem foi Varian Fry? Sabe que morreu em 1967, aos 59 anos, sozinho? Não se envergonhe: pouca gente, mesmo no mundo intelectual, tem noção de quem foi Varian Fry, formado por Harvard e chamado de “o americano tranquilo”.
A melhor forma de conhecer a história de Varian Fry é ler o ótimo “Vila Air Bel (1940) — O Refúgio da Intelectualidade Europeia Durante a Segunda Guerra Mundial” (Editora Rocco, 526 páginas, tradução de Ana Deiró), da escritora canadense Rosemary Sullivan. Trata-se de um estudo histórico muito bem-escrito, sem pedregulhos e firulas acadêmicas.
Em junho de 1940, com a França invadida pelas tropas nazistas, americanos e europeus se reuniram, nos Estados Unidos, e decidiram organizar o Comitê de Resgate de Emergência (sugestão da alemã Erika Mann, filha de Thomas Mann) — “com o objetivo expresso de salvar artistas e intelectuais europeus” perseguidos pelo governo de Adolf Hitler. A Gestapo havia elaborado uma lista “secreta” de inimigos políticos e intelectuais que deveriam ser assassinados.
O grupo conseguiu juntar dinheiro, que não era farto, e Varian Fry, de pouco mais de 30 anos, foi enviado para a França, em agosto de 1940, com uma lista de 200 nomes de pessoas que deveriam ser retiradas, com urgência, da França.

Varian Fry: o homem que, de maneira abnegada, salvou dezenas de judeus na França | Foto: Reprodução
No início, Varian Fry, com seus métodos sérios e disciplinados, assustou alguns dos refugiados (escritores, artistas plásticos, militantes políticos). Depois, perceberam que era uma das únicas, senão a única, das alternativas para escapar do perigo nazista.
Varian Fry começou a receber os refugiados no hotel onde estava hospedado. Como as filas eram imensas e logo chamaram a atenção da Sûreté, polícia secreta da França, decidiu-se mudar, com alguns refugiados (como Victor Serge) e franceses de esquerda (como o surrealista André Breton), para Villa Air-Bel, uma casa grande nos arredores de Marselha, mantendo, porém, o escritório na cidade.
Abnegado, chegando a passar fome, Varian Fry salvou, por conta de seu empenho pessoal e por ter montado uma equipe eficiente (Albert O. Hirschman e Danny Bénédite), entre 1.500 e 2.000 pessoas (mais do que Oskar Schindler). Depois de sua expulsão da Franca, em 1941, mais pessoas foram salvas pelo Comitê de Resgate de Emergência (Centre Américain de Secour), graças, sobretudo, ao empenho de Danny Bénédite. Em um ano e meio, cerca de 20 mil refugiados procuraram o Comitê de Resgate, que conseguiu atender e proteger pelo menos 4 mil.

Villa-Air Bell, em 1940: local onde judeus foram protegidos dos tentáculos do nazismo | Foto: Reprodução
Varian Fry descobriu cedo que não bastava tentar retirar as pessoas da França legalmente. Por isso, além da atividade legal, retirando as pessoas por navio ou avião, comandou atividades ilegais, como uma rota de fuga, via Pireneus, para a Espanha (o filósofo Walter Benjamin tentou sair, mas, quando não conseguiu, matou-se, aos 48 anos) e, depois, pela Suíça (onde as pessoas, embora detidas, não eram mortas).
Eis uma lista mínima de pessoas conhecidas que foram salvas graças à coragem e persistência de Varian Fry: Victor Serge (sua história é terrível), André Breton, Max Ernst, Marc Chagall, Hertha Pauli, Leonora Carrington, Claude Lévi-Strauss, Marcel Duchamp, Carli Frucht, Walter Mehring, Wilfredo Lam, Helena Zolzer, Benjamin Péret, Remedios Varo, Consuelo de Saint-Exupéry (viúva do escritor), Lion Feuchtwanger, Alma Mahler, Franz Werfel, Anna Seghers, Jean Arap, André Masson, Heinrich Mann (irmão de Thomas), Golo Mann (filho de Thomas), Jean Malaquias, Heinz Jolles e Simone Weil (que morreu, aos 34 anos, em 1943).

André Breton, Benjamin Péret, Victor Serge e Charles Wolff no terraço na Villa Air-Bel | Foto: Reprodução
Demissão depois de ação heroica
De volta aos Estados Unidos, quando deveria ter colhido os louros por conta de seu competente trabalho, Varian Fry foi demitido. Motivo: os burocratas não entendiam que, para salvar refugiados perseguidos pelo nazismo, era preciso pressa e não se ater a legalismos. A Gestapo estava na cola de judeus e esquerdistas.
Mesmo não tendo sido entendido, e até perseguido, pois chegou a ser visto como uma espécie de “comunista”, Varian Fry continuou ajudando os refugiados, às vezes usando sua pequena renda pessoal e fornecendo-lhe contatos.
Em 1945, o Comitê de Resgate de Emergência divulgou um relatório sobre suas atividades, citou Daniel Bénédite e Paul Schmierer, mas o homem-chave, Varian Fry, foi esquecido. Em 1996, 51 anos depois, o Yad Vashem, o Memorial ao Holocausto de Israel, agraciou Fry “postumamente com a medalha ‘Justo entre as Nações’”.

Max Ernst (meio encoberto), Jacqueline Lamba, André Masson, André Breton e Varian Fry | Foto: Reprodução
O secretário de Estado dos EUA, Warren Christopher, “pediu desculpas a Fry”: “Estamos aqui para prestar um tributo a (…) Varian Fry, um homem notável e um americano notável. Infelizmente, durante sua vida, seus feitos heroicos nunca receberam o apoio e o reconhecimento que mereciam do governo dos Estados Unidos, inclusive, lamento dizer, do Departamento de Estado”.
A crise provocada pela iniquidade que viu na França levou Varian Fry a separar-se de sua mulher e casar com uma jovem, com quem teve três filhos.
A agente literária e, depois, escritora Hertha Pauli acertou em cheio: “Parte dele continuava em Marselha (….). Saímos da armadilha como raposas que deixam para trás um pedaço da pata”.
Varian Fry ganhava a vida como professor de latim e grego, teve depressão e morreu solitário, sem reconhecimento. Felizmente, a história lhe fez jus.
“Você se tornou quase mais francês que americano”, disse-lhe Danny Bénédite, o que, certamente, agradou Varian Fry.
Entretanto, mais do que francês, Varian Fry mostrou que as dificuldades para salvar milhares de pessoas, e ele não se preocupava apenas com os famosos, porque ele próprio não buscava fama, tornaram-no um (grande) homem, um humanista.
[Texto publicado no Jornal Opção na edição de 8 a 14 de fevereiro de 2009]
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