Noé Freire Sandes: a história de uma geração
17 setembro 2020 às 19h45
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Noé dizia que a memória é lugar de acolhimento, a casa que construímos pra morar. A história é uma visita espaçosa, que tenta reorganizar a casa
Mayara Paiva
Especial para o Jornal Opção
Em 1981 o cantor Xangai lançou a música “Estampas Eucalol”, composta por Hélio Contreiras. Rapidamente a música tornou-se marca nas apresentações de Xangai, pois tais estampas fizeram parte da infância de uma geração inteira no Brasil. Em 1930, para impulsionar as vendas do Sabonete Eucalol, a empresa — que fora fundada no Brasil em 1917 pelo imigrante judeu Paulo Stern — lançou uma série de figurinhas que acompanhavam o produto. Logo as estampas caíram no gosto de crianças e adultos, pois, ao trazerem imagens sobre diferentes temas como mitologia grega, fatos históricos e aspectos culturais, levavam os colecionadores, não só a despertarem o interesse por leitura e por temas diversos, mas também a um movimento imaginativo, como retratado na música de Contreiras.
A canção apresenta a narrativa de um menino que, montado em seu cavalo, percorre diferentes caminhos entre suas experiências e suas expectativas. O menino trava, em seu percurso, diversas batalhas, mas retorna e traz consigo o que fora buscar, o afeto. As aventuras narradas têm como ponto de partida a sua coleção de estampas do Sabonete Eucalol, marcas da memória do compositor. Segundo Hélio Contreiras — como muitas crianças que colecionavam as figurinhas — as estampas fizeram parte de sua infância; eram imagens de um passado que, por ora, persistia como memória.
“Estampas Eucalol” foi a última canção que permaneceu na memória do professor Noé Freire Sandes, que faleceu no último dia 8 de setembro, numa terça-feira. Apesar de não conseguir mais estabelecer relações entre passado, presente e futuro — devido a uma doença congênita degenerativa — o conceituado professor da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás relutava em esquecer a música de Hélio Contreiras. Foi sua última canção; depois, profundo silêncio.
A música — uma viagem cheia de aventuras — ligava o menino ao homem, era o ponto de negociação que contribuía para a acomodação do tempo entre experiência e expectativa. Tateando em busca de marcas do vivido, a canção evidenciava os resquícios da, então frágil, relação entre passado, presente e futuro. Gradativamente, conforme o tempo ia desfazendo suas dobras e vicissitudes que conectam o vivido e o esperado, Noé Sandes foi se tornando prisioneiro do presente. Exilado no tempo-agora. Diante de sua experiência, o passado perdera o sentido, tornando-se “lugar nenhum”? A vinculação, isto é, a seiva que liga a memória e a História estaria rompida? Sem sombra de dúvidas, essas eram algumas das principais questões que o professor lançava em suas instigantes aulas de História na Universidade Federal de Goiás. A recorrente preocupação com a “tradição das lembranças”, ao longo de sua carreira de mais de três décadas, tornou-se parte de sua trajetória.
Estampas Eucalol
Montado no meu cavalo
Libertava prometeu
Toureava o minotauro
Era amigo de teseu
Viajava o mundo inteiro
Nas estampas eucalol
A sombra de um abacateiro
Ícaro fugia do sol.
Subia o monte Olimpo
Ribanceira lá do quintal
Mergulhava até netuno
No oceano abissal
São Jorge ia prá lua
Lutar contra o dragão
São Jorge quase morria
Mas eu lhe dava a mão
E voltava trazendo a moça
Com quem ia me casar
Era minha professora
Que roubei do Rei Lear.
O professor Noé Freire Sandes contribuiu profundamente para a formação de uma geração de historiadores em Goiás. Dizia-se prisioneiro do tema acerca da relação entre memória e História. Sem cair em relativismos, tentava evitar os extremos, as dicotomias, maniqueísmos e enquadramentos rígidos; afirmava que, muitas vezes, o que é emoldurado, controlado por uma operação, poderia perder a conexão com a “vida viva”. Sua preocupação era como podemos nos aproximar do passado, isto é, como o historiador poderia escrever a História sem descolar o narrado do vivido e, ao mesmo tempo, sem perder — diante da operação historiográfica — as marcas da vivência que, apesar de muitas vezes intraduzíveis pela linguagem, podem promover a “sensação” do reconhecimento da experiência. Assim como os famosos biscoitos, madeleines, do escritor francês Marcel Proust na obra “Em Busca do Tempo Perdido”, existem estímulos no presente que nos remetem ao reconhecimento das experiências. É fundamental que a História não perca de vista essa “seiva”, mesmo submetendo-se a uma operação.
Dentro dessa perspectiva, o professor Noé instigava seus alunos e orientandos a pensarem as relações, negociações e possibilidades; a se colocarem na fronteira, isto é, no ponto de encontro. Nesse sentido, costumava questionar: como não tornar o passado “terra estrangeira”? Como escrever História sem torná-la moldura morta ou um souvenir que já não faz sentido no presente? Era necessário ter em vista o ponto que garantisse o vínculo entre o vivido e o narrado; como a sensação intrínseca do retorno para casa após uma longa viagem.
Memória e História
Noé Sandes costumava dizer que a memória é lugar de acolhimento, abrigo, é a casa que construímos para morar. A História, por sua vez, é uma visita espaçosa, cheia de perguntas e dúvidas, intrusa que tenta reorganizar a casa. Em meio à negociação e diálogo entre anfitriã e visita, a casa passa por rearranjos, se transforma para acolher o outro, entretanto, sem abandonar totalmente o que fora. Na intimidade da casa (a memória) dialogamos com a visita espaçosa (História) que remenda, costura, descostura e redefine o espaço para que possam co-habitar, manter o seu elo e proteger-se da frieza da passagem do tempo.
Foi buscando o ponto de negociação entre memória e História que Noé Freire Sandes conduziu suas principais pesquisas realizadas ao longo da brilhante carreira na Faculdade de História (UFG). Sempre em busca de linhas tênues e de diálogos, realizou importantes pesquisas que envolviam o debate sobre a nação e a região, isto é, pesquisas com o foco na formação de uma memória política da nação, bem como a formação de uma memória regional.
Com uma contribuição de fôlego para a historiografia nacional e regional, o professor Noé dava início, quando se afastou das atividades acadêmicas, a um projeto de pesquisa envolvendo a Assembleia Nacional Constituinte de 1946. Projeto embrionário que demarcou um momento em que, tanto em sua trajetória pessoal quanto profissional, o futuro ganhava peso. A inflação do futuro evidenciou o que o professor tanto perseguia em suas pesquisas e aulas: é possível viver sem passado?
Sem as marcas do passado, Noé exilou-se no presente. Por meses, o silêncio do professor evidenciava que passado, presente e futuro não conseguiam mais estabelecer relações. Todavia, ao ouvir “Estampas Eucalol”, o professor, mesmo em silêncio, reconheceu o passado. Por instantes restabeleceu a conexão entre o menino e o homem, entre o vivido e o esperado. Por fim, nos ensinou mais uma lição: existem marcas que permanecem no tempo, marcas que nos vinculam ao passado, que podem ser sentidas, mas dificilmente traduzidas. Tais marcas promovem o reconhecimento da experiência, a sensação do vivido, o retorno para casa após as aventuras enfrentadas no percurso de uma longa viagem. Noé partiu deixando família, amigos, colegas e uma geração de historiadores. Certamente o sutil professor será lembrado como aquele que se posicionou entre a memória e a História.
Mayara Paiva é doutora em História.