Morre Eurico Barbosa, ex-presidente do TCE e ex-deputado: um homem chamado decência

14 junho 2024 às 10h39

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Eurico Barbosa dos Santos era um gigante mignon. Como assim? Era pequeno no tamanho. Mas um Hércules da palavra. Como deputado na Assembleia Legislativa de Goiás, em plena ditadura civil-militar, fazia discursos que empolgavam as plateias e impressionavam seus colegas. Por quatro motivos básicos.
Primeiro, o bacharel em Direito pela UFG Eurico Barbosa — o Euriquinho que, quando falava, se tornava Euricão — falava muito bem, estilista da Língua Portuguesa que era. Segundo, seus discursos não eram mera oratória — tinham conteúdo forte e articulado. Terceiro, não tinha receio de enfrentar qualquer polêmica. Era dotado de imensa coragem (não tinha medo, por exemplo, dos coturnos dos generais e vivandeiras civis) e de uma franqueza sem concessões. Quarto, por ser um homem decente, era inatacável.

Democrata nato, mesmo quando pertenceu à UDN (um ninho de golpistas e demolidores da democracia; Jair Bolsonaro, por exemplo, é subproduto do udenismo), Eurico Barbosa se tornou um crítico contundente da ditadura civil-militar. Na década de 1980, aproximou-se do Bloco Popular do MDB e se elegeu deputado estadual. Assim como o deputado federal Aldo Arantes, que, com o Partido Comunista do Brasil então na ilegalidade, havia se filiado ao partido de Henrique Santillo, Fernando Cunha, Juarez Magalhães, Juarez Bernardes, João Divino Dornelles. Ou seja, no MDB.
Do Legislativo, onde fez história, como um dos parlamentares mais atuantes — pelas ideias e posicionamentos —, Eurico Barbosa foi para o Tribunal de Contas do Estado de Goiás. Lá, como na Assembleia e na vida de intelectual, brilhou como conselheiro, chegando à presidência. Eu e José Maria e Silva o entrevistamos várias vezes, inclusive na antiga sede do TCE, na Praça Cívica.

Numa das entrevistas, Eurico Barbosa, cercado de símbolos do Flamengo, nos falou de sua paixão pelo time no qual, durante anos, brilhou Zico, o Galinho de Quintino. Para o notável intelectual, o Flamengo era o James Joyce e o Guimarães Rosa do futebol. O verdadeiro fim da história, digamos assim.
No TCE, como em tudo que fazia, Eurico Barbosa era conhecido pela seriedade e competência de seus pareceres. Para ele, o interesse público estava acima de quaisquer outros. Era inegociável. Nada o intimidava, em nenhuma circunstância. Porque, quando o observavam, as pessoas não viam um homem pequeno, em termos físicos, e sim um gigante. Como se disse acima, um Hércules da palavra e dos atos.

Nos jornais, que eram uma espécie de casa de Eurico Barbosa, notabilizou-se não como repórter, e sim como articulista — dos mais polêmicos, intimoratos e cultos (ele sabia quando outros articulistas estavam dizendo bobagens pomposas a respeito de figuras históricas ou livros). Durante anos, ele escreveu no “Diário da Manhã” e no Jornal Opção (era amigo do fundador do jornal, Herbert de Moraes Ribeiro, que tinha imenso apreço pela lisura de Euriquinho).
Pesquisador de primeira linha, Eurico Barbosa era membro da Academia Goiana de Letras (AGL), que amou muito, assim como amava o Flamengo e os filhos (pelos quais tinha um carinho imenso).
A biografia que Eurico Barbosa escreveu de Pedro Ludovico, o interventor-governador de Goiás, não é alentada, mas é útil, como ponto de partida, para pesquisadores. Trata-se de um ensaio biográfico, por assim dizer. Praticamente um documento.
“Confissões de Generais”, sobre a ditadura civil-militar — e Eurico Barbosa jamais deixou de ressaltar o caráter civil da ditadura (por exemplo, no planejamento, no setor fazendário e no campo da formulação da legislação) —, é, quem sabe, seu melhor livro. Nele percebe-se o pesquisador atento aos documentos, dados e bibliografia e, ao mesmo tempo, o narrador fluente.
Eurico Barbosa era um combatente daqueles que atacam a democracia, mas, sobretudo, era um pesquisador consciencioso. Então, se condenava a ditadura, procurava compreendê-la e explicá-la da maneira mais ampla possível.
Durante anos, compartilhamos a mesma oftalmologista, Lívia Carla Bianchi. Ele quase não enxergava e, mesmo assim, insistia em ler. Usava óculos, até lentes, mas não desistia. Um parente chegava a digitar seus textos. Pode-se sugerir que, entre as suas muitas qualidades, havia mais esta: a de não desistente. As intempéries da vida eram enfrentadas, todos os dias, com uma coragem inaudita. Era um resistente.
Mesmo velho, em termos de idade, Eurico Barbosa permaneceu jovem, com uma mente aberta ao novo. Apreciava jornais, livros e uma boa conversa. Há pouco tempo, eu, ele, Aidenor Aires e Hélio Moreira almoçamos no restaurante Contemporane (que mudou de nome). A conversa foi agradável, sobre cultura e, aqui e ali, sobre política. Eurico Barbosa era atento a tudo. Não se dobrava.
A família Barbosa dos Santos — de Morrinhos, uma das Atenas de Goiás (ao lado de Silvânia, Inhumas, Cidade de Goiás e Catalão) — deu ao país um escritor, crítico literário (sabia tudo e mais um pouco de Monteiro Lobato e Guimarães Rosa) e biógrafo (do autor de “Grande Sertão: Veredas”) de primeira linha. Falo de Alaor Barbosa.
Eurico Barbosa — nos tempos de antanho se dizia “um varão de Plutarco” — morreu na sexta-feira, 14, aos 91 anos.