Romance de Carol Shields sugere o “fracasso” da vida burguesa ante a força da incerteza
06 fevereiro 2019 às 13h09
COMPARTILHAR
“Bondade” certamente tende a ser lido como um romance feminista, mas Shields, apesar da defesa que faz das mulheres, não as transforma em vítimas e é por demais irônica para assumir bandeiras
Os brasileiros leem mais a literatura dos Estados Unidos — Melville, Henry James, Faulkner, Fitzgerald, Hemingway, Saul Bellow (nascido no Canadá), John Updike, Philip Roth, Joyce Caro Oayes e Richard Ford — do que a canadense. Mas devemos ao Canadá alguns escritores do primeiro time, como Mordecai Richler (“A Versão de Barney”), Elizabeth Smart (“Junto à Central Station Sentei-me e Chorei”), Alice Munro (“Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento”), Margaret Atwood (prosadora e crítica brilhante), Nancy Huston (“Marcas de Nascença”, romance muito bom sobre crianças que foram raptadas pelos nazistas e adotadas por famílias alemãs. O livro de Huston é baseado num fato histórico, mas é literatura de primeira. Se o leitor quiser mais informação documentada, o livro adequado, em português, é “O Trauma Alemão”, da brilhante jornalista e historiadora Gitta Sereny), Carol Shields (nascida nos Estados Unidos, naturalizada canadense) e o crítico literário Northrop Frye (“Anatomia da Crítica”).
Carol Shields, ganhadora do Pulitzer e morta (câncer) em 2003, aos 68 anos, é autora de histórias sofisticadas, mas de aparência simples, como “Os Diários de Pedra” (ganhou o Pulitzer), “A Festa de Larry” (a celebração do homem comum), “Bondade” (o discreto charme da burguesia? Um romance que ecoa “Pastoral Americana”, de Philip Roth?) e “Swann”. Todos publicados (bem traduzidos) no Brasil.
“Bondade” (Bertrand Brasil, 271 páginas, tradução de Beatriz Horta) é um romance construído de modo simples e, ao mesmo tempo, complexo. Parece estranho dizer assim, e é. O livro conta algumas histórias — uma delas a da escritora Reta Winters, bem casada com um médico, três filhas, uma sensata vida burguesa. Enquanto conta sua história pessoal, Reta fala da dificuldade de escrever seus romances e de seu trabalho de tradutora.
Até que um dia a vida de Reta e do marido, Tom, vira de cabeça pra baixo. Sua filha mais velha, Norah, leitora interessada de Flaubert, desiste da vida cômoda de burguesa (“estou tentando descobrir onde eu me encaixo”), abandona a universidade e posta-se numa rua de Toronto, com uma placa no pescoço escrita “bondade” (“A bondade é respeito que foi abrandado e atingiu um nível mais alto”, filosofa Reta), e passa a pedir esmolas. À noite, recolhe-se a um albergue de mendigos. Os pais tentam conversar, mas Norah não fala. Reta, Tom e suas irmãs são solenemente ignorados. Até que… Bem, não posso tirar o prazer do possível leitor da prosa enviesada de Shields. “O princípio da incerteza: será que alguém alguma vez acreditou em outra coisa?”, pergunta-se Reta. Tem a ver com a estranhíssima história de Norah.
Enquanto Norah permanece na rua, sob um frio tremendo, Reta escreve seus livros. O primeiro romance publicado, dotado de uma prosa leve, alcança certo sucesso. Reta cita autores (Philip Roth, Margaret Atwood, Virginia Woolf) e revela o que pensa a respeito de como deve ser literatura. Ao buscar livros numa biblioteca, diz: “O tipo de narrativa certa para mim, nada muito sombrio nem ‘new age’; ficção literária, mas não tão pós-moderna, nem romances ‘poéticos’, por favor, nada de lixo ofensivo. (…) Nada que esteja na moda. Nenhuma saga familiar, nenhuma ligação do homem com a natureza. Nada de cavalos”.
Ao escrever seu romance, cujo personagem (o personagem cria personagens — ficção dentro da ficção), Reta anota: “Tive o cuidado de dar amigos para Alicia. É estranho como os amigos são postos de lado nos romances. Culpe Hemingway, Conrad e até Edith Wharton, mas a tradição moderna colocou a pessoa, o conflituado eu, contra o mundo. (…) A ausência de amigos é quase uma convenção”. “A ficção leve”, segundo Reta, “é mais verossímil”, por ser “mais próxima da vida real”. Ao dizer isso, a escritora faz uma digressão sobre literatura. Seu editor tenta ensiná-la a escrever um romance de que o leitor vai “gostar”. Ela rejeita a proposta e escreve a obra a seu modo. Termina a história informando que vai escrever outro romance: “As páginas desse terceiro romance terão também um pouco de resignação, mas terão também força. Isso mesmo: calma e poder, tristeza e resignação, contradições e irracionalidade. Pode-se dizer que esses são quase os componentes de um livro sério”. “Bondade” certamente tende a ser lido como um romance feminista, mas Shields, apesar da defesa que faz das mulheres, não as transforma em vítimas e é por demais irônica para assumir bandeiras. Sua bem contada história é triste, mas, ainda assim, diverte o leitor.
Trecho do romance “Bondade”, de Carol Shields
“Já passamos da metade do ano 2000. Uma noite, no começo de agosto, Colin Glass, velho amigo de Tom, veio de carro de Toronto para jantar conosco. Quando tomávamos café, ele tentou me explicar a teoria da relatividade. Fui eu que pedi a ele que falasse nisso. Sempre quis entender o que é a relatividade, um grande tema, mas as pessoas costumam explicar muito rápido ou então omitem uma parte, achando que os outros já sabem. Houve tempo em que só uma pessoa no mundo entendia a relatividade (Einstein). Depois, duas, depois três ou quatro, e hoje a maioria dos alunos do secundário com aulas de física tem pelo menos uma noção – ou foi o que me disseram. É difícil? Segundo Colin, a teoria passou de louca especulação a fato confirmado. Por isso, é ainda mais importante entendê-la. Tentei, mas me faltou garra. Quer dizer que a velocidade da luz é constante. Só isso? Em geral, gosto dessas longas tardes de agosto, a mancha de luz âmbar batendo nas paredes brancas da sala de jantar pouco antes de serem tomadas pelas sombras do anoitecer. As folhas compridas formam sombras redondas, fantasmagóricas. Passei o dia todo ouvindo os pardais de pescoço branco no bosque atrás de nossa casa; o canto deles parece o hino nacional canadense, pelo menos os acordes iniciais. O verão estava acabando, mas aos poucos. Se não fossem as vespas, jantaríamos ao ar livre. Boa comida, a companhia de um bom amigo, o que mais se pode querer? Mas fiquei pensando em Norah sentada na calçada, segurando a tabuleta de papelão com a palavra BONDADE, e perdi o fio do que Colin dizia.
“E = mc2. A energia é igual à velocidade da luz ao quadrado. A simplicidade da equação fez com que eu já desconfiasse. Como pode a massa (essa sólida mesa de jantar de carvalho, por exemplo) ter ligação com a velocidade da luz? São duas coisas diferentes. Colin é físico e foi paciente com minhas colocações. Pegou o guardanapo de linho no colo e esticou-o bem sobre a xícara de café. Depois, pegou uma cereja na fruteira e colocou em cima do guardanapo, formando uma pequena reentrância. Virou um pouco a xícara, de forma que a cereja girasse no guardanapo. Falou em massa e energia, mas eu já tinha perdido a visão crítica da explicação. Fiquei meio preocupada que o café manchasse o guardanapo e pensei que, nos últimos anos, eu poucas vezes tinha me preocupado com guardanapos de pano. Ninguém mais usa (exceto, talvez, Danielle Westerman) guardanapos de verdade. Chegou-se à conclusão de que as mulheres modernas que trabalham têm mais o que fazer com seu tempo do que lavar guardanapos.
“A essa altura, eu já tinha esquecido completamente o que a cereja (mais de quatro dólares o quilo) queria dizer e o que aquela pequena reentrância no guardanapo representava. Colin continuava falando, e Tom, que é médico de família e tem bons conhecimentos científicos, parecia acompanhar. Pelo menos, concordava com a cabeça. Minha sogra, Lois, pediu licença, educada, e voltou para a casa dela, que fica ao lado da nossa. Ela jamais perderia o noticiário das dez na TV; assistir ao noticiário das dez ajuda o Canadá a seguir em frente. Christine e Natalie já tinham há muito escapado da mesa, e eu ouvia o som da TV lá dentro.
“Pet, o nosso golden retriever, estacionou seu peludo ser embaixo da mesa e encostou seu corpo cachorral no meu pé. Às vezes, rosna quando sonha; outras, ri de felicidade. Fiquei pensando em Marietta, mulher de Colin, que há poucos meses arrumou as malas e mudou-se para Calgary, foi viver com outro homem. Reclamou que Colin vivia envolvido demais em pesquisa e aulas para ser um bom companheiro. Uma linda mulher, com um pescoço que parecia um caule, ela deu a entender que tinha havido uma falência de paixão no casamento. Foi embora de repente, fria. Ele ficou chocado, disse para nós logo depois que não imaginava que ela havia sido infeliz todos aqueles anos, mas achou os diários dela numa gaveta da escrivaninha, leu-os e ficou doente ao perceber que os dois estavam separados por um abismo de mal-entendidos.
“Por que uma mulher deixaria esses diários íntimos para trás? Claro que para castigar, para magoar. Colin, que em geral era um homem generoso, gentil, costumava tratá-la de um jeito seco, crítico, como se ela fosse uma aluna e não a mulher dele. “Não me diga que isso é queijo processado?”, perguntou uma vez, quando jantávamos na casa deles. De outra vez, disse: “Este café está intragável.” Ele era o tipo do homem que gostava do prazer e não ligava para seus pequenos uivos de raiva quando não havia prazer. Podia ser considerado um ingênuo em suas expectativas, quase singelo nessa determinada noite de agosto. Era como se estivesse sozinho num quarto de teto arqueado que ecoava imensidões, enquanto Tom e eu ficávamos à espera na porta, pegando o transbordamento, o olhar estranho de sua calma brilhante, mas enviesada. Até as pequenas olheiras dele eram apáticas. Não era uma pessoa superficial, mas talvez achasse que nós éramos. Tive de me conter para não interromper com uma piada. Acho que eu tinha mania de fazer isso: pedir uma explicação e depois ficar perdida em pensamentos.
“Como ele podia estar naquela hora sentado à nossa mesa tão calmo, brincando com cerejas e xícaras de café, enrolando a beira de seu jogo americano de palha e nos dando toda aquela informação? Era quase meia-noite; ele ainda tinha uma hora de estrada pela frente. Qual a importância da teoria da relatividade na vida dele? Colin, com seus óculos pequeninos e seu bigode fino, ficava à vontade com grandes temas como a relatividade. Em tese, a relatividade funcionava, juntava todo tipo de “conceitos” importantes com precisão e elegância. Pense em cola espalhada, disse ele sobre a relatividade, tentando ajudar. Pense no poder da tese sagaz. No começo, essa perspectiva tão arrebatadora era visionária, mas foi avaliada, confirmada e, acima de tudo (Colin estava insistindo) útil. Levando em conta as incertezas da vida, o peso da relatividade poderia ser avaliado e depois deixado de lado, parte do fardo da consciência.
“Ele terminou de um jeito estranho; encostou na cadeira, esticou os longos braços e disse: “Aí está”, como se dissesse é isso, ou é tudo o que posso fazer para simplificar e explicar uma ideia tão luminosa. Deu uma espiada no relógio, depois se encostou outra vez, exausto, satisfeito consigo mesmo. Usava uma camisa de algodão bem passada, de listras azuis e amarelas, bem enfiada dentro dos jeans pretos. Ele não liga para roupas. Aquela camisa devia ser do tempo em que era casado, escolhida para ele, passada a ferro por Marietta e colocada no cabide, talvez no verão passado.
“A teoria da relatividade não traria a mulher de Colin de volta, rápido, para a velha casa de pedra na Oriole Parkway. Não traria para casa minha filha Norah da esquina de Bathusrt com Bloor, ou do Abrigo Esperança onde ela dorme. Um dia, Tom e eu a seguimos; tínhamos de saber como ela estava, se estava em segurança. O inverno já ia começar. Como ela agüenta? Concreto frio. Sujeira. Cabelo despenteado.
“Depois de ficar calada alguns minutos, perguntei a Colin: ‘Você acha que a teoria da relatividade diminuiu o peso da bondade e da perversidade no mundo?’
“Ele ficou me olhando. ‘A relatividade não tem um enfoque moral. Nunca teve.’ (‘Este café está intragável.’)
“Virei-me para Tom em busca de apoio, mas ele estava olhando para o teto com seus olhos suaves, sorrindo. Eu conhecia aquele sorriso.
“‘Mas é possível pensar que a bondade, ou, se você preferir, a virtude, pode ser uma onda ou uma partícula de energia?’, perguntei a Colin.
“‘Não, não é possível’, respondeu ele.
“Fiz um gesto repentino para limpar a mesa. De repente, eu estava exausta.
“Mas sou grata à amizade e ao entusiasmo intelectual de um homem tão despretensioso quanto Colin Glass, que, apesar de seu sofrimento e tristeza, queria realmente que eu entendesse um conceito fundamental do século XX. Ou será que ele estava apenas se distraindo por uma hora? É isso que preciso aprender: a arte de me divertir. A noite inteira ele não disse uma palavra sobre Marietta. Tom e eu achamos que Colin está reconstruindo a vida sem a mulher. Mas uma filha é diferente. Uma filha de 19 anos não pode ser apagada da lembrança.”
[Texto publicado no Jornal Opção em 2009]