Nada mais “velho” do que manter parentes no governo ou nas proximidades dos palácios
24 fevereiro 2019 às 00h00
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Parente é serpente? E não tem a ver com só com a prole de Bolsonaro. Parentes no governo, como símbolo de confiança, são a coisa mais arcaica do mundo
O novo tem uma tradição. O que sugere que o novo é um composto de si, o novo, com o velho, que um dia foi novo. Mas o novo-novo mesmo não existe. Por isso é preciso falar na tradição do novo.
No Brasil, as famílias dos governantes estão quase sempre presentes, às vezes mandando e, na maioria das vezes, desmandando.
Ao menos um irmão do presidente Getúlio Vargas, Benjamin Vargas, conhecido como Bejo, envolveu-se em problemas pouco católicos, em termos de probidade, e teria articulado o assassinato de Carlos Lacerda (o pistoleiro feriu o político num pé e matou um oficial da Aeronáutica, o major Rubens Vaz). Getúlio Vargas era decente, em termos financeiros, mas a corrupção grassava no seu entorno — menos do que se dizia, mas era fato. Não era o mar de lama denunciado por Lacerda, com o apoio dos magnatas da imprensa Roberto Marinho e Assis Chateaubriand. Era um riacho, quase rio. Mas mesmo um riacho pode contaminar o rio e, até, o mar.
O presidente Juscelino Kubitschek fazia, aqui e ali, um certo tráfico de influência? É provável. Um de seus genros não era flor que se cheirasse? Talvez. O fato é que, no geral, JK era um estadista e, sim, decente. O presidente Ernesto Geisel, num livro de entrevista organizado pela Fundação Getúlio Vargas, lamenta ter participado da campanha para cassar o político mineiro. Mas havia um riacho de corrupção no governo? Por certo, embora não fosse sistêmico, havia — como há, quiçá, em qualquer governo.
O presidente Castello Branco, ao saber que um irmão havia recebido um carro de presente dos colegas — nem era corrupção —, o exonerou. O baixinho de cabeça chata era intransigente: não roubava e não deixava roubar. Vivia de maneira espartana, com o salário de general.
O presidente Ernesto Geisel chegou ao poder graças, em parte, aos esforços de seu irmão, Orlando Geisel, que era ministro do Exército do governo de Emilio Garrastazu Médici, e ao fato de o general João Figueiredo ter informado que Ernesto estava afastado do general Golbery do Couto e Silva (não estava, tanto que o Bruxo foi o primeiro a ser nomeado para o governo; Médici detestava Golbery). O general Orlando, por ter sido avalista da indicação, acreditou que continuaria no comando do Exército, mas Ernesto não titubeou e o vetou, não porque o considerasse incompetente, e sim porque era seu irmão, e não considerava legítimo manter um parente no governo. E, se fosse o caso, como demitir um parente? Orlando e Ernesto ficaram sem conversar. O presidente não nomeou ninguém de sua família para cargos do governo. Era um homem de uma decência rara. Quando morreu, tinha 200 mil reais na poupança. Dinheiro dele, poupado.
O presidente Jair Bolsonaro, se aprecia Olavo de Carvalho, que nunca deve ter lido, possivelmente não gosta da leitura de livros de história e biografias. A de Tancredo Neves poderá ajudá-lo, assim como o excelente “A Ditadura Derrotada, particularmente o capítulo “O sacerdote e o feiticeiro”. O sacerdote é Geisel e o feiticeiro, Golbery. Lendo sobre a história recente, o presidente compreenderá como o poder, assim como a vida, é provisório — todos os indivíduos passam —, mas a história é eterna. Como ele quer ficar na história? Como o presidente que levou parentes para o governo (mesmo não nomeados, são onipresentes e “onifalantes”), permitindo que as razões de Estado sejam sobrepujadas pelas razões privadas-familiares? Os generais Hamilton Mourão e Augusto Heleno, grandes leitores, deveriam orientar o “oficial”. Enquanto há tempo. Porque quatro anos — e mesmo oito anos — não é a eternidade.
Parente, em alguns casos, é serpente. E não tem a ver com só com a prole de Bolsonaro. Parentes no governo, como símbolo de confiança, são a coisa mais arcaica do mundo.