Mentira ou prevaricação? Damares Alves na mira do 8º mandamento

16 outubro 2022 às 00h00

COMPARTILHAR
A eleição direta, com sufrágio universal, é o modo mais perfeito que a democracia liberal já concebeu. Natural, por seu caráter aberto, que as campanhas envolvam componentes sociais e culturais na disputa. Entre eles, a religiosidade é algo mais ou menos importante, dependendo do país: na Suécia, discutir o tema com certeza será menos importante do que no Brasil, o que é um tanto óbvio.
Foge à naturalidade, porém, o que está ocorrendo nas eleições gerais de 2022, especialmente na campanha presidencial. Na verdade, a cada quatro anos a coisa parece desandar mais um pouco mais. A religião, desde 2010 – quando a campanha de José Serra (PSDB) acusou Dilma Rousseff (PT) de ser abortista –, tem se tornado cada vez tema protagonista dos debate políticos nacionais. Nos últimos, no entanto, esse descarrilamento do debate rumo à discussão religiosa está mais acentuado.
Desde a pré-campanha de 2018, Jair Bolsonaro (PL) primou por fazer da religião sua principal base de sustentação, o que continuou em própria gestão. O tema da campanha era “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”; o lema, o versículo 32 do capítulo 8 do Evangelho de São João, “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
Evangélicos amam versículos e os bolsonaristas sabem disso. Não poderia haver porta de entrada melhor para acessar um movimento tão poderoso do que essa estratégia.
Claro, escolhe-se o versículo que se queira. O que é um problema, pois a Bíblia tem mais de 30 mil versículos. Um, importantíssimo e que parece um tanto esquecido na corte presidencial, é o 16 do capítulo 20 livro do Êxodo (Ex 20, 16): “Não darás falso testemunho contra o teu próximo”. É esse o oitavo mandamento do Decálogo entregue por Deus a Moisés e anunciado ao povo hebreu, segundo as Escrituras.
No sábado, 8, a ex-ministra e senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF) veio a Goiânia na companhia da primeira-dama Michelle Bolsonaro. Ambas evangélicas, não poderia ser outro o destino: fazer campanha política dentro de uma igreja. Foi no templo da Assembleia de Deus, Ministério Fama, da Vila Paraíso, na região de Campinas, um bairro que é curiosamente mais antigo do que a capital, que a futura parlamentar expeliu palavras que tomariam a semana seguinte por inaugurar um novo marco na antiética eleitoral.
Veja a íntegra do trecho que a pastora-política relata uma das cenas mais terríveis que certamente já foram descritas do púlpito de uma igreja:
“Fomos para a Ilha do Marajó (sic) e lá nós descobrimos que nossas crianças estavam sendo traficadas por lá. Marajó faz fronteira com o mundo, Suriname, ‘Guiânia’ [ela se refere a Guiana, país do norte da América do Sul, como Suriname]. Eu vou contar uma coisa para vocês que agora eu posso falar: nós temos imagens de crianças nossas, brasileiras, com 4 anos, 3 anos, que, quando cruzam as fronteiras, sequestradas, os seus dentinhos são arrancados para elas não morderem na hora do sexo oral. Essa nação que a gente ainda tem, irmãos! Nós descobrimos que essas crianças, elas comem comida pastosa, pro intestino ficar livre, para a hora do sexo anal. Bolsonaro disse ‘nós vamos atrás de todas elas’ e o inferno se levantou contra esse homem. A guerra contra Bolsonaro, que a imprensa levantou, que o Supremo levantou, que o Congresso levantou, acreditem, não é uma guerra política, é uma guerra espiritual. E eu estou falando com a minha igreja, e eu tenho o manto constitucional para me expressar dentro da minha igreja. Têm coisas que eu não posso falar lá fora, mas aqui eu tenho a liberdade constitucional de manifestar a minha fé. Continuei abrindo as gavetas do ministério e descobri, irmão, o horror: eu descobri que nos últimos sete anos no Brasil explodiu o estupro de recém-nascidos. Nós temos ministérios, irmãos, de crianças de 8 dias sendo estupradas! Nós descobrimos que um vídeo de estupro de crianças custa entre 50 [mil] e 100 mil reais. Tem um crime organizado envolvido nisso. Tem sangue, tem morte, tem sacrifício. E Bolsonaro se levantou contra todas essas potestades. A gente agora é como igreja. A gente tem aqui uma decisão pra tomar: a gente vai continuar esta luta e tirar essas crianças da mão de Moloc ou nós vamos entregar esta nação?”
Começando pelo fim, Moloc era um deus cultuado pelos amonitas. Segundo o Levítico, livro bíblico do Velho Testamento, os rituais de adoração ao deus incluíam atos sexuais e sacrifícios de crianças. Está quase explícito, no discurso da pastora-senadora, que, na luta do “bem” contra o “mal”, conclamada por Bolsonaro, iniciada no primeiro turno e ainda mais focalizada no segundo, votar em Lula seria cultuar Moloc.
Mas, por mais absurdo que seja, o menor dos crimes e – também, dentro do que diz o cristianismo, principalmente sobre o oitavo mandamento – o menor dos pecados de Damares foi a insinuação sobre alguma ligação entre Lula e o mal. Essa, com certeza, o petista já tem o lombo calejado desde 1989, com a difamação de seu então adversário Fernando Collor, para absorver.
Damares aplicou em Goiânia a cartilha do movimento QAnon, que tem a pedofilia como tema principal de uma teoria conspiratória global
O estarrecedor é saber, pela boca da própria Damares, que uma autoridade ou mentiu ou prevaricou, na melhor das hipóteses; ou as duas coisas ao mesmo tempo, na pior delas.
Na realidade, o que Damares fez em Goiânia, na verdade, foi aplicar a cartilha do movimento QAnon, que tem a pedofilia como tema principal de uma teoria conspiratória global. Em suma, o QAnon é uma das principais bases de apoio do ex-presidente Donald Trump, e consiste em crer ser ele é o líder que está travando uma guerra secreta contra os pedófilos adoradores de Satanás do alto escalão do governo dos Estados Unidos, do mundo empresarial e da imprensa. Ou seja, o Moloc da vez por lá é Joe Biden.
A descrição feita no templo, diante inclusive de crianças, é de surreal horror que poderia se remeter a clássicos do cinema do gênero. São ditas, no entanto, diante de uma multidão de cristãos que se escandalizam com o relato sem duvidar da fonte – afinal, é a “pastora Damares” falando, como ela mesmo avisa, não a senadora. A voz de autoridade se impõe.
Só que da igreja para fora a coisa não funciona bem assim. O discurso repercutiu, obviamente, e o Ministério Público Federal (MPF) do Pará cobrou do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, do qual Damares foi titular, detalhes sobre as declarações. O retorno: as informações dela seriam baseadas em “numerosos inquéritos já instaurados que dão conta de uma série de fatos gravíssimos praticados contra crianças e adolescentes”. Ocorre que nem o MPF nem a Polícia Civil paraense tiveram registro nos últimos 30 anos de alguma denúncia sobre tráfico de crianças na Ilha de Marajó com as torturas citadas por Damares.
Na quinta-feira, 13, no entanto a senadora eleita mudou a prosa: já não falava mais em “imagens”, mas disse que ouvira “nas ruas” os relatos que contou sobre estupro, sequestro e tortura de crianças no Pará.
No momento, e até antes de ser diplomada, Damares Alves é uma cidadã comum, sem foro privilegiado. Processos contra ela correrão na primeira instância, portanto. A despeito de saber que dificilmente ela não assumirá seu mandato, é preciso estar toda a população avisada de que não haverá só uma Damares no próximo Congresso Nacional: há muita gente disposta a mentir tanto e tão bem que consiga acreditar na própria falácia.