Apesar de narrar acontecimentos relevantes e alguns inéditos, a autobiografia do militar ainda encontra-se praticamente desconhecida

Jales Guedes Coelho Mendonça, Nilson Jaime e Thalles Murilo Vaz Costa

Especial para o Jornal Opção

O livro “Goiás de Ontem — Memórias Militares e Políticas” (1987, 271 páginas) trata-se de uma autobiografia de Lindolpho Emiliano dos Passos, nascido na antiga capital de Goiás em 18 de fevereiro de 1900, filho de Antônio Emiliano dos Passos e Cândida Milameixas Passos, e falecido em 21 de maio de 1988. Prefaciada por José Dilermando Meireles, a obra, cuja capa apresenta um belo desenho do artista Octo Marques que retrata a fachada do Quartel do 20, divide-se em três partes. A primeira medeia do nascimento do autor ao seu ingresso no Exército Brasileiro em 1919; a segunda descortina os 11 anos de serviços prestados no 6º Batalhão de Caçadores, sediado na Cidade de Goiás desde 1917 e cinco anos depois removido para Ipameri (GO); e a última e mais abrangente aborda os cerca de 20 anos de atuação (1930–1951) nos quadros da Polícia Militar Goiana, oportunidade em que comandou a 1ª Companhia da corporação nos tensos momentos da efetivação da mudança da sede administrativa do estado para Goiânia.

Embora constitua-se uma fonte privilegiada de informações – algumas até hoje não encontradas em outra publicação –, impressiona verificar o quase completo desconhecimento do trabalho de Lindolpho, inclusive entre estudiosos da História de Goiás. Por esse motivo, o vertente artigo busca resgatar as referidas memórias, compartilhando-as com a opinião pública.

A infância e juventude

Lindolpho era neto, pelo lado materno, do Major Antônio Martins Milameixas, veterano da Guerra do Paraguai e, pela linhagem paterna, sobrinho de Samuel Sabino dos Passos, destacado comerciante na antiga capital e seu primeiro prefeito após a Revolução de 1930. Ademais, era afilhado de batismo dos tios Joana dos Passos Souza e Joaquim José de Souza, Senador da República por dois mandatos (1891–1909).

Mesmo pertencendo à tradicional família vilaboense, depreende-se facilmente da narrativa que o padrão de vida do autor durante a sua infância e juventude foi modesto, na esteira, aliás, da média da população local. Aos sete anos, matriculou-se no Colégio das Irmãs Dominicanas, sendo ali alfabetizado. Cerca de dois anos depois, deixou o espaço educacional para estudar com professores particulares.

Como seu pai fora nomeado administrador do porto de Ipê Arcado, no Rio Paranaíba, divisa com Minas Gerais, Lindolpho e seus dois irmãos mais velhos, Olderico e Levino, foram matriculados em julho de 1912 no Seminário Santa Cruz, em Ouro Fino, distrito do município de Goiás, à época dirigido pelo padre português José Marques Vidal.

As reminiscências vividas no rígido estabelecimento de ensino ganharam destaque na reconstituição dos eventos, afinal a experiência educacional no internato modelou o espírito dele, inserindo forte senso de disciplina e religiosidade – duas características que certamente o inclinaram para a carreira militar, na sequência.

Seminário de Ouro Fino | Foto: Gravura de Octo Marques

O tempo passado na instituição religiosa, apesar de marcante, não foi longevo. Em junho de 1913, o Seminário transferiu-se para a Cidade de Goiás e, em março de 1914, por falta recursos financeiros, os irmãos Passos tiveram que deixá-lo.

No entanto, o autor não abandonou os estudos, logrando aprovação na seleção de ingresso do conceituado Lyceu de Goiás, equiparado ao Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, desde 1906. Contudo, o caminho discente se mostrava bastante incerto e as dificuldades financeiras o desestimulavam a prossegui-lo. Assim, em outubro de 1919, quando ainda cursava o 2º ano no Lyceu, Lindolpho alistou-se como voluntário no 6º Batalhão de Caçadores do Exército, aquartelado na capital de Goiás.

Esse acontecimento ressalta diferenças em relação às famílias goianas mais ricas, cujos filhos, em regra, concluíam a formação educacional no Lyceu e depois rumavam geralmente para as Faculdades de Direito, fora ou dentro do Estado.

O tempo no exército (1919-1930)

Em junho de 1920, pouco tempo depois da perda de sua genitora, Lindolpho conseguiu incorporar-se no Exército como recruta. Posteriormente, galgou degrau na carreira militar destinada aos chamados praças (não-oficiais), sendo promovido a cabo em 1920; 3º sargento no ano seguinte; 2º sargento em 1922 e 1º sargento em 1927.

Tais promoções, evidentemente, não aconteceram por acaso. Foram semeadas pelo empenho despendido em missões conferidas a ele. No intervalo entre elas, participou de episódios marcantes da história do Exército Brasileiro em Goiás, sobretudo a passagem da Coluna Prestes e, principalmente, a transferência do 6º BC para Ipameri, em julho de 1922.

A despeito de o autor não mencionar as causas geradoras da remoção da única unidade das Forças Armadas sediada no estado mediterrâneo, o memorialista Joaquim Rosa, em seu “Por esse Goiás afora…” (1974), credita tal façanha ao trabalho persistente desenvolvido pelo deputado estadual Francisco Vaz, representante de Ipameri na Assembleia Legislativa, e acrescenta: “Aproveitou ele, e explorou, a animosidade existente entre a população de Vila Boa e o elemento militar do Exército. Por sua vez a política dominante apenas tolerava a presença da tropa de linha junto às pirambeiras da Serra Dourada.”

Essa experiência da mudança do 6º Batalhão de Caçadores marcou Lindolpho, registrando as seguintes recordações: “Ipameri, pequena cidade sulina, não tinha à época da mudança do 6º BC, condições para abrigar e mesmo hospedar todo o contingente humano que para lá se transferiu. Assim foi que oficiais, sargentos e praças casados lutaram com grande dificuldade para alojarem suas famílias.” O contingente militar deslocado para Ipameri alcançou cerca de 400 homens, mas em ocasiões especiais esse número atingiu mais de 2.000. A título de comparação, nove anos mais tarde (1931), a Polícia Militar de Goiás possuía pouco mais de 500 membros em suas fileiras (Decreto nº 395, de 19 de dezembro de 1930).

Em 1925, no bojo da luta empreendida pelo desmantelamento da Coluna Prestes, o escritor tornou-se instrutor militar dos “Batalhões Patrióticos”, milícias que apoiavam as forças de segurança regulares no combate aos insurgentes. Em razão disso, ele deixou Ipameri e retornou à sua cidade natal, onde pouco depois contraiu núpcias com Avany de Camargo. Em seguida, especificamente em 15 de outubro de 1929, nasceu o primogênito do casal, Norton de Camargo Passos, editor da publicação “Goiás de ontem: memórias militares e políticas.”

Em meados de 1930, Lindolpho recebeu a notícia de sua provável transferência para o 16º Batalhão de Caçadores, instalado em Cuiabá. O deslocamento da família para lá traria consequências difíceis de serem contornadas. Todavia, a Revolução de 1930 obstou-a, direcionando sua trajetória profissional na direção da Polícia Militar de Goiás.

“A polícia goiana era, incontestavelmente, uma das nódoas mais negras da velha República,” registrou acremente o interventor Pedro Ludovico Teixeira em seu relatório enviado ao presidente Getúlio Vargas em 1933. O péssimo conceito enunciado no documento oficial traduziu-se no expurgo realizado na corporação, consoante assinalou Lindolpho: “com a dissolução parcial do Batalhão, demissões, reformas de oficiais e exclusões de praças, a mesma sofreu um desfalque 30% no seu total efetivo.”

A lacuna aberta com a exoneração dos oficiais restou preenchida pelos militares do 6º BC, a exemplo do próprio autor, que de sargento do Exército transformou-se em capitão da Polícia Militar em 8 de novembro de 1930, ou seja, saiu de um posto subalterno nas Forças Armadas para assumir a condição de oficial da PM Goiana.

O tempo na Polícia Militar (1930-1951)

A maior parte da trajetória militar de mais de três décadas de Lindolpho Emiliano dos Passos se desenrolou no seio da PM de Goiás. Durante esse período, ele teve o privilégio de observar acontecimentos políticos cruciais, bem como vivenciar transformações que impactaram a aludida corporação, motivo pelo qual suas lembranças representam uma fonte valiosa para a compressão dessa fase da denominada Era Vargas.

Quartel da PM em Vila Boa | Foto: Gravura de Octo Marques

Após a Revolução de 1930, o Coronel Pyrineus, Comandante do 6º BC, contribuiu para a reorganização da Força Pública (PM), “cujos quadro e tropa, com honrosas exceções, não mereciam confiança”, sublinhou Lindolpho. Para a execução dessa tarefa, Pyrineus indicou Anfrísio da Rocha Lima e Elpídio da Motta Pedreira, ambos tenentes do Exército, para os cargos de Comandante e Subcomandante da PM, respectivamente.

Apesar do esforço de profissionalização da instituição militar estadual, os novos detentores do poder mantiveram antigas práticas, nomeando praças e oficiais sem ouvir os superiores, obedecendo critérios puramente políticos, o que gerou o pedido de exoneração de Anfrísio e Elpídio, em agosto de 1931. Em substituição, nomeou-se o Major Salomão Clementino de Faria (Comandante) e o Capitão Benedito Quirino de Souza (Subcomandante), troca que parece não ter agradado o autor: “o primeiro sem experiência e traquejo de caserna, o segundo ardiloso e ambicioso pelo cargo de Comandante”.

No dia 23 de outubro de 1931, véspera do primeiro aniversário da Revolução, o Chefe de Polícia, Ernani Cabral, alegando um suposto contragolpe urdido pelos “decaídos”, ordenou a invasão da fazenda Lages, propriedade da família Caiado, no município de Itaberaí.

A narrativa de toda a operação emerge das páginas da obra. Ao chegarem à fazenda, confirmaram-se as dúvidas de Lindolpho de que a suposta sublevação não passava de mera fantasia, visto que só existiam peões, algumas mulheres e o ex-governador Brasil Ramos Caiado, alvo principal da perseguição.

Após o início da Revolução Constitucionalista de 1932, o autor acabou destacado para a linha de frente dos combates, liderando um expressivo contingente na fronteira do que hoje é o estado do Mato Grosso do Sul. O Comando-Geral das forças goianas coube a Domingos Vellasco, nomeado Coronel comissionado da PM pelo interventor Pedro Ludovico.

As tropas goianas partiram em 19 de julho de 1932 e só retornaram em 8 de outubro, participando de combates no Porto de Alencastro (6 de agosto), na região do rio Quitéria (11 de agosto) e em Três Lagoas (5 de outubro).

Mapa da região onde a tropa goiana lutou em 1932

Segundo Lindolpho, após o término da Revolução de 1932, não houve reconhecimento pelas autoridades estaduais do valor desempenhado pelos policiais. De outro lado, os batalhões patrióticos receberam “rasgados elogios”, sobretudo por seus líderes serem chefes locais.

Aspecto muito interessante a respeito dos oficiais da PM na ocasião era a frequente investidura interina na função de Delegado Especial, posição fundamental no controle político de qualquer município. Nessa posição, uma espécie de “longa manus” do interventor, o autor foi comissionado em abril de 1933 para atuar em Catalão, enredada em feroz luta política travada entre os grupos de Diógenes Dolival Sampaio e Mário Netto, rivais inconciliáveis. A missão inicial era pacificar o ambiente conflagrado, garantindo condições para a realização das eleições para a Assembleia Nacional Constituinte.

O acordo político entabulado com o governo estadual previa que a facção vencedora no sufrágio receberia o respaldo oficial para dirigir a política local. Apurados os votos, a vitória coube aos Netto, mais ligados a Vellasco do que a Ludovico, fato que certamente pesou para a permanência dos Sampaio na prefeitura. De acordo com Lindolpho, tal fato “motivou o rompimento” de Vellasco e Ludovico, o que destoa da versão oficial, agarrada à perspectiva de que Vellasco desejava tornar-se governador constitucional na sucessão ludoviquista.

Após as eleições de 1933 para a Constituinte Nacional, sucederam as de outubro de 1934 para a importante Constituinte Estadual, palco que deliberaria a sorte do projeto mudancista e escolheria o próximo governador. Salomão de Faria, comandante da PM desde 1931, resolveu pleitear uma dessas 24 cadeiras, transformando o quartel “num reduto da mais danosa politicagem,” no dizer de Lindolpho. Como mantinha-se em posição de “neutralidade”, logo o escritor acabou rotulado de vellasquista, “crítica para a qual jamais ligava, porque era feita à minha ausência,” registrou.

Os atritos com o superior Salomão de Faria motivaram sua designação como Delegado Especial para Caiapônia. Insatisfeito com a nova missão, Lindolpho então resolver recorrer ao influente político Laudelino Gomes de Almeida, conseguindo sua nomeação para Campinas em fevereiro de 1934, quando justamente as obras de Goiânia ganhavam forte impulso.

Além das ocorrências policiais de praxe, o autor detalha um acontecimento pitoresco e desconhecido ocorrido na cidade, isto é, uma briga entre o prefeito Licardino de Oliveira Ney e o interventor Pedro Ludovico Teixeira, episódio narrado no subtítulo “Pugilato Inédito”.

Licardino e o médico Carlos de Freitas eram proprietários de olarias e vendiam tijolos para a construção dos prédios em contratos aparentemente iguais. No entanto, o alcaide descobriu que o estado pagava um valor maior ao produto do facultativo, levando-o a tirar satisfações com Ludovico, que irritou-se profundamente, “deu um pescoção no Licardino, à altura da orelha esquerda, sangrando-a. Revidando, Licardino o agrediu e ambos rolaram pelo assoalho da pequena sala.” Nesse instante, o “jagunço Chico Mulatinho”, de revólver engatilhado, mirava o prefeito, sem, contudo, disparar. Logo os contendores foram apartados pelos presentes e os ânimos serenados. Em poucos dias se reconciliaram.

Lindolpho Emiliano dos Passos | Foto: Reprodução

Em outubro de 1935, novamente Lindolpho dos Passos recebeu pessoalmente do interventor Pedro Ludovico outra incumbência muito parecida com aquela desempenhada em Catalão dois anos antes. A causa da temperatura elevada era, como sempre, a proximidade das eleições em Jaraguá, município dominado por forte conflito entre os coronéis Elias da Fonseca (prefeito) e Diógenes de Castro Ribeiro, ambos partidários do governo na ocasião.

O olhar do capitão Lindolpho conseguiu diagnosticar as origens de tantas batalhas fratricidas no interior de Goiás: “a luta desses chefes políticos tinha raízes profundas e datava da época do Caiadismo, quando ambos militavam em partidos opostos. Com o advento da revolução de 1930 e dissolução dos partidos políticos, novas agremiações foram fundadas em Goiás e o partido do governo recebeu em seus quadros adesões de elementos da grei Caiadista.”

O pleito jaraguense transcorreu normalmente, apesar de alguns incidentes mais graves que não chegaram a desaguar em tragédia. No entanto, a vitória do grupo Castro Ribeiro desempenhará no jogo político estadual relevante implicação, sobretudo pela dissidência da corrente do prefeito Elias da Fonseca, do médico Paulo Alves e do suplente de deputado estadual Sebastião Gonçalves de Almeida, referido no livro apenas pelas iniciais “S.G.”, autor de uma ação proposta em 1936 no Tribunal Regional Eleitoral (TRE) em que pedia a cassação de cinco parlamentares do partido governista (PSR) na Assembleia Legislativa.

Tal qual ocorrera em 1922 com o 6º BC, Lindolpho assistiu ainda a transferência do Batalhão de Polícia Militar para Goiânia no início do ano de 1936. Como em Ipameri, de novo, o autor assinalou que a nova urbe igualmente ainda não detinha plenas condições de receber um número tão alto de policiais e agregados. Por essa razão, a decisão, deliberada por Salomão de Faria numa reunião com os oficiais, mereceu o voto contrário do autor: “eu me bati contra a ideia, por julgá-la prematura, e o fiz porque antevi as dificuldades que a tropa teria que enfrentar, a exemplo do que aconteceu com o 6º Batalhão de Caçadores, quando de sua mudança da Capital do Estado, em julho de 1922, para a cidade de Ipameri, onde ficou acantonado por espaço de seis meses, enquanto se construía o quartel e, nesse período, sofreu profundos abalos disciplinares”.

Com a remoção do Batalhão para Goiânia, Lindolpho assumiu o comando da 1ª Companhia na antiga capital no começo do ano de 1936, quando a cidade ainda sediava os poderes Judiciário e Legislativo. O cenário político representava um grande desafio a ser superado naquele momento: “no comando de uma força policial, minha maior preocupação era a de preservar a disciplina da corporação, a fim de evitar que as lutas ideológicas se alastrassem no quartel; porém, minhas precauções foram frustradas.” Ato contínuo, complementou: “O governo com a cabeça cheia de fuxicos que os boateiros e puxa-sacos teciam em torno dos acontecimentos políticos da capital, nomeou o 2º tenente de polícia, Sebastião Braz de Oliveira, para cargo de delegado especial da capital. (Esse oficial foi um dos muitos civis que o Interventor Pedro Ludovico guindou ao posto de 2º tenente da Força Pública, contrariando leis militares que regulavam a espécie).”

Palácio Conde dos Arcos na Cidade de Goiás | Foto: Reprodução

Entre os vários atos arbitrários cometidos pelo citado delegado especial e seus agentes, convocados diretamente de Goiânia, encontra-se a prisão do deputado estadual Jacy de Assis, acusado de portar documentos comunistas associados a Luís Carlos Prestes, líder da intentona de novembro de 1935. Com a detenção, receosos de novos atos arbitrários, os demais parlamentares oposicionistas ou dissidentes solicitaram abrigo no quartel do Exército (2ª Companhia do 6º BC), comandado pelo filho do prefeito demissionário da antiga capital, Joaquim da Cunha Bastos.

Na realidade, o plano do qual Lindolpho tomou ciência seria deter os deputados na própria sede do poder: “Embora afastado dos conchavos políticos, fui informado de que se tramava uma invasão à Assembleia Legislativa para, durante a sessão, prender alguns deputados da oposição. (…) Trajado à paisana, às 7 horas da manhã, fui à loja do deputado Hermógenes [Coelho] e, no seu escritório, no fundo da loja, discretamente o informei de tudo quanto estava tramado no diabólico plano.”

“O ambiente era estarrecedor”, rememora o capitão Lindolpho, descrevendo na sequência um acontecimento não registrado até hoje em outro livro, a saber: “Dentre os muitos atos de violência que se registraram, o assassinato de um humilde lavrador, às caladas da noite, à porta do edifício da Assembleia Legislativa, foi, sem dúvida, o que mais apavorou as famílias goianas que se sentiam desprotegidas e inseguras, face a tantas maldades. Esse crime ficou impune; a polícia não soube quem o praticou.”

Outro homicídio relacionado aos acontecimentos envolvendo o período mudancista é descrito por Lindolpho Emiliano dos Passos. Trata-se de um sério conflito armado sucedido na praça principal da antiga capital entre os homens do Exército Brasileiro e da Polícia Militar, liderados pelo delegado especial Sebastião Braz de Oliveira. O autor emite sua opinião sobre o caso: “Esses policiais [da PM], aliás, os mesmos dos recentes episódios policiais que envolveram a cidade num arrocho sem tréguas, foram os mais responsáveis pelo choque armado que vitimou o cabo Gaudêncio, daquela Companhia [6º BC], filho do ex-terceiro sargento da polícia, José Gonçalves Gaudêncio.”

Lindolpho narra ainda que, ao tomar conhecimento do ocorrido se dirigiu ao quartel, onde se encontrou com o tenente Sebastião Braz de Oliveira e dirigiu-lhe as seguintes palavras: “Houve um crime militar, no qual você e praças da sua delegacia estão envolvidos; a esse crime junte-se outro de caráter mais grave: a tentativa de amotinar a companhia, armando praças de fuzil, mandando-as para as ruas. Todos vocês serão indiciados no inquérito a ser aberto pela justiça militar; daí porque você, tenente, perdeu sua autoridade e por isso eu o destituo do cargo, até que o Interventor Pedro Ludovico resolva o caso.”

Um parêntese sobre o episódio: no âmago do referido inquérito policial aberto pelo delegado Sebastião Braz de Oliveira, no mesmo dia do acontecimento (noite de 4 de dezembro de 1936), percebe-se que o agente falecido foi Clóvis de Faria, soldado do Exército, e não o cabo Benedito Estácio Gaudêncio mencionado, este envolvido em um atrito com praças da PM no dia anterior.

Aliás, neste dia anterior (3 de dezembro), o comandante da 2ª Companhia do 6º BC, tenente Eduardo Confúcio da Cunha Bastos, enviou uma correspondência para o Lindolpho, comandante da 1ª Companhia da PM, onde consta a seguinte passagem: “A situação está bastante tensa, muito embora este Comando tudo tenha feito para que desapareça o ambiente criado. A patrulha do Exército, na noite de ontem, foi reforçada, a fim de evitar um acontecimento lamentável. Os vossos soldados, declarando haver recebido ordens de um oficial dessa Corporação, têm provocado os desta Cia. e feito espalhar notícias sobre os seus objetivos, isto é, espancar os soldados do Exército que forem encontrados isolados.” O capitão da PM respondeu: “Ignorando qual seja esse oficial, rogo-vos para que, por intermédio dos vossos comandados, seja declinado o seu nome para melhor esclarecimento.”

Compulsando o aludido inquérito policial, conclui-se que as provas colacionadas aos autos não foram suficientes para embasarem nenhuma ação penal, quedando-se arquivado apenas pelo tempo. Sem embargo, cumpre dizer que o Promotor “ad hoc” Luiz Altino da Cunha e Cruz, em 5 de maio de 1937, julgando insuficiente a investigação levada a efeito pelo encarregado do governo, solicitou cópia de outro procedimento investigativo aberto pelo Exército Brasileiro e supostamente conduzido pelo tenente Otaviano de Paiva, lotado em Ipameri.

Entretanto, o inquérito verde-oliva também não mereceu melhor sorte, consoante informou de Jundiaí/SP, em 16 de setembro de 1937, o tenente-coronel Mário Pinto da Silva Valle ao magistrado da comarca de Goiás: “Tenho a declarar-vos que o inquérito de que se trata na citada cópia, em obediência à ordens superiores, não teve prosseguimento.”

Ofício do comandante Mário Valle ao magistrado de Goiás

Calha ressaltar que a dita manifestação do Promotor “ad hoc” Luiz Altino da Cunha e Cruz, nomeado pelo juiz de Direito Ignácio Bento Loyola, foi das mais corajosas, porquanto não apenas mencionou o assassinato do lavrador, já referido acima, como também nominou os cidadãos vítimas de tortura na antiga capital: “É fato público e notório que, em seguida à dissidência que se feriu no seio da Assembleia Legislativa do Estado, a Cidade se viu invadida de indivíduos suspeitos, os quais, à revelia de qualquer punição, ao menos correcional, praticaram desatinos sobre desatinos, desde o espancamento de cidadãos pacíficos, como seja Domingos da Fé, Matusalém de Tal, Gerôncio da Conceição e outros, até o assassinato em plena via pública de vítima indefesa, pobre serviçal que demandava cumprir os deveres do dia!”

Mais: no início de 1937, ordens superiores determinaram a desativação da 2ª Companhia do 6º Batalhão de Caçadores, sediada na Cidade de Goiás, transferindo-se essa unidade militar para Ipameri. Fecha-se parêntese.

Em outubro de 1937, Lindolpho foi nomeado para a Casa Militar do Governo de Goiás e, no mês seguinte, assumiu o posto de Subcomandante interino do 1º Batalhão em Goiânia. Com indicativos claros de que ficaria em definitivo na nova capital, comprou a residência onde havia morado em Campinas em 1934, mudando-se com sua família.

Lei nº 265, de 7 de agosto de 1937, referente a Lindolpho

A partir desse momento, Lindolpho continua sua narrativa, contando as remoções para Rio Verde, Jataí e a distante Pedro Afonso. A viagem para esta última cidade durou quase um mês – de 6 de junho a 3 de julho de 1941. A narrativa sobre a epopeia para assumir o cargo é um dos destaques do livro, ao esquadrinhar os percalços do trajeto por terra e pelos cursos d’água do então extremo norte de Goiás.

Em 13 de junho de 1944, após quase 14 anos no mesmo posto de capitão, finalmente Lindolpho conseguiu ser promovido a major. Sua observação sobre como funcionava o mecanismo de ascensão na PM é válido: “vou relatar como eram feitas as promoções na PM no regime ditatorial. Para acesso ao posto imediato, a escolha do candidato era decidida pelo Interventor, que não obedecia às normas prescritas na Lei de promoção. Prejudicados uns e passados outros para trás, o beneficiado era sempre um apadrinhado político”.

Sua elevação ao posto de tenente-coronel se deu em 21 de junho de 1946, na vaga aberta pela aposentadoria de Agenor Francisco Santiago, quando o estado de Goiás já era governado pelo interventor General Felipe Antônio Xavier de Barros. Impende registrar que esse era o último degrau da carreira da Polícia Militar de Goiás à época.

Com a queda do Estado Novo e a vitória de Coimbra Bueno, um dos coordenadores da campanha do candidato da UDN, Esmerino Soares, convidou-o para assumir o comando da PM. Ele declinou de imediato da proposta e sugeriu o nome do Otaviano Paiva para o cargo, ficando como Chefe do Estado Maior.

Ocupando essa última função, Lindolpho colaborou na transferência do Batalhão de Rio Verde para a Cidade de Goiás. O significado político desse fato é extraído das próprias alegações: “Duas razões levaram a isso: desagravar a antiga Capital do impacto que sofreu com a mudança do Batalhão de Polícia para Goiânia e retirar daquela cidade (Rio Verde) o 2º Batalhão, que há vários anos acantonou-se num pardieiro anti-higiênico, rotulado de quartel”.

Em novembro de 1949, o tenente-coronel Arnaldo de Morais Sarmento assumiu o comando da corporação, o que desagradou profundamente Lindolpho.

Com a mudança no alto escalão, abriu-se uma investigação contra seu primo, Major Hermílio Celestino Rodrigues, que, não suportando a pressão e a vergonha, suicidou-se. Tais fatos serviram para apressar o desejo de deixar a instituição militar, aposentando-se em 4 de janeiro de 1951. Tempos depois, quando já estava inativo, foi promovido ao cargo de Coronel por decisão judicial de 19 de janeiro de 1959.

Por fim, como dito no início, o objetivo do vertente estudo é resgatar do esquecimento as memórias de um dedicado servidor público, que fez questão de legar à posteridade acontecimentos muitas vezes não encontrados em nenhum outro livro. A propósito, foi justamente essa a intenção de Lindolpho Emiliano dos Passos também: “O que escrevi neste livro nenhum valor excepcional tem. O fiz apenas para atender aos reclamos de minha consciência de não deixar sepultado no esquecimento episódios vividos ao longo de uma trajetória de autênticos serviços militares que prestei.” Publicou suas lembranças em 1987 e faleceu no ano seguinte.

Jales Guedes Coelho Mendonça é promotor de Justiça, doutor em História pela UFG, membro do IHGG e ICEBE, autor do livro “A Invenção de Goiânia: o outro lado da mudança” (UFG, 2ª ed., 2018) e colaborador do Jornal Opção.

Nilson Jaime é mestre e doutor em Agronomia pela UFG, membro do IHGG, vice-presidente do ICEBE, autor do livro “Família Jaime/Jayme: genealogia e história” (Kelps, 2016) e colaborador do Jornal Opção.

Thalles Murilo Vaz Costa é mestre em História pela UFG e pesquisador do Memorial do Ministério Público de Goiás.