Poema levou Stálin a prender e isolar Óssip Mandelstam num campo de trabalhos forçados

02 janeiro 2017 às 23h22

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Faminto e desesperançado, o poeta que apontou o ditador como o assassino de bigode de barata morreu em 1938, num campo de trabalhos forçados
Óssip Mandelstam, um dos maiores poetas russos, disse: “Eu nunca escrevo. Componho poesia na cabeça e a dito para Nadenka. Ela é a única que escreve”. O poema no qual fala do bigode-barata de Ióssif Stálin, além de apontá-lo como assassino de camponeses (o que, de fato, era), a rigor, não foi escrito. O autor formulou-o em 1933 e chegou a declamá-lo para algumas pessoas e, por isso, acabou denunciado ao ditador implacável. “Em nenhum lugar do mundo se dá tanta importância à poesia: é somente em nosso país que se fuzila por causa de um verso”, afirmou Mandelstam. Ao ficar sabendo do poema — na época ninguém tinha coragem de criticá-lo publicamente —, Stálin mandou prendê-lo. Queria, possivelmente, que morresse de fome ou de doença num campo de trabalhos forçados. De fato, faminto e desesperançado, Mandelstam morreu de tifo, em 1938, no campo de trabalhos forçados de Vladivostok.
Vários livros registram o assassinato indireto mas doloso de Mandelstam. Mas nenhum conta a história com tanta, talvez se possa dizer, verve (e emoção sem destempero) quanto Varlam Chalámov, no livro “Contos de Kolimá” (Editora 34, 303 páginas, tradução de Denise Sales e Elena Vasilevich).
O poema, segundo Lauro Machado Coelho, um de seus tradutores, foi “publicado pela primeira vez em Munique, em 1963, na revista ‘Mostakh’, e depois em Paris, na ‘Rússkaia Mysl’, em março de 1965. Três traduções são diretas do russo e duas do inglês. O conto “Xerez” tem quase oito páginas.
1
[Tradução de Augusto de Campos¹]
Vivemos sem sentir o chão nos pés,
A dez passos não se ouve a nossa voz.
Uma palavra a mais e o montanhez²
Do Kremlin vem: chegou a nossa vez.
Seus dedos grossos são vermes obesos.
Suas palavras caem como pesos.
Baratas, seus bigodes dão risotas;
Brilham como um espelho as suas botas.
Cercado de um magote subserviente,
Brinca de gato com essa subgente.
Um mia, outro assobia, um outro geme.
Somente ele troveja e tudo treme.
Forja decretos como ferraduras:
Nos olhos! Nos quadris! Nas dentaduras!
Frui as sentenças como framboesas.
O amigo Urso abraça suas presas.³
Notas
¹ Do livro “Poesia da Recusa” (Perspectiva, 364 páginas), de Augusto de Campos. Edição de 2011. Tradução direta do russo.
² Nota do Jornal Opção: Augusto de Campos prefere “montanhez”, no lugar de montanhês, para rimar com vez? É provável.
³ Nota de Augusto de Campos: a tradução literal desta última linha equivale a: “O largo peito do ossétio” (cidadão da Ossétia, da Geórgia, região de origem de Stálin). Variante literal: “Um abraço de Ossétia às suas presas”.
2
Tradução de Lauro Machado Coelho¹
Vivemos sem sentir o chão em que pisamos.
A dez passos de nós, já não se ouve o que falamos.
Mas onde quer que haja meia-conversa que seja,
o montanhês do Krêmlin há de ficar sabendo dela.
Os dedos desse assassino de camponeses
são grossos como salsichões,
e as palavras caem de seus lábios pesadas como chumbo.
Seus bigodes de barata vibram
e o cano de suas botas é reluzente.
À sua volta, há um rebanho de líderes
de pescoço fino, homens pela metade, que o bajulam
e com quem ele brinca como se fossem animais de estimação.
Rosnam, ronronam, uivam cada vez
que ele fala com eles ou lhes aponta o dedo.
Um a um, forjam leis para que, depois,
ele os acerte com a ferradura na cabeça,
no olho, no baixo-ventre.
E cada vez que eles matam, isso é um pitéu
para aquele ossétio de pescoço grosso.
Nota
¹ O poema pode ser encontrado no livro “Poesia Soviética”, seleção, tradução e notas de Lauro Machado Coelho. Editora Algol, 654 páginas. O livro é de 2007. A tradução também saiu na biografia de “Anna — A Voz da Rússia” (sobre Anna Akhmátova) escrita por Coelho e publicada em 2008. Versão direta do russo.
3
Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra¹
Vivemos sem sentir o país sob os pés,
Nem a dez passos ouvimos o que se diz,
E quando chegamos enfim à meia fala
O montanheiro do Krémlin² lá vem à baila.
Dedos gordurosos como vérmina gorda,
As palavras certas como pesos de arroba.
Riem-se-lhe os bigodes de barata,
Reluzem-lhe os canos da bota alta.
À volta a escumalha — guias de fino pescoço —
Nas vénias da semigente ele brinca com gozo.
Um assobia, o outro geme, aquele mia,
Só ele trata por tu, escolhe companhia.
Como ferraduras, lei ‘trás de lei ele oferta,
Em cheio na virilha, olho e sobrolho e testa.
Cada morte que faz — crime malino
E o peitaço tem amplo, ossetino.
Notas
¹ “Guarda Minha Fala Para Sempre”, de Óssip Mandelstam, Editora Assírio & Alvim, 237 páginas, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. O livro saiu em Portugal em 1996. Versão direta do russo.
² Na tradução portuguesa, no lugar de Kremlin ou Krêmlin (como prefere Lauro Machado Coelho), escreve-se “Krémlin” e “vénias”.
4
Tradução de Mauro Gama¹
Surdos na terra que pisamos nós vivemos.²
A dez passos de nós, quem ouve o que dizemos?
O alpinista do Krêmlin eu ouço há meses:
É um assassino massacrando os camponeses.
Os dedos gordos como larvas mela
E, em chumbo, cai-lhe o verbo de sua goela.
Torto nos vê o bigode de barata
E a bota que no brilho se remata.
Em torno a choldra de pescoço ralo
E de semi-homens baba, em seu badalo.
Nitre, ronrona, gane
Se eles lhes palre, ou as mãos abane.
Um a um forjando leis, arremessadas
Ferraduras na testa, olho, beiradas.
E matar sempre é benfeito
Para esse osseta de peito.
Notas
¹ “De Mandelstam para Stálin—Um Epígrama Trágico” (Record, 377 páginas, tradução de Mauro Gama). Edição de 2009.
² O poema foi traduzido do inglês por Mauro Gama, com revisão do poeta, tradutor e ensaísta Marco Lucchesi.
5
Tradução de Mário Vilela e Ibraíma Dafonte¹
Vivemos sem sentir a terra debaixo dos pés.²
Falamos, e ninguém nos ouve a dez passos.
Mas, onde houver uma conversa, mesmo que sussurrada,
O embusteiro, assassino e mata-compônios do Kremlin será mencionado
Seus dedos, gordos como larvas, são untuosos.
Suas palavras, como pesos de chumbo, são finais.
Seu bigode de barata desdenha.
As bordas de suas botas brilham.
E, em volva dele, uma panelinha de líderes frouxos,
Apenas meio humanos, serve-lhe de brinquedo.
Um choraminga, outro arrulha, outro geme.
Só ele berra e aponta,
Lançando decretos como se fossem ferraduras,
Acertando uma virilha, uma cabeça, um olho…
Toda sentença de morte é doce
Para o osseto de peito largo.
Notas
¹ “Gulag — Uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos” (Ediouro, 749 páginas). Edição de 2004.
² Nota dos tradutores Mário Vilela e Ibraíma Dafonte: “Existem várias versões deste poema em russo. A aqui apresentada baseou-se livremente em uma encontrada em E. Yevtushenko, ed., Strofi Veka”. Versão feita a partir do inglês.
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