Queda da censura na Crusoé é mais vitória do que derrota do Supremo e da democracia

21 abril 2019 às 00h00

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O STF excedeu, ao recriar a censura, que até os militares abandonaram no governo de Geisel, e proibir divulgação do que todos já sabem

Ditaduras, mesmo quando acabam, costumam deixar um “filho” no inconsciente coletivo. A democracia retorna, porque é mais sólida do que qualquer ditadura e sempre renasce, mas comportamentos autoritários não desaparecem de uma hora para a outra. Todos nós somos filhos do regime civil-militar de 1964 e, de algum modo, nos adaptamos a agir — e a dizer outra coisa — de acordo com os valores anteriores, dos tempos difíceis e sombrios. Os guardas da esquina, do qual falou o vice-presidente Pedro Aleixo, somos nós, e não apenas os guardas da esquina.
Pode-se sugerir que, quando trata de reportar ações ou supostas ações do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, a revista digital “Crusoé” exagera? Talvez não. Mas suas reportagens não provam o nexo entre a “fortuna” do magistrado e suas atividades no Supremo Tribunal Federal. Fica-se com a impressão de que, aqui e ali, força-se a barra, com o objetivo de incriminá-lo e criar um ambiente para desqualificá-lo. Nadar contra a corrente é praticamente impossível — dado o fato de um jurista gabaritado, Modesto Carvalhosa, arrolar uma série de indícios, que, como sabem advogados atuantes, podem ser apresentados sobre várias pessoas que participam de algum poder da República. Pode até ser que haja algum “problema” efetivo, mas é preciso apresentar provas cabais, não meras opiniões e indícios mal ajambrados. Destruir vidas e reputações é fácil, reconstruí-las, uma missão quase impossível.
No geral, porém, a “Crusoé” faz reportagens apuradas de maneira cuidadosa — contemplando as partes e sem o objetivo de demolir indivíduos e suas histórias. A reportagem em que menciona o presidente do STF, Antonio Dias Toffoli, como “o amigo do amigo do meu pai”, é leve e cautelosa. Em nenhum momento há o apontamento de que o amigo do ex-presidente Lula da Silva — este o amigo de Emilio Odebrecht, pai de Marcelo Odebrecht, que passou a informação para a Operação Lava Jato, talvez como vingança (há quem diga que teria sido pressionado) — tenha recebido dinheiro para apoiar a construtora (que não ganhou uma das obras). Há a mera transcrição de uma informação que está — ou estava — entre os documentos da Lava Jato.

Dias Toffoli era, em 2007, advogado-geral da União, no governo de Lula da Silva. Ainda não era ministro do STF.
A notícia obviamente alcançaria repercussão de qualquer maneira, dada a citação de um ministro do Supremo. Entretanto, em defesa de Dias Toffoli, o ministro Alexandre Morais decidiu censurar a reportagem e, no caso de insistência, multar a revista em 100 mil reais. O que poderia ter morrido com a informação de que o presidente do Supremo não havia sido subornado — vulgarizada pela “Folha de S. Paulo” —, o que prova que a imprensa agiu de maneira cuidadosa, renasceu com a censura do texto. Censurar o que todos já sabem é, por fim, uma ação nada inteligente.
O Supremo, que é melhor do que pensa parte da população mas não tão eficaz quanto pensam alguns de seus integrantes — tanto que o ministro Marco Aurélio Mello não aprovou a decisão dos dois colegas —, acabou por exceder mais do que a “Crusoé”. A censura jogou o país contra o Supremo — por lembrar os não tão velhos tempos da ditadura —, o que não é positivo para a própria sociedade. Instituições com problemas ainda assim são melhores do que instituições não independentes, que se submetem, por exemplo, ao Poder Executivo, como ocorre hoje na Venezuela — onde a Suprema Corte é uma espécie de “ministério” de governo de Nicolás Maduro. Respeitar a Justiça é decisivo para a estabilidade da democracia. Erros de ministros, como Dias Toffoli e Alexandre Moraes, não equivalem a erros de todo o Supremo. Há uma tentativa de desmoralizar o Judiciário, do qual o Supremo é apenas a face mais visível, e quem se unir ao exército de vândalos, mesmo acreditando que está falando em defesa do exercício da cidadania, estará conspirando contra a democracia.
A censura denuncia que parte do Supremo jogou contra a liberdade de expressão e em defesa de um de seus integrantes, Dias Toffoli. Apequenou-se. A queda da censura, decidida pelo mesmo Alexandre de Morais, sob pressão das palavras de ministros como Marco Aurélio Mello e Celso de Mello, não é uma derrota da instituição, e sim uma vitória contra o poder excessivo. O STF, afinal, não é uma ditadura. É preciso arrancar do inconsciente coletivo, até da Justiça, a serpente autoritária que escapou do ovo.