Lilian Ribeiro, Maju Coutinho, Aline Midlej, Flávia Oliveira, Zileide Silva e Heraldo Pereira fizeram o programa mais interessante do ano

Minha bisavó materna, Frutuosa Martins da Cunha, era negra, não era “morena”, não era “mulata”. Como minha avó, Margarida, falecera no ano em que nasci, em 1961, Tuosa era, para todos os efeitos, a minha avó, assim como um de seus filhos, Pedro Martins da Cunha, era meu avô (“branco”). Talvez fosse neta de escravos. Era dona de um tear e eu frequentemente descaroçava algodão para ela, que depois cardava e fiava, produzindo tecidos. Dela, herdei ao menos uma superstição: a de desvirar sandálias, porque, se não o fizer, morrerá alguém na casa. Morrerá mesmo? Talvez não. Por via das dúvidas, como o sentimento está candidamente entranhado no meu ser, derivado de um passado cada vez mais remoto e lembrado, apavora-me sandálias viradas. Eu amava Tuosa e Pedro, mas nunca disse isto a eles, e, quando menino, nem pensava nisto.

Maju Coutinho, Aline Midlej, Flávia Oliveira, Lilian Ribeiro, Zileide Silva e Heraldo Pereira | Foto: Jornal Opção

Nem sou negro, como Tuoza, e nem sou “branco”, como Pedro. Sou pardo, digamos. Talvez haja quem me considere branco. Dizer que me sinto negro seria populismo, porque nunca fui vítima de racismo, de discriminação. Duas vezes, em Barcelona e em Lisboa, depois de me olharem de maneira desconfiada — quiçá com medo —, um homem e uma mulher me perguntaram se eu era “árabe”. Poucas vezes pego-me a pensar a respeito de minha origem pelo lado paterno — sírio-libanesa. Mas, a rigor, a cor de minha pele, que não é negra nem branca, nunca foi notada de maneira “depreciativa”. Portanto, a dor do negro, vítima de racismo, não pode ser sentida por mim, ao menos não na sua integralidade. Mas, por lembrar de parte de minha origem, Tuosa, e por ter consciência do mundo à minha volta, não tenho como não ser solidário à dor e às lutas dos negros. Por isso, sem querer ocupar o espaço do outro, de invadi-lo, estou ao lado dos que lamentam as mortes do brasileiro João Pedro, de 14 anos, e do americano George Floyd, de 46 anos. A Tuosa que vive em mim, na minha alma e na minha pele mestiça, chora pelo menino e pelo homem e solidariza com as manifestações nas ruas dos Estados Unidos, nas quais negros e brancos irmanam-se, pacificamente. (Os arrombamentos de lojas são fortuitos, não são a regra. Mas, como disse Lênin, o que é um assalto a um banco perto de um banco?)

Tuosa vem-me à memória por causa do “Em Pauta”, da GloboNews, apresentado na quarta-feira, 4, exclusivamente por negros — cinco mulheres e um homem: Lilian Ribeiro, Maju Coutinho, Zileide Silva, Flávia Oliveira e Aline Midlej e Heraldo Pereira. É um avanço. Um reconhecimento da maior rede de televisão do país. Não é populismo.

Quase não há negros apresentando e reportando fatos na televisão brasileira. Aqui e ali, aparecem dois ou três profissionais. Há profissionais negros competentes e experimentados, mas será que alguns editores e proprietários avaliam que são inadequados para a televisão? Quem, exatamente, avalia ou aceita uma regra não escrita? A Globo certamente prioriza o talento e a competência, mas só nos últimos anos os negros começaram a ocupar posições de proa na apresentação.

Glória Maria, uma das melhores repórteres da televisão patropi, sempre recebeu destaque, merecidamente. Mas era um rosto-voz solitário — tanto que se destacava. Na gestão de Ali Kamel como diretor de Jornalismo, a Globo passou a abrir mais espaço para profissionais afro-brasileiros.

Flávia Oliveira é uma excelente comentarista, e não apenas de temas econômicos. É uma profissional que processa informações complexas rapidamente e consegue explicá-las com facilidade para os telespectadores. Seguramente, é uma das profissionais mais qualificadas da Globo. É provável que seja uma das jornalistas com formação intelectual mais ampla da Globo.

Maju Coutinho começou como “moça do tempo” e conquistou o país, tanto pela beleza e empatia quanto pela competência. As notícias do tempo, na sua apresentação, deixaram de ser burocráticas. Deu tão certo que começou a apresentar o “Jornal Hoje” aos sábados e, em seguida, se tornou a apresentadora-titular. Sua evolução é perceptível e já fala muito melhor do que quando comentava as intempéries. Maju tem sido vítima de racismo.

Lilian Ribeiro é repórter e eventualmente apresenta um telejornal da GloboNews. Jovem, é uma profissional segura, atenta.

Aline Midlej não é apenas um rosto bonito. É uma apresentadora segura, expressa-se muito bem e também sabe comentar.

Zileide Silva é uma das mais completas repórteres da Globo (é repórter especial). Segura, sempre precisa e fala muito bem. Na GloboNews, é uma comentarista que, se não excede, é posicionada, crítica. Procura fundamentar o que diz para além da mera opinião. É craquíssima.

Heraldo Pereira é um dos grandes jornalistas da Globo e um diplomata nato. Ele sabe que seu papel é o de apresentador, mas tem competência para comentar os fatos. Deveria fazê-lo com mais frequência.

No dia do programa histórico, só com negros no ar, Heraldo Pereira se emocionou. Ele contou que começou a trabalhar cedo, com 8 anos, depois se tornou office-boy, até ser contratado, ainda bem jovem, como radialista. Ao final do programa, ele, sempre glacial, teve de fazer muita força para não chorar. Quase não conteve a emoção. Não deixou de afirmar que ele e as colegas são vencedores. E são mesmo. Num país que teve escravidão, em que o trabalho era visto como uma coisa indigna — alguns ainda devem aceitar isto —, os negros eram considerados cidadãos de segunda classe. Mas eles não aceitam mais o preconceito, lutam contra ele e se afirmam, cada vez mais, na sociedade.

Filha de um policial militar, Lilian Ribeiro contou que estudou numa universidade do Rio de Janeiro pelo sistema de cotas. A jornalista admitiu que, por ter a pele mais clara, o racismo a atinge menos. Talvez seja mais discreto.

A avó paterna de Maju era empregada doméstica. A mãe, Vilma, estudou em escola pública e se formou na Universidade de São Paulo, uma das melhores do país. Ao final de sua fala Maju fechou uma mão, simbolizando o “poder negro”. A apresentadora conta que ouviu de mulheres negras que temem ter filhos, porque terão que colocá-los num mundo hostil.

O pai da maranhense Aline Midlej, baiano, é mestre de obras, e é um leitor de jornal que cobra dela estar sempre bem informada. A mãe é pernambucana e estudou até o ensino médio. O pai investiu muito na sua educação. Ao falar sobre a necessidade de combater o racismo, Aline disse: “Sinta. Ouça, Repense. Ouça o que os negros têm a dizer”. Ela disse que “não adianta dizer que não é racista. Tem de ser antirracista. A luta contra o racismo é de todos. A morte de João Pedro tem de nos colocar nas ruas”. Depois, frisou que, devido à pandemia, deve-se ao menos manifestar-se nas redes sociais.

Flávia Oliveira estudou em escola pública, no subúrbio de Irajá, e se formou na Universidade Federal Fluminense, um centro de ensino de qualidade. Na sua fala, mencionou Martin Luther King e Angela Davis. Não deixou de lembrar de Machado Assis, pois o maior escritor brasileiro é negro. Frisou que os americanos, que estão nas ruas por causa do assassinato de George Floyd, querem mudança. Não mudança cosmética, e sim mudança real, sólida. Sublinhou que o presidente Donald Trump não quer dialogar. O ex-presidente Barack Obama diz, registra a jornalista, que é preciso ouvir o povo

Sergipano, o pai de Zileide Alves era mestre de obras. Ele disse à filha que educação era a única herança que lhe legaria. Ela e os irmãos estudaram em escolas públicas. Estudou História na USP. A mãe trabalhava em casa.

Depois do programa especial, “Rapaziada… A pauta é racismo”, a GloboNews manteve Zileide Silva e Flávia Oliveira como comentaristas do “Em Pauta”. Maju (Globo) e Aline continuam como apresentadoras, assim como Heraldo Pereira, o titular do “Jornal das 10”. Lilian Ribeiro está bem, cada vez mais firme como repórter e apresentadora. Os seis profissionais fizeram o “Em Pauta” mais interessante do ano. Aposto que João Pedro e George Floyd (se falasse português), se vivos fossem, aprovariam o programa.

Ali Kamel e outros editores deram “força” para os seis profissionais porque são negros e a GloboNews, assim como a Globo, quer fazer média com a sociedade brasileira, dizendo-se conectada? Nada disso. Os jornalistas venceram pelo esforço pessoal, pela competência. A Globo demonstrou sensibilidade. Fez o justo.