Uma cela para Steve Bannon, o chinês Guo Wengui, a cloroquina e a saída de Messi
30 agosto 2020 às 00h00
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Por que o americano Steve Bannon e Guo Wengui defendem tanto o uso da cloroquina contra o novo coronavírus?
Halley Margon
De Barcelona
Agosto, como sabemos, é conhecido como um mês agourento ou o mês do cachorro louco. E não estamos num agosto qualquer. Segunda-feira, 31, é o último dia de agosto de 2020, o ano da pandemia. A coisa está feia para todo lado. Pode estar pior para uns que para outros. Mas tudo no campo da sorte e do azar é mais ou menos relativo e, dependendo do ponto de vista, pode até não ser tão ruim assim.
Nos Estados Unidos, a semana começou com a oficialização da candidatura do presidente Donald Trump à reeleição com a mídia mundial ainda repercutindo a prisão de Steve Bannon, aquele, que segundo sua própria avaliação, foi o principal estrategista da campanha presidencial republicana, quatro anos atrás. Preso na quinta-feira da semana anterior, 20 de agosto, enquanto curtia o verão do hemisfério norte no iate do bilionário chinês Guo Wengui, foi solto após passar a noite na cadeia e pagar uma fiança de 5 milhões de dólares. Semana que vem se apresentará à juíza Analisa Torres, do Tribunal Distrital de Manhattan, onde está sendo processado. Devido à pandemia, a magistrada determinou que o comparecimento de Steve Bannon será eletrônico.
O todo-poderoso ex-assessor de Trump, consultor formal ou informal do presidente Jair Bolsonaro e família e ideólogo da nova ultradireita europeia está sendo acusado de “conspiração para cometer fraude” e “conspiração para lavagem de dinheiro”. A cifra é de 25 milhões de dólares. Trata-se, na verdade, de roubo puro e simples. Roubo das doações feitas por centenas de milhares de cidadãos para uma instituição fundada por Steve Bannon e outros três pilantras (a We Build the Wall) para apoiar a construção do muro na fronteira dos Estados Unidos com o México — outro autêntico muro da vergonha, como o de Berlim, mas em geral tratado mui docilmente pela mídia ocidental. Os especialistas do sistema judicial americano garantem que, se condenado o bando, “pode ficar preso por muitos e muitos anos”.
Agora, vamos por parte, porque aí há carne para todos os gostos.
Menos de dois meses atrás, em 5 de julho, publiquei um primeiro artigo chamando a atenção para a atuação do personagem (“A ultradireita europeia não se esconde e ousa mostrar sua face e ideias”) no qual comentei: “Essa ideia do homem das sombras, sempre presente no mundo da política, tornou-se um mantra para os operadores que atuam sob a inspiração… do ideólogo mor, o americano Steve Bannon e sua empresa de assessoria (a The Movement, com sede em Bruxelas)”. Em sequência, mais dois textos, em 18 e 26 de julho respectivamente. Neste primeiro texto já dizia o que a prisão do ideólogo apenas escancarou: “…quando se olha mais de perto para a atuação de Bannon… o que se vê é a dificuldade de estabelecermos uma fronteira entre o ideólogo e o homem de negócios disposto a ganhar dinheiro com seu escritório de assessoria política. As duas atividades parecem estar umbilicalmente casadas”.
Há mais, muito mais. Pedaço por pedaço, ligando as pontas como num romance policial (porque um pouco é disso que se trata quando olhamos o universo no qual se movimenta essa esperta gente da nova ultradireita), no fim da trama veremos se descortinar um interessantíssimo universo de interesses criminosos. Também no Brasil, deveria haver todo interesse na trama porque, como se sabe, Steve Bannon é ou era consultor do presidente Bolsonaro.
Duas perguntas detetivescas
1 — Quem é o chinês bilionário dono do iate Lady May, onde Steve Bannon foi capturado?
Guo Wengui, de 53 anos, fez fortuna durante duas décadas a partir dos anos 1990, na China criada por Deng Xiaoping (1904-1997), investindo no ramo imobiliário. Fugiu para os Estados Unidos em 2015, quando sua relação com os funcionários do Partido Comunista Chinês, que até então o amparava, se deteriorou. Em Pequim há mandados de prisão contra Guo Wengui, acusado de crimes como suborno, sequestro, fraude, lavagem de dinheiro e estupro. No autoexílio americano é membro do exclusivíssimo clube de bilionários Mar-A-Lago pertencente a Donald Trump.
No documentário “Steve Bannon — O Grande Manipulador” (Alyson Klayman, 2019), Miles Kwok, como também é conhecido o sr. Guo Wengui, aparece abrindo as portas de uma de suas residências para muito cortesmente recepcionar o amigo americano. Antes que isso aconteça, um repórter que acompanha as filmagens se dirige a Steve Bannon e pergunta:
“— Existe alguém de quem não aceitaria dinheiro?
“— Eu não aceitaria dinheiro de estrangeiros… Sou bastante seletivo de quem aceito dinheiro. Sempre tive bons parceiros. Sempre fui feliz com meus sócios.
“— Miles (Wengui) respaldou seu filme ‘Trump @War’ ?
“— Quem?
“— Miles.
“— Que tipo de respaldo?
“— Financeiro.
“— Não. Nunca aceito dinheiro dele.”
Como se vê, a mentira é parte do receituário, tão natural quanto respirar.
2 — O que fazia o americano no iate prateado de 151 pés, além de tomar uns tragos e fumar uns puros ao lado do “entrepreneur” do ramo imobiliário (como o colega presidente dos Estados Unidos)?
A seguinte cena não é invenção. Está num vídeo gravado pelo próprio magnata chinês no interior da sua luxuosa embarcação (atualmente à venda por 27,9 milhões de dólares) e pode ser encontrado no You Tube (https://www.youtube.com/watch?v=mVrCRm-KXvE). A data é de 5 de agosto de 2020, apenas 15 dias, portanto, antes da prisão de Steve Bannon.
Queimados de sol, trajando camisas polo com a gola levantada e envoltos pela suave fumaça branca expelida pelos charutos com os quais se deliciam, Steve Bannon e Guo Wengui criticam o governo da China, discursam como heróis da democracia, da liberdade e do Estado de Direito. Feito isso, lançam-se ao principal: a entusiasmada defesa dos supostos benefícios da cloroquina. Isso mesmo, da famosa cloroquina. (Parêntesis, apenas para ir juntando os pontos: não é curioso que seja o mesmo produto do qual presidente do Brasil se fez garoto-propaganda?)
Claro, porque ao papel de autênticos defensores da democracia, em tempos de pandemia soa extremamente bem somar o papel de paladinos da saúde pública mundial. Será apenas conveniência ou terão os sócios outros interesses para defender a cloroquina com tanta ênfase? Podemos talvez supor que alguma ou algumas empresas a fabriquem. Mas isso será mera especulação. Do mesmo modo será mera especulação dizer que quem a produz também terá interesse em comercializá-la. E, portanto, em faturar uns trocados com o treco. Não é mais ou menos assim que as coisas funcionam? Estarão acaso todos eles, Guo Wengui, Steve Bannon, aqueles a quem presta ou prestou consultoria no hemisfério sul, interessados em faturar com a cloroquina? No mesmo vídeo anunciavam para breve uma espetacular apresentação de um grupo de cientistas com o propósito de promover o uso do produto — provavelmente os planos se verão frustrados.
O fato é que a prisão do ex-conselheiro de Trump escancara que por detrás e acima da causa pública há o interesse privado, a ganância pura e simples — “a base sobre a qual se ergueu a América”, como dizia o megaespeculador Gordon Gekko no primeiro “Wall Street” de Oliver Stone. Os escroques em estado puro circulam muito bem e se sentem perfeitamente à vontade no ambiente no qual floresce a ultradireita, de um lado e do outro do Atlântico, ao Norte ou ao Sul do hemisfério.
Reeleição de Donald Trump e Lionel Messi
A derradeira semana de agosto seguiu adiante com os shows de lançamento da campanha pela permanência de Donald Trump na Casa Branca — apesar das pesquisas, seria uma estupidez dar como certa a derrota do republicano.
Por último, mas não menos importante, pelo menos para o apaixonado povo catalão, o argentino Lionel Messi comunicou ao Barcelona que pretende deixar o clube por intermédio de um burofax (serviço de fax para envio de documentos exclusivo dos postos de correio).
Após duas décadas completas defendendo as cores do time, a decisão do jogador está provocando protestos diários dos torcedores revoltados com a diretoria, mas, desde a derrota por 8 a 2 para o Bayern de Munique, no meio do mês, já ninguém mais acreditava na permanência do genial jogador na capital da Catalunha (estaria negociando com o Manchester City do técnico Pepe Guardiola).
A última notícia diz que o presidente do clube anuncia sua disposição de deixar o cargo para que o craque permaneça. Assim são as coisas na Catalunha, ao menos quando se trata do Barcelona.