Tenente Vermelho tentou fazer Jango reagir ao golpe de 1964
11 maio 2020 às 16h31
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O Tenente Vermelho, José Wilson, assessor militar de Brizola, pensou em prender Jango num quarto para forçá-lo a enfrentar o golpe, mas o presidente preferiu fugir
Euler de França Belém
[Entrevista publicada pelo Jornal Opção na edição de 2 a 8 de setembro de 2001]
Num livro clássico, “Estado e Oposição no Brasil”, Maria Helena Moreira Alves contou parte da história de militares que foram perseguidos pela ditadura civil-militar iniciada em 1964. A obra da década de 1980, não teve continuidade. Falta um estudo mais denso sobre os militares punidos pelo regime discricionário. Terá espaço nesta pesquisa o “Tenent3e Vermelho”, o hoje (anistiado) capitão do Exército do Exército José Wilson da Silva, um dos militares mais próximos de Leonel Brizola na década de fogo, a de 1960. Numa longa entrevista ao Jornal Opção, concedida no saguão do Hotel Aracoara, em Brasília, José Wilson contou sua história e não poupou Leonel Brizola, embora reconheça seu valor pessoal.
Aos 69 anos, José Wilson mora no Rio Grande do Sul (viaja de automóvel, um Fiat Tipo, do Rio Grande a Brasília, ao lado da mulher) e trabalha intensamente para que mais militares sejam anistiados. Autor de dois livros, é um leitor compulsivo de obras o pré e o pós-1964. O mais conhecido é “O Tenente Vermelho” (Editora Tchê!, do Rio Grande do Sul), suas memórias. Desconfiado, como em geral são os militares, gravou a entrevista. Fisicamente, com sua barbicha branca, lembra um Liev Trotski encanecido. Ao seu lado, um discreto oficial da Aeronáutica, também na reserva, acompanhou a entrevista com interesse.
Espécie de autodidata que tem a disciplina do historiador acadêmico (ele escarafunchou 70 livros para escrever uma de suas obras), o capitão José Wilson diz que, para entender a reação ao golpe de 1964, é preciso explicar o contexto histórico. “A elite brasileira é apátrida e está sempre contra a nação; cabe ao povo a luta pela liberdade. Getúlio Vargas caiu porque, mesmo elitista, um apóstolo do capitalismo digamos socialdemocrata, era nacionalista. Mesmo sem ter aptidão para o comando, o presidente João Goulart tinha proposta nacional, naquele momento, em desacordo com o Império do Norte [os Estados Unidos]. Jânio Quadros quis fazer as elites políticas de instrumento e deu-se mal. Adepto do ‘euísmo’, rompeu com seus aliados da direita e tentou usar a esquerda. Ao acreditar em Jânio, a esquerda mostrou-se infantil. Na história do Brasil, o político segue as elites ou é varrido do poder.”
“Entre 1963 e 1964, os 15% militares conservadores e filo-americanos
tomaram o poder. A direita é sempre mais atrevida do que a esquerda”
A queda de Jango começou com as articulações dos militares na Escola Superior de Guerra (ESG). “O grupo de oficiais que participou da Segunda Guerra Mundial, no comando das Forças Expedicionárias Brasileiras (FEB), aninhou-se na ESG e, de lá, passou a interpretar a realidade brasileira a partir do ponto de vista norte-americano. Entre esses militares estavam Castello Branco, Cordeiro de Farias e Golbery do Couto e Silva. Cooptados pelos americanos, eles decidiram formar uma elite político-militar. Em 1954, nove anos depois da Segunda Guerra Mundial, essa elite já agia. Quando Getúlio Vargas morreu, em agosto de 1954, militares americanos estavam assessorando as Forças Armadas brasileiras. Esses grupos ajudaram a preparar a ‘queda’ de Getúlio” (Vargas caiu em 1945, voltou em 1950 e se matou em 1954).
Em oposição aos militares de direita havia os militares de esquerda, mas esses não reagiram de forma enérgica à hegemonia dos pró-americanos. A explicação do capitão José Wilson: “As Forças Armadas são uma instituição fechada, piramidal. Os ‘americanistas’, depois conhecidos como integrantes da ‘Sorbonne’, conquistaram os estados-maiores, quer dizer, dos coronéis aos generais. Como notou Nelson Werneck Sodré [historiador militar], eles tinham o controle dos ‘consulados militares’. O pessoal era formado na academia e saía de lá com a cabeça feita. A lavagem cerebral era intensa. Para chegar a general, o funil era muito estreito. Ia a general quem ‘lia’ pela cartilha do Império, dos que controlavam o ‘pensamento’ militar. Um coronel amigo meu, de Porto Alegre, foi escolhido para fazer curso de aperfeiçoamento de artilharia nos Estados Unidos. Ficou seis meses no exterior, aborrecido, porque não aprendeu nada de novo. Concluída a primeira fase, tentaram transferi-lo para um curso de guerra insurrecional, mas ele não quis fazê-lo. Resultado: não passou de tenente-coronel e seus colegas são generais. A ‘Sorbonne’ brasileira conquistou as cabeças das Forças Armadas”.
Há uma certa tendência, notadamente na esquerda, de subestimar a formação do militar. O militar, em geral, é visto como “truculento” e, mesmo, “burro”. Os que “fabricaram” o golpe de 1964 eram articulados, exceto a toupeira que desencadeou o movimento, Olímpio Mourão Filho, afiança José Wilson. “O golpe de 64 não foi trabalho de amador. Foi produto de amador. Foi produto de um esquema, foi um processo de Estado-Maior. Militares como Golbery e Castello eram preparados. A história de como planejaram e executaram o movimento militar está bem contada no livro ‘A Conquista do Estado’, do historiador uruguaio René Armand Dreiffus. O projeto, claro, não era apenas militar. Preocupou-se em orientar e integrar os vários setores das elites. Por incrível que pareça, o último estrato a ser ‘controlado’ pelos militares golpistas da ESG foi o militar. Tanto que os cerca de 15% de militares de pensamento popular garantiram a legalidade em 1961. Mas entre 1963 e 1964, os 15% conservadores e filo-americanos tomaram o poder. A direita é sempre mais atrevida do que a esquerda.”
Mesmo consolidada, a direita militar, com amplo apoio político-empresarial, ficou surpresa com a facilidade do golpe de 1964. “Não só a direita brasileira. Os norte-americanos ficaram ainda mais surpresos. A revista ‘Seleções do Reader’s Digest’ publicou reportagem em que mostrava o Brasil como ‘o país que salvou a si mesmo’. Quer dizer: salvou-se do comunismo. A tese é que Cuba estava se incrustando no Brasil. Os historiadores discutem a questão da participação norte-americana no golpe e se conclui, em geral, que o golpe foi um negócio brasileiro. Mas é preciso acrescentar que o financiamento do golpe foi local e americano. O dinheiro era enviado para os militares desde, pelo menos, a década de 1950. Milhares de militares foram treinados no país fora do país, nos Estados Unidos, no Panamá”, diz o capitão José Wilson. “O Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) financiou as eleições de vários políticos reacionários. Havia no Congresso a bancada do Ibad e alguns governantes, como Magalhães Pinto [Minas Gerais], Ildo Meneghetti [Rio Grande do Sul] e Carvlho Pinto [São Paulo], foram eleitos com dinheiro do esquema golpista”.
“Se Jango tivesse 10% do vigor de Collor, o país teria avançado.
Não decidia. Consultava e, no final, deixava para os outros decidirem”
João Goulart, Jango, é um personagem pouco examinado¹ pelos historiadores, que não chegaram a um consenso sobre o político gaúcho como líder ou estadista. Não era comunista. No máximo, pode-se tachá-lo de socialdemocrata incipiente. Um homem inteligente, mas tosto e inculto. A versão do capitão José Wilson: “Jango era um líder popular, fazendeiro, muito democrata, bonachão, simpático. Numa conversa de poucos minutos, cativava seu interlocutor. Se tivesse 10% do vigor de Fernando Collor, o país teria avançado de forma extraordinária. Jango não tinha pulso, não decidia. Consultava, consultava e, no final, deixava para os outros decidirem. Gostava mesmo era de negociar com, entre outros, sindicalistas, embora fosse acusado de manipulá-los. Atendia todos os setores. Recebia de marinheiro a sargento, o que chocava os comandantes militares. Na visão dos chefes militares, Jango estava ‘quebrando’ a hierarquia. Jango pensava diferente; como era presidente, estava recebendo uma representação. O fato de ter recebido marinheiros e sargentos foi pretexto, o gatilho. A estratégia para o golpe já estava montada. O golpe sairia dia menos dia”.
Para alguns analistas, Jango era um político ambicioso, arrivista. Não é o que pensa José Wilson: “Eu acredito que Jango nem pensava ser presidente da República. A vice-Presidência estava ótima para ele. Na época, o vice-presidente era o presidente do Congresso. Ele fazia política no exterior, o que achava o máximo”.
Para o capitão José Wilson, a decisão de não reagir ao golpe de 1964 foi típica de Jango. “Com outro presidente, o país teria se dividido. Jango não tinha temperamento para resistir, para enfrentar uma guerra cruenta.” O dispositivo militar de Jango, “comandado” pelo general Assis Brasil, não funcionou por quê? “Assis Brasil era nosso amigo, em Porto Alegre, e nós, legalistas, dizíamos: ‘General, o golpe está em andamento’. Ele respondia: ‘Podem ficar tranquilos. Nós estamos acompanhando. Se botar a cabeça para fora, nós vamos cortar’. Jango confiava no ‘esquema’ do Assis Brasil. O general, que era considerado pela direita como ‘comunista perigoso’ a serviço de Moscou, foi frouxo, em 1964. Mas em 1961 não ocorreu um golpe de Estado porque o Rio Grande do Sul reagiu certeira e rapidamente. Quem comandou a reação no quartel foi o Assis Brasil. Eu comandei a minha unidade, os sargentos assumiram a base e botaram os oficiais para correr. Assis Brasil foi o grande aliado de Brizola. Sem Brizola, Jango não tomaria posse.”
Na versão do capitão Wilson, “o sonho de Brizola era fazer Jango repetir o Getúlio Vargas de 1930. Ele queria que Jango assumisse com plenos poderes. Era para fazer uma revolução. Aquele foi um momento histórico perdido. Jango não teve visão do processo, não tinha temperamento”.
A seguir, o capitão Wilson conta uma história que julga reveladora do caráter de Jango: “Na madrugada do dia 2 de abril de 1964, quando pensávamos que ainda era possível reagir, conversamos com Jango em Poro Alegre. Ele tentou fugir, não conversar cm a gente, mas conseguimos segurá-lo. Então, ele me pegou pelo braço e disse: ‘Wilson, eu não quero derramamento de sangue. Não sou revolucionário. Revolucionário é o Brizola. Conversa com ele e com o [coronel] Alvarez’. Quando entramos num banheiro — conspirava-se até em banheiros — para conversar e propor uma reação, Jango escapou, fugiu de nós. Não estávamos preparados para entregar o poder daquela maneira. Estávamos mais preparados para reagir, para morrer, se fosse o caso. Se fosse preciso, iríamos atirar e tomar quartel”.
Por que não houve reação sem Jango? “Devido à desgraçada da hierarquia. Estávamos preparados para reagir a partir de Porto Alegre, com a chegada do presidente legal o país. Mas, enquanto aguardávamos, o outro lado, ainda na clandestinidade, começou a ocupar posições. Jango ficou negociando da madrugada do dia 1º até a amanhã do dia 2 de abril com o general Amaury Kruel. Então, Jango atrasou-se. Não quero ser malicioso com o Jango, mas, de modo intencional ou não, ele proporcionou condições para que o outro lado assumisse o comando do país”, revela o capitão Wilson.
Jango, segundo o capitão Wilson, “atrasou a ordem de reagir e general age em função da ordem do presidente e o coronel age em função da ordem do general e assim por diatne. A nossa pirâmide foi amortecida a partir da cúpula. A reação foi retardada. Se a gente tivesse deixado o Jango preso num quarto, a história do país poderia ser outra. Não faltou quem, naquele momento, não tenha pensado nisso”.
O general Kruel estava envolvido na conspiração, mas Jango o considerava “amigo”, diz o capitão Wilson. “O general Adalberto Pereira dos Santos, depois vice-presidente da República, o coronel Plácido Nogueira de Castro, que comandava o 18º R. I., que era uma unidade muito pesada em Porto Alegre, e o coronel Ibá Ilha Moreira eram o centro da articulação golpista no Rio Grande do Sul. O Adalberto comandava a 6ª Divisão de Infantaria, em Porto Alegre, e conspirava abertamente. A gente contava para o Jango, que não se mexia. Depois, tirou o Plácido Nogueira de Castro do comando do 18º R. I., mas pôs no colégio militar. Quer dizer, ele ficou em Porto Alegre, com mais tempo para conspirar.”
“Objetivo de Jango era conter o avanço da direita. A gente sabia que se
caminhava para um golpe de direita. Pensava-se em antecipar o golpe”
Em relação à esquerda, Jango julgava que ela estava sob seu controle. “Ele conversava com os esquerdistas com o objetivo de mantê-los sob controle. Ele disse isso a mim, no exílio do Uruguai”, revela o capitão Wilson.
O capitão Wilson confirma o que já disseram, entre outros, o economista Celso Furtado e o antropólogo Darcy Ribeiro: Jango pensou num golpe. Ou “contragolpe”, como prefere o capitão. “O objetivo de Jango era conter o avanço da direita, não era instalar uma república comunista. A gente tinha conhecimento pleno de que se caminhava para um golpe de direita. No Rio Grande do Sul, sobretudo, pensava-se em antecipar o golpe.” O almirante [Cândido] Aragão armou a tropa e queria reagir, mas logo percebeu a falta de tutano de Jango. Aragão iria prender Carlos Lacerda.
Quanto a Brizola, por que não reagiu? A análise do capitão Wilson: “Brizola foi decisivo em 1961. Como governador do Rio Grande do Sul, tinha a brigada na mão. Foi fácil. O episódio de 61 fez com que Brizola se lembrasse das revoluções gaúchas do século 19. Se as revoluções não davam certo, os revolucionários escapavam para o Uruguai ou para a Argentina. Eles se juntavam debaixo de uma figueira, reuniam a tropa e fazia nova incursão. Só que em 1964 foi bem diferente. A política e a tecnologia eram outras. Os interesses eram muito maiores. Não adiantava atravessar a fronteira. Eles [os golpistas] iam lá e matavam seus inimigos, como mataram o general Prats [Carlos Prats González — 1915-1974] e Letelier [o diplomata e político Orlando Letelier del Solar — 1932-1976], do Chile. Brizola não entendeu que o país e o mundo haviam mudado. Mesmo quando tentávamos articular uma reação a partir do Uruguai, Brizola continuava aquele caudilho do século 19. Brizola é um patriota, um nacionalista, mas pela pelo ‘euísmo’. Ele se acha o centro de tudo, aliás, tem como princípio que é o início, o meio e o fim [o capitão, sempre sisudo, ri ao dizer isto]. Parece que agora está começando a negociar o fim”.
O golpe teve no general Castello Branco um de seus cérebros liberais, mas, no seu governo, o general Costa e Silva ficou como uma espécie de primeiro-ministro, o que se configura uma contradição. De um lado, um liberal, Castello Branco; de outro, um duro, Costa e Silva. O capitão Wilson tenta deslindar o problema: “Costa e Silva era o mais antigo. Por isso, assumiu o posto de ministro do Exército quase como se fosse primeiro-ministro”.
A interpretação do fim da ditadura não é ortodoxa. Na avaliação do capitão Wilson, os militares, que ele chama de “milicos”, são patriotas. “Em 64 foram usados como instrumentos pela elite conservadora brasileira e pelos Estados Unidos — que estão disputavam a hegemonia no mundo com a União Soviética. Mas, no geral, o milico é patriota. Quando os americanos decidiram hastear bandeira no território brasileiro, os milicos reagiram. O presidente Ernesto Geisel e companhia, sob pressão, mudaram de perspectiva. O próprio Costa e Silva era patriota. Geisel era patriota. Castello Branco era internacionalista, pró-americano. Seu principal ministro, Roberto Campos, era representante oficial do americanismo no Brasil.”
Para o capitão Wilson, quando os militares reagiram, os americanos decidiram “trocá-los”. “Nunca houve tanto entreguismo quanto agora sob os governos dos civis, na democracia, estou, apenas, apontando um fato.”
Na década de 1960, aqueles que defenderam a Amazônia foram presos e, em alguns casos, torturados. “Agora, pelo contrário, quem está defendendo a Amazônia são os militares”, diz o capitão Wilson. “Santa Cruz, do comando militar da Amazônia, levou parlamentares à região para mostrar a infiltração estrangeira. O projeto Calha Norte é uma forma de evitar a formação do Estado ianomâmi, de interesse americano. Então, aqueles que nos colocaram na cadeia, porque éramos nacionalistas, agora são os primeiros a adotar posições nacionalistas.”
“Darcy Ribeiro deu dinheiro cubano a infiltrado do Exército”
Cerca de duas mil pessoas participaram do esquema de reação aos militares, a partir do Uruguai, em tese sob a chefia do “comandante” Leonel Brizola, espécie de Fidel Castro dos pampas. “Brizola acreditava mais na ala política, mas não havia uma preparação ideológica mais consistente. Os comunistas se comportavam melhor, tinham mais vivência. Eles marcavam um encontro numa rua e a tolerância era de dois minutos. No campo brizolista, era diferente. Tudo que se falava em Montevidéu em questão de dias era sabido em Porto Alegre. Fui até considerado ‘informante’ da repressão. Depois, descobrimos que as informações vazavam por intermédio de uma pessoa da cozinha de Brizola, um homem para o qual Brizola não tinha segredos. Ele fazia confidências para sua mulher, que conversava com uma vizinha, mulher de um policial. Brizola não se preocupava muito com a segurança.”
O capitão Wilson conta que Brizola e seus liderados estavam preparados para o contragolpe em setembro de 1964. “Nem que partisse para o suicídio. Mas em setembro houve algumas quedas e a ditadura começou a se organizar e a detectar os pontos. Renovamos a data para novembro, janeiro. Eu concluí: ‘não sai mais nada’.”
Quando estava no interior, “cultivando a terra”, o capitão Wilson foi buscado pelo motorista de Brizola, Brandão. “Ele dirigia a 120 or hora. Estava tudo preparado para a reação, mas, de novo, deu em nada. O movimento era para contar com 100 pessoas e apenas duas ou três pessoas participavam das reuniões.”
A informação de que Brizola não ouve ninguém é contestava, ironicamente, pelo capitão Wilson. “Ele é bom ouvinte, mas faz o que quer”, diz, rindo, o capitão. “Brizola consulta seus aliados, mas só faz o que quer, tanto que jamais conseguiu fazer um substituto. É um patriota, mas é ‘euísta’, centralizador.”
Se Brizola se metia a revolucionário, João Goulart só conversava com políticos tradicionais (como Juscelino Kubitschek e, depois, até Carlos Lacerda). “Jango não acreditava no Brizola. A Neusa, irmão de Jango e mulher de Brizola, acompanhava tudo, mas não se manifestava. A mulher do Jango, a Maria Tereza, era alienada”, conta o capitão Wilson.
O líder cubano Fidel Castro deu 1 milhão de dólares
para Leonel Brizola gastar com a revolução no Brasil
No livro “O Tenente Vermelho”, o capitão Wilson relata como o dinheiro de Cuba, enviado por Fidel Castro, chegava até Brizola. O caudilho não gostou da revelação. “Quando o livro ia sair4, ele mandou um cupincha me ameaçar. Falou em processo.” O capitão não acredita que Brizola tenha usado os dólares cubanos para comprar fazenda. E não foi processado depois da publicação da obra.
No Uruguai, o grupo de Brizola era “gigantesco”, reafirma o capitão. “Um grupo conversava com Jango e Brizola e outro grupo falava mais com Brizola. Entre eles estavam Neiva Moreira, Max da Costa Santos, Paulo Schilling, Darcy Ribeiro. Darcy era mais Jango. Mas, quando ia discutir algum assunto mais sério sobre reação ao golpe, Brizola se reunia comigo, Aldo Arantes e Betinho [Herbert de Souza, o irmão de Henfil]. Eu, Aldo e Betinho fazíamos parte do último núcleo brizolista.”
A história do dinheiro cubano, 1 milhão de dólares, contada pelo capitão Wilson: “O dinheiro chegou ao Uruguai em duas partes. 1 milhão de dólares parece muito, mas os gastos eram imensos. Era preciso sustentar centenas de pessoas, entre elas, companheiros, aproveitadores e até policiais. O hotel onde Brizola ficou durante algum tempo, cerca de 15 dias, estava completamente infiltrado por policiais brasileiros”.
Brizola era pão-duro, diz o capitão Wilson. “Ele passava o dinheiro contadinho para as tarefas. A minha convicção é que ele não gastou o dinheiro cubano comprando bens, como fazenda. Ele deve ter tirado dinheiro do próprio bolso para gastar com os revolucionários brasileiros. Fidel Castro teria chamado Brizola de “El Ratón’, mas a acusação parece injusta.”
Em “O Tenente Vermelho”, o capitão Wilson registra: “Que eu saiba, o primeiro contato feito com Cuba foi através do deputado uruguaio Ariel Colazzo”. A historiadora Denise Rollemberg, no livro “O Apoio de Cuba à Luta Armada no Brasil” (Editora Mauad), apresenta outra versão: “Paulo Schilling [aliado de Brizola] diz que os contatos se davam através da embaixada cubana em Montevidéu”.
Por que Cuba foi o país procurado para financiar a “revolução” brasileira? “A quem íamos recorrer. Nos sobrou o outro, Cuba. Não dava para buscar apoio nos Estados Unidos. Quem buscou dinheiro lá foram os golpistas de 64. Mas a influência cubana não foi tão forte quanto diz a historiadora Denise Rollemberg. O dinheiro era canja, não deu para nada. Era muito para Cuba, mas pouco para nós.”
O marinheiro Avelino Capitani, nas suas memórias, conta que Che Guevara esteve com Brizola. O capitão Wilson duvida: “Não tenho informações sobre o assunto. Brizola tinha admiração pela luta de Che Guevara, mas não era comunista, marxista, nunca leu Marx. Era admirador do positivista Júlio de Castilhos (1860-1903). Ele é um político de luta popular, mas de visão paternalista, trabalhista. Alguns militares gostavam de Brizola devido ao seu nacionalismo”.
Darcy Ribeiro deu dinheiro para um militar infiltrado
Darcy é um personagem que sai chamuscado. “Darcy era deslumbrado com sua própria sabedoria. Ele falava demais nas reuniões. Mas, na prática, errou ao dar dinheiro a um elemento do Exército, Leovegildo Lopes, um infiltrado. Darcy acreditava nele, o que prova que, politicamente, era ingênuo”, conta o capitão Wilson.
No livro “O Tenente Vermelho”, o capitão Wilson é mais explícito sobre o dinheiro cubano (página 202): “Fidel enviou, a título de ajuda, 500 mil dólares. Desta importância, segundo um relatório de Brizola para nós, um terço teria ficado com Jango, pois a este estavam ligados vários exilados necessitados. Ou terço teria ficado com Darcy Ribeiro, por questão de segurança e que também tinha parte de responsabilidade. O outro terço teria ficado com Brizola. Lembro-me que ele, Brizola, ficou muito aborrecido porque as ações mais positivas estavam sendo feitas pela nossa gente e ficamos desse modo com relativamente pouco dinheiro. Parte dessa importância foi gasta com elementos no exílio, parte com a assistência a companheiros no Brasil em situações críticas, como presos com família sem recursos etc., e parte com os homens-correios para implementação já de esquemas de trabalho, aliás, tudo em função de um plano de ação armada. Dado o número de pessoas em dificuldades pela desarticulação da sociedade, em especial gente humilde, que eram as bases trabalhistas ou de esquerda, isto não era mais do que uma gota d’água num oceano de necessidades”.
“Mais tarde”, nota o capitão Wilson, “o companheiro Lélio Carvalho completou contato com Fidel no acerto de novo auxílio que foi realizado e canalizado por Darcy Ribeiro. Mais 500 mil dólares, esses sim, em sua maioria para o esquema de resposta armada. Com esta importância foi garantida a subsistência de um pequeno número de pessoas comprometidas com o trabalho, entre elas eu. (…) Com este dinheiro foi montada quase toda a operação Caparaó, último recurso e esperança de fazer algo, talvez para justificar o precioso recurso vindo do povo sofrido de Cuba”.
Ao Jornal Opção, o capitão Wilson sintetizou a “guerrilha” (que não houve) de Caparaó: “Foi a patada do afogado”. A “Sierra Maestra” foi o fim de tudo.
Nota
O trecho em que o capitão José Wilson fala do suicídio político de Lula da Silva não é republicado. Desatualizado, não tem abrangência histórica. O título também foi modificado. O original era “O capitão que tentou fazer Jango reagir em 64”. Na época, o militar ainda era tenente. Hoje, mesmo sendo capitão, continua conhecido como Tenente Vermelho.
Colaborou o jornalista e pesquisador Jarbas Silva Marques.
E-mail: [email protected]