No início da década de 80, a revista esportiva Placar publicou em sua capa uma foto de uma jovem de biquíni com a chamada “Boa de basquete, boa de tudo”. Era a armadora Paula, então revelação da seleção brasileira, estampando a publicação pela primeira vez. A revista seguiu também com publicações explorando o corpo de belas mulheres até o fim da década de 90.

Hoje uma das referências progressistas no Brasil, principalmente nas questões racial e de gênero, a Rede Globo teve em sua grade inúmeros programas que atentavam contra os valores que hoje lhes serve de bandeira. Programas de humor tiveram, até a primeira década deste milênio, conteúdos sexistas, homofóbicos e misóginos. Se o controle remoto mudar de emissora, provavelmente encontrará conteúdos noticiosos e de entretenimento que ainda hoje flertam com essas questões.

O mundo mudou muito nas últimas décadas. Mais do que isso, a velocidade das mudanças tem sido acelerada nos últimos tempos, principalmente por conta das redes sociais. Sendo assim, algo que hoje é impensável, há dez anos passaria batido pelos noticiários.

O caso do treinador Cuca, demitido do Corinthians por causa da condenação por um estupro coletivo em que se envolveu na Suíça em 1987, com mais três atletas do Grêmio, quando ainda era jogador, leva a uma pergunta: por que só agora?

Uma pergunta pertinente. Se for por uma via simples de resposta, esta seria: porque o técnico agora encontrou diante de si a torcida mais tradicionalmente militante em termos de direitos humanos. Queiram os adversários ou não, a Fiel, como é conhecida, pelo menos desde os anos 80 está presente em grandes causas.

Desde a Democracia Corintiana, criada pelo elenco que tinha Sócrates, Casagrande, Vladimir e Biro-Biro, entre outros líderes, o clube está envolvido de alguma forma com questões nacionais de política e cidadania. Pelo menos em duas vezes durante o governo Bolsonaro, corintianos foram protagonistas: quando, durante a pandemia, se intensificaram manifestações antidemocráticas incentivadas pelo ex-presidente e a oposição estava recolhida em casa por conta das medidas de isolamento social, as torcidas organizadas paulistas, comandadas pelos alvinegros, foram para a rua e mostraram força de mobilização, freando a ascensão da extrema direita naquele momento.

Depois, quando bolsonaristas começaram a fechar estradas para protestar contra o resultado legítimo das urnas do segundo turno, novamente a Gaviões da Fiel fez o papel de agente da repressão e, com ônibus a caminho do Rio de Janeiro para empurrar o Corinthians em um jogo decisivo, “dissolveu” um dos pontos de bloqueio, colocando os manifestantes golpistas para correr.

Outro ponto é que o time feminino de futebol do Corinthians é o atual campeão brasileiro. As jogadoras do clube se colocaram em atitude de protesto desde o anúncio da contratação de Cuca.

Eis então, um dos porquês de o treinador ter sido cancelado “apenas” agora: ter sido contratado por um clube em que questões sociais importam bem mais do que a média das demais agremiações.

Cuca calculou mal a reação que teriam sobre seu passado. Para um treinador de futebol, ele está numa faixa etária que lhe proporciona o auge, com muito conhecimento e experiência acumulados e ainda com muita energia para a função, desgastante. Hoje tem 59 anos. O capítulo mais horroroso de sua vida ocorreu há 36 anos, quando era um jovem de 23. Um jovem. Porém, diante de uma garota de 13 anos, um homem pleno de consciência sobre seus atos e as consequências. O fato de nunca ter se acertado com essa história, de buscar se esconder por trás de uma cena criminosa coletiva, está cobrando um preço alto agora.

O que ele poderia ter feito, por si e pela carreira que construiu? No mínimo, ter observado o que vem acontecendo com personalidades que foram pegas por atos escandalosos que fizeram no passado, em diversas áreas (Kevin Spacey, no cinema, e Boaventura Santos, nas ciências humanas, são apenas dois de vários exemplos) e se antecipado.

Talvez uma assessoria de imagem lhe ajudasse a descobrir o caminho das pedras para não cair no redemoinho: antes que fosse provocado pela iminente detonação da bomba-relógio que armou para si, Cuca deveria ter vindo a público e colocado, após convocar a imprensa para uma entrevista coletiva – outra alternativa, talvez, seria um depoimento exclusivo a um programa como o Fantástico –, para expor seu “mea culpa”. Ter a esposa ao lado o ajudaria, quem sabe, a ser perdoado, desde que se arrependesse dos dois atos escandalosos – o crime em si e a fuga da condenação – e que anunciasse alguma forma de reparação, como prestação de serviços a alguma fundação que luta contra abusos sexuais ou pelo direito das mulheres.

O que será da carreira de Cuca, agora? Uma incógnita. Pelo nome que tem, fica difícil aceitar um clube de menor expressão – na ficha do treinador, desde 2006, só há passagens por grandes clubes do Brasil – e, mesmo em um deles, não se saberia como o processo se daria. A saída em curto prazo talvez seja algo como fez entre 2014 e 2015, quando esteve no futebol chinês: trabalhar no exterior.

No fim, além do próprio treinador, erraram quase todos: a diretoria do clube, que não entendeu que, antes de buscar um profissional que traga rendimento desejado em campo, precisa olhar para sua própria história; os jogadores do elenco, que correram para abraçá-lo após seu segundo e último jogo no comando do Corinthians e acabaram por avalizar, assim, as justificativas do treinador; e a imprensa, que apurou muito porcamente toda a história, a ponto de se tornar um furo uma entrevista com o advogado da vítima do caso.

Salvou-se a torcida, que, por meio da movimentação nas redes sociais – e de protestos presenciais, também –, “passou uma risca” em relação à ficha que deve ser observada na contratação de novos quadros: abusadores não entram.