Historiador morto na terça-feira, de doença degenerativa, era o compartilhamento em pessoa, a lição em generosidade, a pesquisa como obra

Nilson Gomes

Os tempos estão difíceis e, aqui, a culpa não é do coronavírus com suas 130 mil mortes e milhões de sequelas. A ruindade atual vem da falta de conhecimento, que o povo sabiamente batizou de burrice. Aposentado com relutância por sofrer de uma doença degenerativa, o professor Noé Freire Sandes talvez tivesse sua dor aumentada ao ler os posts com a intolerância dos idiotas. Nóe Freire morreu nesta terça-feira, 8.

Sua ausência deixa o mundo muito pior, assim como suas aulas, suas pesquisas e sua produção intelectual escrita tornaram melhor a convivência entre os divergentes, pois a qualidade do trabalho pacificava a encrenca, mesmo que o objetivo fosse o debate. Em sua arca de alianças caberiam, como couberam, mentes de todas as origens e conclusões. O professor, em vez de doutriná-las, as nutria de conhecimento. Era um homem para se curtir, porque compartilhava.

Noé Freire, professor da Universidade Federal de Goiás | Foto: Reprodução

Os tempos estão dificílimos e piorando. Alguns milhares de militantes do nada dividem o Brasil entre os fanáticos por Lula e Bolsonaro, no que chamam de esquerda e direita, sem sequer conseguirem conceituar o que são uma e outra. Os tempos se tornaram mais difíceis e, portanto, piores porque nestes três anos conflagrados o professor Noé Freire Sandes estava forçosamente fora da cátedra. Não sem produzir, claro, pois as conversas entabuladas eram mais frutíferas que a média das teses de doutorado e mestrado pululando por aí — evidentemente, não as por ele orientadas.

Ateus e crentes ou essa nova divisão, lulistas e bolsonaristas, precisavam ter mais Noés Freires, menos Robertos Freires; mais historiadores, menos usurpadores da História.

Noé Freire deixa vasta bibliografia, mas faz falta desde que oficialmente entrou na inatividade, ainda que tivesse continuado a espalhar o que aprendeu. Generosamente, em cursos de graduação e pós, dividiu-se em cérebros capazes de o multiplicar.

Daqui a uns dias ou décadas, as pessoas abjetas objeto da beligerância atual serão apenas trending topics de uma era em que existiam trending topics, quando vicejou um presidente laranja (caaaaalma, a referência é ao pato Donald Trump). E Noé Freire Sandes continuará sendo citado quando se pretender aval de qualidade a uma criação.  Lula e Bolsonaro serão apenas itens para menino odiar como Rodrigues Alves ou Epitácio Pessoa — enquanto houver quem ensine História do Brasil mandando a molecada memorizar lista de autoridades.

Todos seriam bem-vindos à socialização (caaaaaalma) da sabedoria também chamadas de aula ou orientação de Noé Freire Sandes. Deixou-nos numa época em que, mais do que sempre, era imprescindível. Felizmente, graças à dedicação nas mais diversas modalidades de salas de aula, é provável que quadros do seu naipe se multipliquem, não desapareçam. Que a cada lulista e bolsonarista fanáticos que surgirem, brotem uma UFG e uma PUC coalhadas de Noés Freires Sandes.