Conto-réquiem de Varlam Chalámov resgata história de como morreu o poeta russo Óssip Mandelstam
17 outubro 2015 às 12h41
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Um dos relatos de “Contos de Kolimá”, o brilhante registro literário da vida no Gulag, esclarece os últimos dias do poeta que ridicularizou o ditador Stálin e seu bigode de barata
“Gulag — Uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos” (Ediouro, 749 páginas, tradução de Mário Vilela e Ibraíma Dafonte), de Anne Applebaum, é o livro basilar, dados o rigor acadêmico e a pesquisa monumental, sobre a Administração Central dos Campos. A impressão que se tem é que a jornalista e historiadora americana esquadrinhou tudo sobre o assunto. “Cerca de 18 milhões de pessoas passaram por esse enorme sistema”, sublinha Applebaum. Milhões morreram — fuzilados ou de fome. Dois ficcionistas, Varlam Chalámov (1907-1982) e Aleksandr Soljenítsin, são autores de livros incontornáveis sobre a vida no Gulag. Soljenítsin escreveu o clássico “Arquipélago Gulag” (Difel, 587 páginas, tradução de Francisco A. Ferreira, Maria M. Llistó e José A. Seabra). Chalámov é autor de “Contos de Kolimá” (Editora 34, 303 páginas, tradução de Denise Sales e Elena Vasilevich).
A Editora 34 vai publicar os seis volumes da obra-prima de Chalámov. “Contos de Kolimá”, um dos maiores lançamentos do ano, senão o maior, é o primeiro volume. A primorosa edição é cercada de cuidados especiais. A tradução é precisa e anotada com rigor. Há um glossário essencial. A apresentação de Boris Schnaiderman e o prefácio de Irina P. Sirotínskaia são esclarecedores. Até as orelhas, assinadas por Irineu Franco Perpetuo, tradutor do russo, são de qualidade.
“Contos de Kolimá” é literatura testemunhal. É literatura, mas é testemunho. É testemunho, mas é literatura. As histórias de Chamálov gritam e clamam por si. As palavras, não. Não são solenes e não compõem discursos. Não são melodrama e discurso engajado. O que denunciam mesmo são as histórias das pessoas, como a do próprio autor — que ficou cerca de 20 anos preso —, contadas com precisão cirúrgica e, apesar da brutalidade dos fatos, com uma delicadeza ímpar.
O conto “Xerez” relata os últimos dias do poeta Óssip Mandelstam, que morreu de tifo em 1938, “paranoico e delirante”, segundo Applebaum, num campo de trabalhos forçados, em Vladivostok. Os nomes de Mandelstam e Stálin não são citados no conto.
Mandelstam escreveu um poema sobre Stálin e por isso foi enviado para o Gulag. Eis o poema: “Vivemos sem sentir a terra debaixo dos pés./Falamos, e ninguém nos ouve a dez passos./Mas, onde houver uma conversa, mesmo que sussurrada,/O embusteiro, assassino e mata-campônios do Kremlin será mencionado./Seus dedos, gordos como larvas, são untuosos./Suas palavras, como pesos de chumbo, são finais./Seu bigode de barata desdenha./As bordas de suas botas brilham.//E, em volta dele, uma panelinha de líderes frouxos,/Apenas meio humanos, serve-lhe de brinquedo./Um choraminga, outro arrulha, outro geme./Só ele berra e aponta,/Lançando decretos como se fossem ferraduras,/Acertando uma virilha, uma cabeça, um olho…/Toda sentença de morte é doce/Para o osseto de peito largo” (a tradução foi extraída do livro de Applebaum).
O homem de aço jamais perdoaria aquilo que nem mesmo Liev Trotski, ao menos quando morava na União Soviética, teria coragem de proferir.
Stálin chegou a ligar para o poeta Boris Pasternak. Queria saber se Mandelstam era um grande poeta. Hesitante, Pasternak sugeriu que era, mas sua “defesa” parece não ter sido enfática. O ditador certamente entendeu que, se não mandasse o escritor para a Sibéria, outros Mandelstams surgiriam, talvez entre escritores, políticos e militares.
O título de “Xerez”, o conto de Chalámov, “refere-se a um” dos “poemas mais famosos” de Mandelstam, “que diz na primeira e última estrofes: ‘Digo com a franqueza/que prezo tanto:/tudo é apenas delírio e xerez,/meu anjo’” — esclarece nota das tradutoras.
Freud é citado, de maneira fortuita, mas não Stálin, o personagem, digamos, “oculto” nos “Contos de Kolimá”. “O poeta estava morrendo. As mãos grandes, infladas pela fome, com dedos brancos exangues e unhas longas, sujas e recurvadas jaziam sobre o peito, sem se esconderem do frio. (…) O poeta estava morrendo há tanto tempo que não entendia mais que estava morrendo”, escreve o perceptivo Chalámov.
O contista assinala que Mandelstam “tivera de se apressar a vida inteira”. Agora, morrendo, “era maravilhoso não precisar se apressar, poder pensar lentamente. (…) Era agradável reconhecer que ainda podia pensar. Há muito se acostumara à náusea da fome”.
“A vida entrava e saía, e ele morria. Então a vida retornava, os olhos se abriam, surgiam pensamentos. Só não surgiam desejos”, anota Chalámov. Mandelstam “acreditava na verdadeira imortalidade do homem. (…) E ele absolutamente não se cansara de viver”.
O pavilhão provisório, no qual o imortal Mandelstam morria, “era o limiar do terror, mas não o terror em si. Pelo contrário, ali vivia o espírito da liberdade, e todos sentiam isso. À frente, o campo de trabalhos forçados; atrás, a prisão. Aquele era um ‘mundo na estrada’, e o poeta compreendia isso”.
Como se estivesse a responder a Stálin, aquilo que Pasternak não soubera ou não pudera explicar, Chalámov revela quem era o poeta Mandelstam: “Se não lhe caberia ser imortal na forma humana, então merecia ao menos a imortalidade artística. Chamavam-no de primeiro poeta russo do século XX e ele costumava pensar que realmente era assim. Acreditava na imortalidade dos próprios versos. Não tinha discípulos, mas por acaso os poetas os aturam? (…) só nos versos encontrou algo novo e importante para a literatura, como sempre reconheceu. Toda a sua vida passada era literatura, livro, conto, sonho; apenas o dia presente era vida de verdade”.
No degredo, morrendo, Mandelstam, apesar dos surtos de lucidez, quedava-se indiferente. “Quem precisava dele ali e quem era seu igual?” Stálin, no presente, o havia transformado em um “nada”. A história, vingativa, sugere que o “nada”, Mandelstam, virou “tudo” e que o “tudo”, Stálin, se tornou ou está se tornando “nada”. Tão-somente um bárbaro czar vermelho. Mas não há nada disto no conto, que prefere a leveza para resgatar o peso trágico da história e da vida-morte do poeta russo.
“A vida entrava sozinha, como um déspota: ele não a chamava, mas ainda assim ela entrava em seu corpo, em seu cérebro, entrava como versos, como inspiração. (…) Os versos eram aquela força vitalizadora, pela qual ele vivia. Ele não vivia graças aos versos, ele vivia por versos”, anota Chalámov. “Agora estava tão patente, tão perceptivamente claro que a inspiração é que era a vida; diante da morte, era-lhe dado saber que a vida era inspiração, justamente inspiração.”
Para o poeta tudo é poesia, mas apenas com vontade não se faz poesia de qualidade. Talento, perícia técnica e inspiração somados às vezes resultam em poesia de primeira linha, como a de Púchkin e Mandelstam. “Tudo”, registra Chalámov, “o mundo inteiro comparava-se a versos: trabalho, tropel de cavalos, casa, pássaro, penhasco, amor — toda a vida entrava suavemente nos versos e acomodava-se bem ali. E assim devia ser, pois os versos eram o verbo”.
Muitos dos poemas de Mandelstam foram anotados por sua mulher, Nadiêjda Mandelstam, que, por algum milagre da sensibilidade, conseguia decorar vários poemas e, mais tarde, transcrevia-os para o papel.
Eis o que diz Chalámov: “… embora há muito tempo ele não anotasse e não pudesse anotar seus versos, ainda assim as palavras facilmente se erguiam num dado ritmo, sempre incomum. A rima era um buscar, um instrumento de busca magnética de palavras e conceitos. Cada palavra era uma parte do mundo, ela reagia à rima e o mundo todo ecoava com a rapidez de uma máquina eletrônica. Tudo gritava: me leva. Não, a mim. Não era preciso procurar nada. Bastava simplesmente repelir. Aqui era como se houvesse duas pessoas — aquela que compõe, que liga o motor a toda, e aquele que escolhe e, de tempos em tempos, faz parar a máquina ativada. E, ao ver que ele próprio era essas duas pessoas, o poeta compreendeu que agora compunha versos de verdade. E daí se não estavam anotados? Anotar, publicar — tudo isso é a vaidade das vaidades. (…) O melhor é aquilo que não se anota, que se compõe e desaparece, desmancha sem rastros”.
Mandelstam está morrendo, mas ainda não morreu e, como poeta, talvez seja eterno. É provável que, quando Stálin se tornar um rodapé nos livros de história, Mandelstam continuará como referência talvez central da poesia russa e universal, e não por ser uma das milhões de vítimas do ditador de bigode de barata. “O mais importante é que ele ainda não morrera. Aliás, o que significa ‘morrer como poeta’. (…) Morrer como um ator — isso ainda se compreende. Mas morrer como poeta?”
“De repente”, Mandelstam “sentiu fome, mas não tinha forças para se mexer. (…) Então ele ficou deitado, solto e sem pensamentos, até chegar a manhã. (…) Não, agora ele não se inquietara. Mas, quando lhe enfiaram nas mãos a ração diária, ele a pegou com os dedos exangues e apertou o pão contra a boca. Ele mordia o pão com os dentes de escorbuto, as gengivas sangravam, os dentes bambeavam, mas não sentia dor”.
Os colegas de campo disseram-lhe: “Não coma tudo, melhor comer depois”. Mandelstam teria dito: “Depois, quando?”
O poeta “fechou os olhos” e, “ao anoitecer, morreu”. “Mas só deram baixa dois dias mais tarde — durante dois dias, os engenhosos vizinhos conseguiram receber o pão do morto na hora da distribuição; o morto erguia a mão, como uma marionete. Quer dizer, ele morreu antes da data de sua morte — um detalhe bem importante para os seus futuros biógrafos.”
As sete páginas e meia do conto-réquiem valem o livro. Não é à toa que Applebaum escreveu: “De modo consciente, fiz muito uso de apenas um autor (Varlam Chalámov) que escreveu versões ficcionalizadas de sua vida nos campos, e isso porque suas histórias de baseiam em acontecimentos reais”.
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