Tapa do papa Francisco em mulher não reduz sua relevância como religioso e homem exemplar
04 janeiro 2020 às 23h14
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Francisco não é de esquerda nem de direita. Trata-se de um líder que está tornando a Igreja Católica contemporânea de seus fiéis
O papa Francisco não está mudando a Igreja Católica – cuja base doutrinária é, por certo, imutável (possíveis acréscimos não mudam a essência). O que está fazendo, enfrentando uma resistência orgânica – que tenta inclusive apresentá-lo como comunista, o que não é e nunca foi –, é atualizando o comportamento, a atitude da Igreja em relação à sociedade. Tornando o “espiritual” mais realista, com mais aceitação das diferenças e da diversidade da sociedade, ou seja, da vida real dos homens.
Francisco, um grande papa, não quer desespiritualizar o homem; pelo contrário, quer reespiritualizá-lo. Para tanto, porém, precisa reaproximá-lo da Igreja. Para reconquistá-lo, a Igreja deve entender que o mundo, que não para de mover-se – ainda que se preservem determinadas estruturas sociais –, não é o mesmo de, digamos, cincoenta ou cem anos atrás. Ou a Igreja atualiza-se, entendendo que há um homem novo – ainda que nem tão novo assim (novo, de fato, é o avanço tecnológico rápido, incontornável e incessante) – ou ficará falando para si própria e para um ser humano que não existe mais.
Na tentativa de tornar a Igreja contemporânea de seus fiéis, para não ficar falando para as paredes, Jorge Mario Bergoglio enfrenta a ira dos fundamentalistas internos e externos.
Um indivíduo vai “deixar” de ser homossexual por que “aceitou” a palavra de Deus? Em alguns casos, sobretudo se a pressão é intensa, pode até ser que finja – para gerar aceitação familiar ou da Igreja. Interiormente, porém, não mudará. Aos 83 anos, tendo ouvido fieis na Argentina e, agora, em todo o mundo, o papa Francisco sabe que a vida real de um ser humano e a vida irreal à qual querem enquadrá-lo jamais falarão a mesma língua. A primeira vai prevalecer – no dia a dia, às claras ou escondido.
Ao tornar a Igreja mais transparente, por exemplo no caso de assédio sexual, o papa Francisco inova – e, ao mesmo tempo, ganha adversários internos. O que Bergoglio está dizendo, de maneira enérgica, é que mesmo aqueles que trabalham para a Igreja devem respeitar as leis às quais estão submetidas as outras pessoas e que os abusos não deixarão mais de serem apurados.
Assim como outros papas, Francisco faz apelos pela paz – e é mesmo o que deve fazer. Como estadista – o papa é o primeiro-ministro ou até imperador da Igreja Católica –, Bergoglio sabe que a paz nem sempre é possível e que, para conquistá-la, às vezes é preciso ir à guerra (caso da luta dos Aliados contra Hitler e Mussolini). Há, como notou Norberto Bobbio, guerras justas. Mas um líder religioso, sobretudo da estatura do religioso argentino, tem de pregar a paz, não a guerra.
Percebe-se que parte da direita execra o papa Francisco, que estaria “esquerdizando” a Igreja Católica. Trata-se de um equívoco e de “informação” de má qualidade, puramente ideologizada, que, lida nalgum lugar, é repetida sem o mínimo grau de reflexão. Parte da esquerda avalia que Bergoglio está no rumo “certo” e o trata como “progressista”, um “companheiro de jornada”. Outra parte da esquerda sugere que o religioso da terra de Jorge Luis Borges não está promovendo mudanças num ritmo acelerado e há quem postule que tais mudanças são, no geral, “cosméticas”. A maioria das pessoas – quiçá não ideologizadas – parece percebê-lo como um líder religioso extraordinário, que diz o que precisa ser dito, e sua modéstia, que é real, é contagiante.
Francisco-Bergoglio choca porque, apesar de papa – de representar uma instituição milenar, que, por isso, muda devagar –, mantém sua identidade, preserva sua individualidade. Por isso está imprimindo sua marca na Igreja – fazendo-a avançar, apesar da resistência. Ele não é de esquerda nem de direita. Mas, sim, é um democrata (politicamente, aproxima-se do centro) e, também, o representante de um império solidamente fincado na vida dos ocidentais, sobretudo.
Recentemente, agarrado pelo braço por uma mulher, reagiu dando-lhe tapas. Estava mais tentando se livrar da sra. do que espancando-a. Afinal, é um homem de 83 anos, com ossos frágeis, e sempre há o temor de que um simples afeto pode esconder outras coisas. Por uma falha de segurança, o papa João Paulo 2º – outro religioso excepcional, de uma consciência histórica rara (daí sua contribuição para a demolição do comunismo no Leste Europeu) – quase foi assassinado por um turco.
Depois, o papa, um homem sofisticado e, ao mesmo tempo, simples, modesto, pediu desculpas. Disse que, embora devesse dar o exemplo, não havia dado. Talvez seja uma pergunta inútil, mas vá lá: o papa teria “agredido” um homem como fez com a mulher? (A “mensagem” é realmente ruim: até o papa “bate” em mulher!). Há um machismo poderosamente incrustado na, digamos, alma dos homens e que, mesmo quando modernos e pacíficos, às vezes comportam-se de maneira agressiva, física ou verbalmente, com as mulheres? Talvez sim.
Entretanto, se o ser humano deve ser avaliado pela média – porque, pelos extremos, todas as avaliações acabam por serem negativas –, e não por um único fato, uma derrapada, o que persiste é o fato de que Francisco é um religioso crucial para a sociedade e, também, um grande homem.
Francisco é um homem, é um religioso. Mas não é santo. Como, aliás, muitos daqueles que se tornaram santos, mas que, na vida cotidiana, não eram tão santos assim. Se somos nós e nossas circunstâncias, Bergoglio foi pego num dia ruim e derrapou. Mas é preciso insistir que se trata de um líder relevante – e mesmo para aqueles que, como eu, não são religiosos.