Tálita, a aluna cega que mudou o ensino na Faculdade de Letras da UFG
28 novembro 2017 às 15h38
COMPARTILHAR
Jovem não se considera vítima, toma nove ônibus quando tem aula na universidade e na academia de judô. Limpa sua casa e cozinha. Viaja para outras cidades de ônibus e avião. E pretende fazer mestrado
Edmar Oliveira
O dia começa para Tálita Serafim Azevedo, de 24 anos, às 5h15, hora que o despertador do smartphone avisa que é preciso levantar-se, vestir a roupa e tomar o café da manhã para não perder o ônibus da linha 717, que passa às 5h45 e liga o Jardim Curitiba IV ao terminal Padre Pelágio, na saída para Trindade, Goianira e Inhumas. A plataforma C do terminal é passagem obrigatória para Tálita, que toma o ônibus do Eixo Anhanguera e vai até o terminal Praça A, em Campinas. De lá, segue em mais uma viagem até a Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG), Campus 2 — ou Campus Samambaia —, onde a primeira aula começa pontualmente às 8h. No trajeto de ida e volta, desafios constantes nos ônibus: a ignorância e o preconceito de parte dos usuários, que muitas vezes não cedem o assento, dirigem-se à estudante com frases deseducadas, como “coitadinha”, “sua mãe devia estar com você”, “é muito perigoso andar sozinha” e “como você consegue chegar em casa?” É claro, há pessoas gentis que oferecem ajuda, conversam com naturalidade — como deve ser — e parabenizam a estudante pelo esforço e superação. Neste semestre, Tálita passou a ter aulas à tarde duas vezes por semana e chega em casa por volta de 20h.
Na faculdade, sobretudo nos três primeiros semestres, Tálita enfrentou obstáculos que chamaram a atenção de professores e colegas e promoveram mudanças importantes na forma de lecionar. A presença da aluna cega, inteligente e questionadora, desestabilizou a rígida estrutura de ensino da UFG. Educadores passaram a buscar formas de inclusão, adaptando seus métodos à realidade da estudante. “Deparei-me com professores que pareciam espantados com a minha presença, que achavam que algum familiar devia estar comigo. De cara, notei o despreparo para lidarem comigo.” Tálita se deparou ainda com a falta de material para seus estudos. No ensino médio, utilizava o braille. Na faculdade um amigo ditava as atividades para ela. Quando eram capítulos de História, matéria extensa, novamente contava com a ajuda de um colega ou da mãe, que fazia a leitura gravando para a estudante. Ela ouvia e fazia as tarefas.
No ensino médio, Tálita não tinha computador com leitor de textos adaptado. Ao entrar na faculdade, adquiriu um notebook, que a auxiliava a ler textos digitalizados para, assim, entregar os trabalhos aos professores. Mas, no início do curso, não havia trabalhos digitalizados ao seu dispor. Para o computador ler, é preciso estar no formato de textos. Às vezes, Tálita conseguia o material em PDF, mas por fotos, ou seja, seu notebook não conseguia ler. Enfim, obteve a compreensão de alguns professores, que passaram a enviar-lhe os materiais por e-mail para serem baixados no computador.
Tálita mobilizou professores e a própria UFG, que acionaram o Núcleo de Acessibilidade para assumir a adaptação do material. Em 2015, numa parceria com o Sistema de Bibliotecas (Sibi), foi criado o Laboratório de Acessibilidade Informacional (Lai), que oferece comunicação e informação a pessoas com deficiência, e fica dentro da Biblioteca Central. O Núcleo de Acessibilidade existe desde 2008, recebe alunos com necessidades específicas e faz estudo de caso — cada aluno é avaliado separadamente. No caso de Tálita, prepara material acadêmico — livros, artigos e outros textos que possam ser lidos no computador com leitor de tela, utilizados por cegos. Professores passam os textos para o Núcleo, que geralmente repassa aos alunos em até 20 dias.
A aluna invisível
Parte dos professores lecionava como se ela não estivesse na sala. Gesticulavam e apontavam para o quadro para ensinar aos demais alunos. Tálita era invisível. Muitas vezes, miravam o quadro e perguntavam: “O que isso significa?” A jovem se perguntava, em silêncio doloroso: “E eu, como fico nessa situação?” Sentia-se excluída, triste e várias vezes pensou em desistir do curso. A situação seguia na exposição de slides, cujos conteúdos eram importantíssimos para as provas. Porém, alguns mestres continuavam sem enxergá-la. “Há professores que estão abertos para mim, outros nunca estiveram. Optaram por permanecer no conforto do ensino padronizado”, lamenta, decepcionada com a indiferença.
Desde o início do curso de Letras, variou muito o modo de tratamento dos professores. Alguns repensaram sua didática e se adaptaram às suas demandas. O mesmo ocorreu em relação a colegas. Há professores e amigos de curso que passaram positivamente na vida de Tálita, e há os que cairão no esquecimento. “Tive professores ruins? Sim. Tive colegas ruins? Tive. Mas tive professores e colegas maravilhosos. Fiz quatro amizades pessoais entre meus colegas: Thiago Evangelista Silva, Monize Roberta Zanin, Bianca Gonçalves de Oliveira e Vinicius Vitor Araújo Barros. Os professores que se destacaram são Candice Marques de Lima, Israel Elias Trindade, Tânia Ferreira Rezende, Rogério Santana e Elza Kioko Nakayama Nenoki do Couto. Esta foi a que mais me impulsionou a correr atrás dos meus direitos”, ressalta, sorridente e demonstrando gratidão. Os professores e amigos citados por Tálita foram cruciais para os avanços que conquistou na UFG, inclusive para abrir caminho para outras pessoas cegas que chegarão à universidade a partir de janeiro de 2018.
Aprendendo com a aluna
A professora de Letras/Português Tânia Ferreira Rezende, de 52 anos, doutora em Linguística pela UFG, diz que aprendeu mais com Tálita do que o inverso. A mestre sublinha que Tálita é uma aluna arguta e inteligente: “Ela põe as questões, discute, quer respostas, movimenta e desestabiliza as teorias. Faz todos pensarem”. Tânia foi professora de sociolinguística de Tálita, mas foi no semestre passado, numa aula de letramento, que houve debate sobre intersexualidade nas opressões: mulheres negras, trans ou lésbicas no mercado de trabalho. A pergunta central do debate: que chances essas mulheres têm num mercado de trabalho competitivo em que disputam vagas com brancas, héteros, que vêm de uma formação padrão? Durante o questionamento, Tálita entrou na conversa: “E eu, que sou mulher, negra e cega? Que chance tenho no mercado?” E fez-se silêncio na sala, o que levou a professora a repensar e a redirecionar o tema em questão. “Pensei: o que vamos fazer, o que vamos discutir? Não são textos que vão ajudar a Tálita como pensadora, como intelectual. As teorias não conseguem resolver as questões que a jovem traz para a sala. O que apresenta são dela, do lugar dela, que é um lugar que a universidade não está acostumada a ter”, destaca Tânia Rezende, com olhos atentos e voltados para cima, como a pensar em mais formas de inclusão.
Tânia Rezende ficou tão intrigada com o questionamento impactante de Tálita que passou dias imaginando o que é ser professor e o que é ser aluno. Que papéis são esses? Era a aluna que provocava, que desestabilizava. Então, quem é o professor, quem é o aluno?
Com perseverança e firmeza, Tálita conseguiu a colocação de placa e piso tátil na escada que liga o prédio Bernardo Élis ao prédio Cora Coralina, da Faculdade de Letras. Na escada para o andar de cima do Cora Coralina, que abriga as salas de orientação dos professores, solicitou e foi atendida na afixação de faixa como sinal de alerta para pessoas com deficiência visual.
A Lei 13.146, de julho de 2015, criou o Estatuto da Pessoa com Deficiência. No artigo 1º. está determinado: “É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”. Como é praxe no Brasil, leis existem para não serem cumpridas ou para serem parcialmente praticadas.
Voz própria e texto de qualidade
A professora de Psicologia da Educação da Faculdade de Letras Candice Marques de Lima, de 44 anos, mestre em Psicologia pela PUC-GO (sobre inclusão na creche), lecionou para Tálita Azevedo em 2015 e, a pedido da aluna, é sua orientadora no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), cujo tema é inclusão, braille e ensino da Língua Portuguesa. O TCC pode ser artigo ou monografia. Tálita optou por artigo. “Ela tem um diferencial por ser cega, e precisa de atendimento adequado. Fora isso, a trato com igualdade”, afirma. Conforme a orientadora, Tálita está indo bem no TCC. Dos orientandos de Candice Marques, foi a que terminou primeiro. “Tem bom texto, voz própria, aparece no que escreve.”
Vive-se numa sociedade excludente. Para ser inclusiva, é preciso quebrar barreiras arquitetônicas e atitudinais. As ruas, os semáforos, as faixas de pedestres, as calçadas, os prédios não são feitos para pessoas com deficiência. Não há som nas ruas e calçadas para informar os cegos. E é muito difícil também para pessoas com deficiências físicas. “Além disso, há a forma equivocada de tratamento das pessoas com deficiência. Não há tratamento respeitoso, não há formas de inclusão para a participação ativa na vida social”, avalia Candice Marques. Pessoas com deficiência ainda são abordadas como coitadas ou incapazes. “E as outras pessoas parecem esperar deles só coisas boas, nada de defeitos. Suas falhas, coisas humanas de todos nós, são muito realçadas.” Já os professores, afirma a mestre, além de integrarem uma sociedade que não é inclusiva, não têm recursos e formação para trabalhar com pessoas com necessidades educacionais específicas.
Candice Marques destaca virtudes de Tálita, que supera desafios diários na sociedade e nas instituições: “Trata-se de uma vencedora, corajosa. Tem recursos subjetivos para lidar com situações adversas”. Recentemente, a professora visitou, com Tálita, a Biblioteca Marieta Teles, na Praça Cívica, que abriga biblioteca em braille. “Se as pessoas têm suas dificuldades, ela tem mais ainda e consegue lidar com isso, tocar adiante. Tálita é um grande exemplo: mora sozinha, sempre teve dificuldades financeiras, pega três ônibus para vir e três para voltar da faculdade… Tudo de forma destemida. É uma vitoriosa.”
Abriu novos caminhos
O coordenador do curso de Letras/Português, o professor Israel Elias Trindade, de 37 anos, mestre e doutor em Linguística pela UFG, lecionou para Tálita, que lhe ensinou muito. “Eu pensava que sabia dar aula, mas a Tálita me mostrou que estava errado. Esse aprendizado não ocorre apenas na UFG, mas em escolas também. A gente se depara com as diferenças e cresce. Nunca pensei que daria aulas para aluna cega, e tive que reaprender o que é ser professor”, afirma. Segundo Israel Trindade, a faculdade não o preparou para essa realidade, e Tálita lhe deu um choque, levando-o a avaliar que precisava aprender muito para ser um professor inclusivo.
Para Israel Trindade, os professores, por mais que se esforçassem, acabavam dando aula para quem enxerga. E, nesse contexto, Tálita é exemplo de superação e garra. O seu 1,50m de altura são desproporcionais à grandeza de sua alma. O professor Israel, que se tornou amigo pessoal de Tálita e é um dos que mais lutam pela inclusão na Faculdade de Letras. diz, orgulhoso, que a aluna tem notas acima da média e que é assídua nas discussões. “Tálita tem facilidade para aprender e resolver exercícios, ótima memória, além de conseguir lembrar-se de quase tudo que foi dito em sala de aula, capacidade de concentração aguçada, visão espacial aflorada.” Israel Trindade não poupa elogios: “Além disso, é simpática, agradável, conversa sobre qualquer tema e, acima de tudo, é feliz. Está sempre sorrindo, apesar dos sobressaltos”.
Israel Trindade explica que professores podem ter ignorado Tálita eventualmente, por despreparo, mas não por maldade. Ele mesmo teve de rever conceitos e se alinhar às necessidades da ex-aluna. Assim como outros colegas, começou a repassar, por exemplo, o material de estudo para o e-mail de Tálita para que fosse baixado em seu notebook adaptado, até que o Núcleo de Acessibilidade e o Lai fornecessem o que a estudante precisava: textos e xerox para leitura e trabalho. De acordo com Israel, alguns professores até hoje não sabem como proceder em relação a Tálita e o procuram para obter informações. “Há uma série de fatores que acabam atrapalhando o seu rendimento”, lamenta Israel, que logo se refaz para destacar o que a aluna tão esforçada significa para a UFG: “A presença da Tálita na universidade foi uma grande conquista para a educação inclusiva, sobretudo para cegos. Certamente outros alunos que vierem não terão tantos obstáculos. Ela abriu portas para outros cursarem ensino superior público e gratuito e terem menos dificuldades. A Tálita é pioneira e, por isso, abriu trincheiras, caminhos.”
O professor lembra-se do dia em que acordou desanimado para o trabalho, com vontade de ficar em casa. Mas logo pensou em Tálita, que faz uma jornada dificílima todos os dias rumo à faculdade e de volta para casa, muitas vezes em ônibus superlotados. O desânimo acabou imediatamente: “Uma pessoa que, com tantas dificuldades, vai sair de casa, pegar três ônibus para ir e voltar da UFG, e eu aqui com essa bobagem. Vou para a Faculdade de Letras para dar a melhor aula. Os alunos, sobretudo Tálita, merecem a minha atenção. Nesse dia, ela foi uma injeção de ânimo para mim. Às vezes vemos pessoas sem dificuldades reclamando de tudo, de coisas banais. Deus se manifesta através de pessoas tão maravilhosas como a Tálita. Acredito que ela á uma forma de Deus se manifestar na Terra. Às vezes penso: como foi bom ter passado por essa experiência com a Tálita. Tudo isso vai me ajudar a ser uma pessoa melhor”.
O câncer, a cegueira e a fé
Tálita Serafim Azevedo jamais teve facilidades. Aos 2 anos, seu olho direito começou a esbranquiçar ao reflexo do sol. Assustada, sua mãe, Rosalina Serafim Azevedo, levou-a a um pediatra, que indicou um oftalmologista. Depois de vários exames, a constatação: Tálita tinha um retinoblastoma (tumor maligno) e precisava retirar com urgência o globo ocular. Cirurgia feita, iniciaram-se as sessões de quimioterapia, em dez doses. A cada dose, Rosalina notava que o olho esquerdo apresentava o mesmo problema. Novos exames foram feitos. O novo diagnóstico: o olho esquerdo também estava com câncer e o globo foi retirado. Tálita, já com 3 anos, estava definitivamente cega e com previsão de sobrevida de apenas seis meses.
Evangélica da Assembleia de Deus, Rosalina, que acompanhou a filha nas sessões de quimioterapia, começou a orar com a família e irmãos da igreja. Tálita estava gravemente anêmica, e os médicos alertaram que o tratamento contra o câncer não admite o uso de vitaminas, que fortalecem a doença. A situação era crítica. “Quando a gente olha para os lados e não vê saída, o melhor é olhar para cima e contemplar o Criador, que tem a palavra final”, afirma Rosa Flor, como é carinhosamente chamada por Tálita, que tem na mãe sua fiel companheira, a melhor amiga.
Cessada a quimioterapia, foi feito exame para avaliar a anemia. Estava controlada. Segundo Tálita, os médicos não souberam explicar o motivo. “Deus me curou do câncer”, acredita. E por que não a curou da visão? “Talvez por que Ele queira me usar para motivar outras pessoas, para dar palestras sobre câncer e cegueira. Inclusive já fiz isso algumas vezes, e é muito bom saber que influenciei pessoas positivamente”, conforma-se. Tálita só sentiu a dor das agulhadas durante o tratamento. Ninguém da família da estudante teve câncer. “Às vezes fico com medo de o câncer voltar, mas ao mesmo tempo procuro pensar o seguinte: já faz muito tempo e nunca mais apareceu qualquer sinal da doença. Não admito ideias negativas. Na verdade, me sinto confortável. Isso é apenas passado. E aquilo que não me mata, só me fortalece”, sentencia, recorrendo à famosa frase do filósofo alemão Nietzsche.
O tempo passa e Tálita supera a previsão dos médicos. No início, dizem que a criança não passaria dos 4 anos. Era preciso fazer acompanhamento médico constante nos primeiros 5 anos. Depois, até os 15 anos, deveriam ser feitos exames anuais para detectar possível retorno do câncer. A partir de então, os exames são feitos de dois em dois anos. Tálita é saudável. Não só fisicamente, mas também emocionalmente. A jovem, que tem extrema capacidade de saltar barreiras emocionais e resiliência incrível, não perde na inteligência, com afirmações, questionamentos e respostas rápidas e perspicazes a interlocutores.
Aos 4 anos, já livre do retinoblastoma, Tálita vai definitivamente para casa. Chegou a ficar internada por semanas, acompanhada da mãe, para as sessões de quimioterapia. Em casa, começa a pedir insistentemente para a mãe ligar a luz, mesmo durante o dia. “Minha primeira infância foi muito triste. Passei quase dois anos em hospitais, fazendo exames, com soro na veia, fazendo pulsão (retirada de medula óssea para fazer exames). Aos domingos, tinha festa no Araújo Jorge. E Tálita mesclava a dor com as brincadeiras de voluntários. “As únicas coisas que me lembro de quando enxergava eram o Aquaplay [brinquedo de argolinhas coloridas que, impulsionadas com o dedo num botão, sobem e descem na água em um recipiente de plástico] e o sofrimento no hospital. Não me recordo sequer do rosto de minha querida mãe, das cores, de nada mais.”
Para Tálita, o mais importante após ficar cega foi o amparo dos pais e dos irmãos, que nunca permitiram que se sentisse uma criança diferente. Se os irmãos brincavam nas árvores, puxavam Tálita para cima. Na hora de subir no muro e se divertir, lá estava a menina com as três irmãs e os dois irmãos do primeiro casamento da mãe. A surra também era democrática. Depois das “artes” exageradas, todos apanhavam. Assim Tálita cresceu, sem regalias por ser cega e tratada com igualdade por todos da família. “Jamais pensei coisas como: ‘Sou cega, então não posso, não dou conta’. Minha mãe me ensinou a cuidar da casa, a preparar o café. Ela me perguntava: você quer arrumar sua cama também? Se quiser, então arruma. Se minha família tivesse me limitado, dizendo que eu não conseguiria fazer as coisas devido à deficiência, hoje eu seria outra pessoa.”
A jovem de origem humilde, que viu os pais trabalharem muito para conseguir comprar a casa onde mora, cujo lote é dividido com as três irmãs, casadas, sofreu injustiças no vestibular para o curso de Letras da UFG, em 2014. Havia questões baseadas em imagens, de cálculo de altitude e longitude, que exigem visão para serem resolvidas. Tálita havia estudado sobre o Muro de Berlim, mas não esperava que na prova viria a imagem do muro com a pergunta: “O que esta imagem significa para você?” Resultado: Tálita não soube responder. A inadequação para a realidade de Tálita era tamanha que chegou a dizer a familiares e amigos que não voltaria para o segundo dia de provas. Afinal, na segunda fase, de dois dias, poderia sofrer ao se deparar com os mesmos contratempos do início. Porém, na manhã do segundo dia de provas, persistiu e foi para o novo desafio. “Se eu não fosse naquele dia, teria que fazer o Enem e a primeira fase do vestibular de novo. Fiz as provas e decidi que não olharia o resultado e que, se passasse, de alguma forma ficaria sabendo. Estava em casa quando saiu o resultado. Ligaram-me parabenizando por ter sido aprovada. Fiquei surpresa e, desconfiada, disse para a moça que ligou: ‘Você é que está me contando que passei’… E fiquei a me perguntar: será que essa lista não é a dos que não passaram? Estava incrédula. Aí liguei para uma irmã e pedi para ela verificar se eu estava mesmo na lista de aprovados. Só no outro dia caiu a ficha e saí contando para todo mundo que havia passado na UFG”, conta, com rosto radiante.
A prova de redação só não foi um desastre completo devido ao esforço de Tálita, que precisou ditar o texto para um dos dois assistentes do vestibular escrever. A vestibulanda estava com o punção e o reglete (instrumentos manuais para escrever em braile manualmente), mas não com a máquina de escrever em braile, que é pesada, barulhenta e de difícil transporte. Tálita concluiu o ensino médio usando essa máquina. Não era possível escrever a redação inteira porque era cansativo e demorado. À medida que Tálita ia ditando suas ideias e frases anteriormente anotadas com o punção e o reglete, um auxiliar escrevia. “Foi uma experiência difícil. Às vezes perdia o raciocínio quando estava ditando porque meu auxiliar não entendia corretamente. Não raro tinha de repetir trechos da redação. E aí a pessoa lia tudo de novo para eu fazer reparos. Não tive liberdade para escrever e ler o que escrevi.” Tálita sabia que a única coisa que não podia fazer era zerar a redação. Seguiu adiante e uma assistente entregou o texto final.
Tálita não entrou na UFG por cotas para negros, embora soubesse da existência das cotas. “Isso nunca me moveu. Não sou contra as cotas. Na verdade, não botava fé em mim. Fiz as provas do vestibular e pensei: ‘Seja o que Deus quiser’.”
O grande sonho de Tálita é escrever um livro
Tálita conclui o curso em dezembro deste ano e não quer ser professora de Letras/Português. Cogita a possibilidade de lecionar inglês ou alguma disciplina voltada para a inclusão. Estuda inglês em escola particular e é judoca, inclusive com recente participação em campeonato disputado em Porto Alegre. “Entrei para a Faculdade de Letras com o desejo de ser escritora. Quando penso em dar aula, fico com medo da reação das pessoas, medo de não conseguir passar adequadamente meu conhecimento. Mas sei que esse receio está em todo mundo, não só em mim”, revela. Porém, o maior desejo é mesmo ser escritora. A jovem escreveu poemas na adolescência, inclusive “Feliz sou eu”, cujo tema é ver os aspectos positivos das pessoas, coisas e fatos. Conta que escreverá uma autobiografia, um livro sobre pessoa cega ou um romance. Outros sonhos de Tálita são casar e ter filhos — Tálita nunca namorou ou trabalhou — e dar palestras sobre inclusão educacional e social para pessoas com deficiência. Ela diz que fará mestrado: “Vejo no mestrado, que vou começar em 2018, uma porta para começar a dar palestras”.
O poema “Feliz sou eu”, de Tálita Serafim Azevedo
Quem me dera poder olhar para o céu e ver como ele é lindo!
Mas feliz sou eu por imaginar que existe um imenso quadro nas alturas
repleto de astros brilhantes que tornam as noites esplêndidas.
Quem me dera poder assistir a um show de dança, cenas da TV,
apresentações de coreografias e fazer minhas críticas ou elogios?
Mas feliz sou eu por haver alguém ao meu lado explicando cada detalhe ocorrido.
Quem me dera poder olhar para um deus de Hollywood e dizer o quanto ele é lindo!
Mas feliz sou eu por imaginar que um corpão forte e musculoso com olhos
claros resultam em um perfeito galã.
Quem me dera poder me olhar no espelho e ver cada traço perfeito ou defeituoso!
Mas feliz sou eu por ouvir de pessoas meigas a frase: como você é linda!
Quem me dera poder me lembrar das cores e dizer que tal cor é a minha predileta!
Mas feliz sou eu por ouvir a opção rosa e pensar naquela delicada flor.
Quem me dera poder fazer com que as pessoas compreendessem que a
realidade em que vivo não é um castigo de Deus, mas sim um exemplo de vida.
E que tenho forças para me dedicar, dando o melhor de mim, não desistindo em meio
aos obstáculos, tornando o difícil possível e às vezes fazendo melhor que os outros.
E quão feliz sou eu por enxergar o mundo com o coração, usando apenas a imaginação, tornando as coisas mais belas do que as que são vistas com os próprios olhos!
Assim como a mãe, Tálita é evangélica da Assembleia de Deus. A que frequenta fica na avenida Noroeste, no Setor Itamaracá, próxima à Faculdades Alves Faria (Alfa), longe de sua casa. Um irmão de fé é encarregado de transportar integrantes da igreja numa Kombi. Tálita é cantora na comunidade. Desde criança, tem na música uma companheira. Na família, só ela aprecia cantar. Música gospel — sobretudo internacional —, MPB e rock nacional estão entre seus estilos prediletos. “Canto o dia inteiro. Se estou triste, canto para ficar melhor; se estou feliz, canto para aumentar a felicidade. A música me aproxima de Deus. Música para mim é tudo, é terapia, é companhia. Tenho um bom aparelho de som em casa, mas eu canto mais do que ouço. Além das músicas evangélicas, gosto do som do Legião Urbana, Caetano Veloso, Chico Buarque. “Ter fé em Deus significa que, mesmo as coisas que parecem impossíveis, podem acontecer. Eu, por exemplo, fui desenganada aos 3 anos e hoje estou aqui. Isso é resultado da fé, de acreditar naquilo que aos olhos humanos parece inalcançável. O que mais me impulsiona, o que mais me faz caminhar, é a fé em Deus, em Jesus Cristo. Sei que toda vez que precisar, posso contar com Deus. Posso orar e pedir alguma coisa e Deus pode fazer. Essa é a minha confiança. O que eu e as pessoas não podemos fazer, sei que posso entregar para Deus, porque Ele pode fazer.”
Os livros bíblicos preferidos por Tálita são “Juízes” e o “Evangelho de João”. Na adolescência, leu a saga “Harry Potter”, da escritora britânica J. K. Rowling. Leu “O Menino do Pijama Listrado”, do irlandês John Boyne. Entre os autores preferidos, estão Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa. “‘Juízes’ tem as histórias mais interessantes, daquelas que você diz: ‘Não, isso não está na Bíblia’. São histórias com finais inesperados, diferentes, que nos surpreendem. É estranho e legal ao mesmo tempo. Esse livro não fica naquela rotina dos patriarcas nem nos textos proféticos. ‘Juízes’ tem histórias bizarras, das quais gosto. Aprecio ler coisas que fogem um pouco da realidade. Já o evangelista João fala muito de amor, especifica mais a vida de Jesus, a morte de Jesus”.
Tálita critica líderes de algumas igrejas neopentecostais que fazem campanha para arrecadar fortunas e até levam fieis a doarem carro e casa. Ela afirma que os líderes dessas igrejas são vergonhosos. “Alguns pastores e bispos estão buscando apenas mídia, nome e poder. Não têm compromisso com Deus. Jesus Cristo ensinou que devemos dar dízimos e ofertas para a manutenção da casa de Deus. Jamais mandou alguém pegar seu carro e doar para a igreja. Jesus fala pra gente pegar parte do que tem e doar aos pobres. Falou dirigindo-se a um jovem rico, referindo-se ao apego às coisas materiais. Ele fala para ajudar os necessitados, não para enriquecer igrejas e seus líderes. Vejo isso com tristeza, porém se Cristo enfrentou a hipocrisia da humanidade por amor a nós, devemos enfrentar a hipocrisia de certas igrejas por amor a Cristo.”
Tálita é dessas pessoas que procuram ver o lado positivo em quase tudo. “Não é porque perdi a visão que devo ser infeliz. Entre os deficientes visuais, há muitos tristes, que cruzam os braços, se passam por vítimas. Deus trabalhou meu coração para eu mostrar para as pessoas que é possível ser diferente, que posso ser feliz mesmo deficiente. Vejo na minha dificuldade uma chance de contribuir com as pessoas e com o meu próprio crescimento espiritual”, afirma, com a fleuma costumeira e confiança inquebrantável.
Tálita jamais trabalhou nem se preocupou muito em enviar currículo profissional a empresas e escolas. Concentrou-se nos estudos e confessa que não conciliaria escola ou faculdade com trabalho. No entanto, sabe que são grandes os obstáculos para pessoas com deficiência, sobretudo para cegos. Dos poucos currículos que enviou, para escolas, não obteve qualquer resposta. Por lei, empresas têm reserva para pessoas com deficiência. Tálita acredita que terá resposta a partir do próximo ano, quando terá o diploma em mãos.
Apesar de extremamente meiga, sabe ser firme quando precisa. Se for ferida ou questionada — em casa, no ônibus e na faculdade —, responde com a firmeza de Bruce Lee, o famoso mestre de Kung Fu. Certa vez, no ônibus, uma senhora disse que Tálita deveria ficar em casa porque tem “problema”. A resposta: “Sim, tenho problemas, como a senhora também tem. Tenho que pagar impostos, carnês, cuidar da minha vida”. E afastou-se. “O problema não está em mim, está na sociedade. A partir do momento que a sociedade não me vê como uma pessoa diferente, as coisas ficam legais. Por exemplo: se existe um ambiente acessível, neste ambiente não serei uma pessoa com deficiência. A deficiência está nas barreiras que as pessoas colocam. Se tenho um texto adequado para minha leitura, não sou deficiente. Infelizmente quando a pessoa está fora do padrão, sofre com a ignorância e o preconceito.” Tálita confessa que às vezes sente solidão, mas não por causa de sua deficiência: “As pessoas que não sabem lidar com o outro, com o diferente, é que me causam solidão”.
Polêmica, Tálita não foge a nenhum questionamento. Relativiza o politicamente correto. Diz que é questão individual e que as formas de tratamento — pessoa com deficiência ou cega — dependem do tom de voz e da intenção do interlocutor. E não aprova grupos: “Antes de tudo, somos seres humanos. Separar as pessoas em grupos pode segregá-las ao invés de inclui-las”. Para ela, há quem se ofenda se for chamado de cego ou pessoa com deficiência. “Tudo depende do contexto, de quem está falando, da entonação. Tenho um colega que, quando me encontra, diz: ‘E aí, sua cega?’ Eu sei que está brincando. Ele usa um tom legal. Mas se alguém disser ‘Coitada, é cega’, aí é diferente.”
Entre os amigos, tanto na escola como fora, diz Tálita, nota-se que há os preconceituosos, mas também os sinceros e que colaboram com ela. Amigos da faculdade, por exemplo, gravavam no WhatsApp trechos de livros para Tálita estudar quando o Núcleo de Acessibilidade não fornecia o material a tempo. “Sempre me dei bem, sempre tive bons relacionamentos.”
A melhor fase, os obstáculos e os amigos da faculdade
A melhor fase da vida escolar de Tálita foi o ensino fundamental, quando começou a perceber seus valores pessoais e sociais. Já era adolescente e notou que, apesar de ser deficiente visual, podia conseguir, se tentasse e se esforçasse, superar obstáculos e concretizar seus sonhos. Sempre foi a única aluna cega nas escolas por que passou e a segunda na Faculdade de Letras da UFG. E em todas as unidades de ensino, não havia estrutura para atender às suas necessidades. Mas no ensino fundamental e médio, relata, os professores, desde que a conheceram, começaram a ler para ela e a gravar textos para estudar em casa.
Vários projetos na UFG beneficiaram Tálita, e alguns contaram com sua participação direta. Foi, por exemplo, a primeira aluna a testar e ajudar na configuração de equipamentos adquiridos pelo Laboratório de Acessibilidade Informal (Lai) para utilização por cegos. Tálita reconhece o Núcleo de Acessibilidade como o responsável por sua inclusão na UFG. “Mas não podemos negar esta verdade: a universidade não está preparada para a pessoa com deficiência. Ainda falta muito. Os professores, em geral, não estão preparados”, desabafa, cabisbaixa. Tálita teme o futuro: o que acontecerá após sua saída da Faculdade de Letras? “Será que as coisas vão ficar como eu deixarei? Será que vão caminhar? Será que outros alunos com deficiência que vierem para cá vão ficar parados? Fiz meu curso, houve mudanças, e espero que os avanços continuem.”
O ensino médio foi feito no Colégio Militar Ayrton Senna, no Jardim Curitiba I, o mais próximo e com o melhor ensino da região, segundo Tálita, que mantém bom relacionamento com militares. “Muita gente tem preconceito contra militares. Não é o meu caso. Eles sempre me trataram bem, com atenção e carinho. E foi ótimo estudar lá, onde aprendi a ser mais disciplinada.” Tálita lembra-se de momento divertido: quando pediam para todos ficarem em forma, retrucava: “Já estou em forma. Vejam meu corpo”.
Durante os quatro anos do curso, Tálita fez amizades sinceras com professores e colegas. O professor Israel Elias Trindade, por exemplo, é chamado por ela de “amigão”. Quando precisa resolver alguma coisa, Tálita conversa com seu ex-professor de fonética e morfologia, que é também coordenador da Faculdade de Letras. Segundo Tálita, no início Israel Trindade também apontava para o quadro, esquecendo-se dela, mas deu-lhe a liberdade de dizer: “Professor, você está se esquecendo de mim”. Comovido, Israel aprendeu nova didática para atender a aluna. “Tálita é muito especial. Pessoa de alma incrível, muito querida”, diz o mestre. Tálita escolheu Israel Elias para ser o professor crítico de seu TCC. Afinal, ele influenciou muito na escolha do tema sobre inclusão. A professora Candice Marques, com quem a jovem tem grande afinidade, sugeriu que fosse feito um TCC associando o braille ao português. “Na hora eu pensei: vixe! Será que há ligação?”, conta Tálita.
Tânia Rezende é outra professora muito querida por Tálita. As duas concordam que superaram a relação aluna/professora e tornaram-se amigas. Conversam frequentemente sobre temas diversos. “Sempre que tenho oportunidade, eu digo que tudo que essa menina passou era desnecessário. O que a Tálita enfrentou na faculdade é desumano”, lamenta, com as mãos nos ombros de Tálita. “É a menina-luz, a menina de ouro da UFG.” Tânia acrescenta: “Quando eu crescer, quero ser igual a ela”.
Rogério Santana, professor de Literatura Portuguesa e outras disciplinas voltadas para a literatura, também é lembrado por Tálita. A estudante pegou aulas com Rogério de Língua Portuguesa I, II e III e recorda que ele comprou uma máquina de escanear livros para antecipar-se ao Núcleo de Acessibilidade. “O professor Rogério escaneava e disponibilizava tudo para o meu acesso. Essa atitude dele foi de importância ímpar”, reconhece, para depois afirmar que alguns professores a deixaram encantadas, tamanha dedicação por ela: “Tudo que puderam fazer por mim, fizeram. Muitas vezes esperavam para eu entregar algum trabalho no dia posterior ao combinado porque o material demorava a chegar do Núcleo. Teve professor que me avalizou oralmente, para facilitar.”
A diretora do Núcleo de Acessibilidade, Vanessa Helena Santana Dalla Déa, professora da Faculdade de Educação Física, também é destacada com carinho por Tálita. Foi observando o trabalho de Vanessa que Tálita decidiu fazer mestrado em 2018. A estudante se impressiona com a forma de Vanessa perceber e se relacionar com as dificuldades alheias. “Se hoje o Núcleo de Acessibilidade é o que é, se o Laboratório de Acessibilidade Informacional (Lai) é o que é, com certeza é graças à professora Vanessa, que é muito ‘cabeça’. Ela e sua equipe sempre me enviam livros digitalizados, mas recentemente ela não conseguiu digitalizar um livro e o leu todo para mim e gravou no WhatsApp. O que dizer de uma pessoa dessa? A professora Vanessa é meu espelho. Quando eu crescer, quero ser igual a ela”, revela, rindo e balançando a cabeça positivamente.
Num dia qualquer em 2015, Tálita foi à biblioteca da Faculdade de Letras e perguntou se tinha algum livro em braille. Diante da resposta negativa, contatou Vanessa e expôs sua dificuldade. Foi então que começaram a escanear textos, a adaptá-los. “Tálita é muito esforçada, corre atrás de seus sonhos. A sociedade às vezes subestima a capacidade de pessoas com deficiência. Não é a cegueira que determina o potencial, mas a própria pessoa. Tálita tem grandes objetivos e creio que irá alcançar todos, pois é determinada”, aposta Vanessa Helena.
O Núcleo de Acessibilidade atende pessoas com baixa visão, cegas, surdas, com deficiência motora e com síndrome de Down. Ao todo, são 219 alunos com deficiência na UFG, e a tendência é que este número aumente significativamente a partir de 2018, já que foi aprovada, em junho passado, a lei 13.409, que prevê cotas para pessoas com deficiência nas instituições federais de ensino.
Thiago Evangelista Silva, de 22 anos, é um dos quatro colegas de curso que viraram amigos pessoais de Tálita. São amizades que transcendem as salas de aula. Os dois entraram juntos na Faculdade de Letras. Sensível, Thiago transformou-se também em orientador de Tálita das salas para o ponto de ônibus e para a locomoção na UFG. “Tálita tem uma força incrível, que a gente não espera devido às suas dificuldades. Mas houve momentos tristes que nos envolveram. Choramos juntos várias vezes porque ela queria desistir do curso. Sentia-se rejeitada dentro da própria academia. Alguns professores não lhe davam atenção, era como se não estivesse com os outros alunos. Ela abriu caminhos para outras pessoas que chegarão à UFG. Sou feliz por ser seu amigo.”
Thiago e Tálita têm em comum o bom humor e a confiança recíproca. Tálita confia no amigo para contar-lhe suas angústias e desafios. Para Thiago, a amiga consegue ultrapassar obstáculos porque tem uma fé enorme em si mesma, não se limita, não se deixa levar por discursos negativos. “Tálita é uma fonte de inspiração”, afirma. “Consegue se reerguer e se afirmar como pessoa capaz e competente. A vida toda sofreu com exclusão, ignorância, e isso acabou fazendo-a mais forte. Hoje ela é muito bem resolvida. Tálita só precisa de apoio, só isso. É inteligente e vai longe.” Thiago explica que, antes de Tálita, a Faculdade de Letras não tinha a mínima estrutura para atender pessoas com deficiência. Voltando ao perfil da amiga, arremata: “Tálita é brincalhona, amiga, carinhosa, receptiva. É uma pessoa com quem todos querem ficar. Ela me ensinou a ver a vida de outra forma, me fez repensar as coisas e as pessoas”.
Monize Roberta Zanin, 20 anos, é mais uma das amizades firmadas por Tálita na faculdade. Assim como Thiago Evangelista, começou o curso de Letras na mesma turma de Tálita. Ela lamenta que alguns professores ainda não tenham atentado para as necessidades da amiga. De acordo com Monize, a responsabilidade pela confecção de trabalhos é, por vezes, transferida para os colegas de sala. O Núcleo de Acessibilidade, em alguns casos, demora a disponibilizar textos da forma adequada para ela, e isso atrapalha, avalia Monize, que se tornou mais próxima de Tálita em 2016 porque tomavam ônibus juntas e iam conversando no trajeto. “Os ônibus que vão para o campus são lotados, e nem sempre as pessoas cedem o acento.” Outra dificuldade, segundo Monize, é o restaurante da UFG, que, quando está cheio, não dá prioridade para Tálita, que acaba ignorada.
O contato maior entre as amigas é mesmo na faculdade, mas já saíram duas vezes: foram ao Parque Mutirama e ao cinema. “É muito bom estar com a Tálita. Ela é alegre, fica à vontade com a gente, ri muito e é espontânea”, diz. “Impressiona-me a memória de minha amiga, que declama poemas, escreve, é poetisa e tem muita criatividade.”
“Gostaria de ver a natureza e suas cores”
Independente, Tálita mora sozinha na casa da mãe, no Jardim Curitiba IV, num lote que abriga as famílias de duas de suas três irmãs. A mãe, Rosalina, natural de Vanderlei, na Bahia, está com o atual marido e com os pais, que estão doentes, em Barra de São Francisco, no mesmo Estado. A ex-costureira “Rosa Flor” fica entre a tristeza da distância física da filha e a alegria de poder ajudar os pais em momento tão difícil. O pai de Tálita, o ex-pizzaiolo Francisco Oliveira Azevedo, morreu aos 42 anos, em 2002, vítima de AVC, quando a filha tinha apenas 9 anos. Em 2013, Rosalina casou-se novamente e teve mais um filho. “Gostaria de estar com minha filha, mas estou numa situação complicada. A gente se fala quase todos os dias por telefone, e estou muito feliz em saber que nossos esforços valeram a pena e que ela se forma em dezembro. Meus sonhos são os sonhos de Tálita.”
Quando Tálita estava no início do ensino fundamental, Rosalina Azevedo ficava no pátio do colégio um período esperando a filha terminar as aulas. “Há um absurdo ocorrendo com Tálita: ela tem direito à aposentadoria por causa da deficiência, mas não consegue. A Previdência enrola e não concede um benefício legítimo. Isso me chateia muito, pois somos pobres, mas pagamos impostos.”
Rosalina confirma que Tálita é decidida. Quando quer alguma coisa, dedica-se àquilo: “Desde criança, quando queria aprender algo, era assim. Por exemplo: quis aprender a fazer café e me pediu para ensinar. Fiz e ensinei uma única vez, e ela aprendeu na hora”.
A mãe de Tálita conta que está em condição financeira frágil e que esta é a mesma situação dos filhos. Os irmãos de Tálita, exceto o caçula, trabalham, mas ganham pouco. Apesar disso, ajudam Tálita. “Quem auxilia minha filha financeiramente são as pessoas que a amam de verdade. E ela precisa de dinheiro para fazer o mestrado e ainda não tem.”
A busca por liberdade impulsionou Tálita a morar sozinha. Organizada, gosta de cuidar da casa, fazer comida, arrumar a própria roupa e calçados, de ter a responsabilidade de saber que, se não se fizer o que precisa, não terá quem faça por ela: “Faço tudo sozinha em casa, menos passar roupa. Morar sozinha tem o lado bom e o lado ruim. Às vezes me sinto só, principalmente à noite, na hora de dormir, aquele silêncio… Sinto falta de um abraço, falta de ter comida pronta quando chego tarde. Mas é bom por saber que, quando sair de casa e retornar, tudo estará do jeito que deixei”.
Irmã mais velha de Tálita, Andréia Serafim Azevedo, de 35 anos, lembra que a infância entre os irmãos foi normal, como em outra família qualquer. Andavam de bicicleta, brincavam de esconde-esconde, pique-pega, pula-corda, de boneca e carrinho, além das travessuras em árvores e muros. Porém, foi muito difícil ver a irmã, saudável, de repente ter de retirar os globos oculares por causa do câncer e em seguida perder a visão. “Amo a Tálita. Nosso relacionamento é tranquilo. Nunca brigamos. Ao contrário, nos ajudamos mutuamente. Tenho o maior orgulho de minha irmã, que é um grande exemplo de superação e que agora vai se formar em Letras.”
Andréia pondera que se impressiona com Tálita, que não se deixa vencer e é extremamente perseverante, superando, dia a dia, os próprios limites. Andréia diz que Tálita é o orgulho da família. “Não há limites para minha irmã. É uma guerreira, batalhadora. Apesar de ser independente, às vezes levo Tálita ao ponto de ônibus”, assinala. Quem acha que tomar seis ônibus diariamente é o fim do mundo, não sabe que Tálita toma nove ônibus quando tem aula de judô e na faculdade no mesmo dia. Além disso, viaja com frequência para cidades goianas e de outros Estados, de ônibus ou avião. A estudante é mesmo aventureira. Prefere atividades que dão adrenalina, como altura e velocidade. “Não deixei de ser moleca”, brinca Tálita.
Tálita não tem qualquer interesse por política. Perguntada três vezes sobre o tema, desconversa: “Não acompanho noticiário, não sei o que essa gente [políticos] está fazendo, não me importo com esquerda ou direita. Simplesmente não gosto de política. Ponto”.
Apesar do bom humor e do apreço por piadas, Tálita atravessou momentos sérios que a fizeram pensar que os obstáculos eram maiores que ela. Mas, em seguida, voltava à postura mental de praxe: o otimismo e a segurança na vitória: “Isso é fase. Há fases que você olha para as dificuldades e diz: não tem como, está muito difícil. E há outras fases nas quais você está confiante e as coisas caminham. O mais importante é nunca desanimar”. Às vezes, Tálita foi surpreendida por convites para dar palestras, em momentos de descrença. Quando percebia que ajudava as pessoas, o alto astral voltava. “Muitas pessoas assistiram aos meus vídeos no YouTube e disseram que foram úteis. Isso me empolga, me deixa mais forte e me faz seguir adiante.”
Tálita adora cozinhar. Diz que familiares e amigos elogiam sua lasanha, tortas e frango assado. As pessoas costumam perguntar a Tálita se não se queima ao fazer comida. E ela sempre responde que queimar é um acidente que pode acontecer com qualquer um. Mas toma alguns cuidados, como não deixar panos perto do fogão, usar o relógio para se orientar, evitar frituras e sentir a temperatura. Procura também evitar panelas de fundo estreito, para não virarem, além de usar roupas firmes para não se arriscar com o fogo.
Quando está em casa, Tálita faz suas obrigações, estuda, canta, dorme e busca vídeos no YouTube. E tem ainda hábitos noturnos: gosta de estudar e fazer trabalhos à noite, ‘ouvir’ filmes, fazer dublagem no YouTube. “Vou dormir mesmo quando já está quase amanhecendo. Inclusive prefiro escrever à noite, quando está tudo em silêncio, mais calmo, tranquilo e fresco.” É sua rotina.
Tálita aprecia sair com amigos da igreja e parentes nos fins de semana. Para ela, a família é instituição importante. “Tudo que sou devo à minha família. Devo muito à minha mãe e irmãs, que me ajudaram muito nas tarefas escolares. A família, mesmo com problemas, é o nosso porto seguro. Nunca tive conflito com meus pais e irmãos. É claro que, quando éramos crianças, fomos até no tapa”, diverte-se. “Quando a família vai bem, a sociedade vai bem. Se há boa estrutura familiar, se há aprendizado de coisas boas na família, a pessoa será boa na sociedade.”
O ponto de ônibus fica a 50 metros da casa de Tálita. Quando chove, ela não sai para evitar a enxurrada, já que faz o trajeto de casa para o ponto tocando com a bengala nos meios-fios, e a água torna-se perigosa. A avenida por onde passa o ônibus não é movimentada, e Tálita a atravessa na faixa sozinha. “É preciso prestar muita atenção, ver se escuta algum barulho de carro próximo para a travessia ser segura. Em lugares movimentados, espero alguém oferecer ajuda.”
Andar sozinha, com bengala e, claro, com os olhos fechados, desperta a curiosidade de crianças, que perguntam a seu respeito aos pais ou a outros adultos. E qual é a reação dos adultos? Desviar a atenção das crianças. Dizem: “Fica quieto! Pare! Não olhe!” Triste, Tálita explica que, infelizmente, a reação dos adultos demonstra ignorância e preconceito. Em muitos casos, depois de perguntar nome e idade, dirige-se à criança: “Oi, tudo bem? Eu tive um dodói nos olhos e por isso perdi a visão. Mas tenho outras formas de ver”. E toca no cabelo das crianças como se as tivesse enxergando. Depois, conversa com os responsáveis sobre a importância da conscientização. “Tento esclarecer que a cegueira não é estranha. Mas infelizmente os adultos tentam cortar. E o que ocorre? Aquela criança foi podada ali. Peço aos adultos que expliquem tudo às crianças para que não cresçam indiferentes.”
A menina de ouro da UFG, como diz a professora Tânia Rezende, limpa a casa com os pés descalços, para detectar sujeiras. E sempre que termina, chama uma irmã ou sobrinho para atestar se ficou bom. Calçados, roupas e comida ficam no mesmo lugar para facilitar a localização.
A luz não a incomoda porque os globos oculares foram retirados. Tálita não percebe nem vultos. Contudo, o barulho, o som alto, atrapalha devido à audição acentuada. “Não consigo ficar num ambiente barulhento. Tenho forte percepção pela pele. Sei quando há algo próximo. Quando estou andando, sei quando passo perto de uma árvore ou carro, mas sem identificar. Já as pessoas, identifico sua presença”.
Se enxergasse, a primeira coisa que Tálita gostaria de ver são as árvores, os pássaros, os animais, o céu, a água, as flores… “Gostaria de ver a natureza e suas cores. Seria espetacular!”
Edmar Oliveira é jornalista