Os admiradores de Edgar Allan Poe certamente não vão gostar da heresia, mas Mencken diz que Bierce “escrevia melhor”. “Tinha mais pulso sobre os personagens, era menos literário e melhor observador”

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Na apresentação de sua tradução do conto “A janela vedada” (publicado na coletânea “Contos de Horror do Século XX”, escolhidos por Alberto Manguel, Companhia das Letras), o poeta Nelson Ascher diz que, como escritor, o americano Ambrose Bierce (1842-1914?) “nunca abandonou o gosto pela linguagem precisa, observação aguda, expressão concisa e, sobretudo, pela ironia corrosiva”. Ascher escreve que “o fim do escritor não destoou do restante de sua trajetória. Em 1913, com 71 anos de idade, o gringo viejo (título também de um filme de 1989 sobre seus últimos dias [estranhamente, o tradutor não menciona o romance ‘Gringo Velho’, de Carlos Fuentes, publicado em 1985 e, de algum modo, responsável pela consolidação ou ampliação do mito do aventureiro solitário]) foi ao México, então em plena revolução, para — segundo alguns — unir-se às tropas de Pancho Villa ou — segundo outros — entrevistá-lo. Seja como for, não há, depois disso, notícias confiáveis sobre Bierce. Não se sabe onde e quando morreu”. Pode ter sido em 1913 ou 1914.

O escritor Braulio Tavares, na apresentação do conto “Um incidente na ponte de Owl Creek” (publicado na coletânea “Contos Fantásticos no Labirinto de Borges”, Casa da Palavra), diz que a prosa de Bierce é dotada de uma “ofuscante precisão”. Ele cita S. T. Joshi: “Nenhum escritor insistiu tanto quanto Bierce na necessidade de clareza, objetividade e racionalidade, tanto no pensamento quanto na escrita”. Apesar disso, segundo Tavares, “desprezava o Realismo, que ele definia como ‘a Natureza vista através dos olhos de uma rã’”.

Jacques Barzun, no seu admirável “Da Alvorada à Decadência — A História da Cultura Ocidental de 1500 aos Nossos Dias” (Editora Campus, 926 páginas), escreve: “… Ambrose Bierce, além de produzir esplêndidas histórias de guerra, escreveu prosa e verso em que os seres humanos e suas instituições são retratados como hipócritas e impostores. O seu ‘Devil’s Dictionary’ (‘Dicionário do Diabo’) fora corretamente intitulado, no começo, ‘The Cynicis Word Book’ (‘O Vocabulário do Cínico’)”.

A Companhia das Letras reedita o ótimo “O Livro dos Insultos” (259 páginas, seleção, tradução e posfácio de Ruy Castro), no qual o crítico americano H. L. Mencken esculhamba vacas sagradas da literatura universal. A pena de Mencken não trata Bierce mal, mas há ressalvas… precisas sobre sua prosa.

No ensaio, publicado em 1927 (guarda o frescor das obras que não morrem), Mencken diz que “quase todos os seus livros estão fora de circulação, exceto dois que me parecem pérolas: um deles consiste numa série de epigramas, chamado ‘O Dicionário do Diabo’; o outro consiste em algumas das melhores histórias de guerra já escritas, intitulada ‘Tales of Soldiers and Civilians’. O primeiro contém alguns dos mais brilhantes witticisms em língua inglesa; o segundo nada fica a dever a Zola, Kipling ou Ludwig Thomas”.

Bierce, avaliza Mencken, “foi o primeiro escritor de ficção a tratar a guerra com realismo. Antecipou-se inclusive a Zola”. Mencken, que conheceu o escritor, assinala que “ele extraiu de sua participação na guerra [Civil Americana, 1861-1865] não foi um horror sentimental a ela, mas uma espécie de cínico deleite. (…) O mundo via a guerra como algo heróico, glorioso, idealista. Pois bem, ele iria mostrar como ela era sórdida e suja, estúpida, selvagem e degradante, embora isso não queira dizer que ele a desaprovasse. Ao contrário, Bierce via na guerra uma oportunidade de ouro para discutir com maligna satisfação sua ideia fixa: a da infinita imbecilidade do homem. Não havia uma gota de leite de gentileza humana no velho Ambrose; ele não ganhou o apelido de ‘Bitter’ (amargo) Bierce por acaso. O que mais o deliciava na vida era o espetáculo da tolice e covardia do homem, o qual ele classificava, intelectualmente, entre uma ovelha e uma vaca e, como herói, ligeiramente inferior aos ratos”.

As histórias de guerra de Bierce, nota Mencken, “não descrevem os soldados como heróis; mostram-nos como bobos perdidos, fazendo coisas sem sentido, submetendo-se a violências e torturas sem resistir, e finalmente morrendo como porcos. Até hoje, de fato, nunca vi um cínico tão completo quanto Bierce. Sua descrença no homem era ainda maior que a de Mark Twain. (…) O homem, para ele, podia ser o mais estúpido e ignóbil dos animais, mas era também o mais divertido. Do espetáculo da vida que o cercava, tirava uma alegria implacável e gargantuesca. A farsa obscena da política o deleitava. (…) Rolava de rir só ao pensar em professores, médicos ou maridos”.

O escritor tinha um gosto especial pelo macabro. “Todos os seus contos o demonstram. Adorava assistir a enforcamentos, autópsias e dissecações. A morte, para Bierce, não era algo repulsivo, mas uma espécie de comédia vulgar — o último ato de uma bufonaria esquálida e barata”. Ao sugerir que as cinzas do filho de Bierce estavam guardadas numa bela urna, Mencken recebeu uma resposta ácida: “Urna o cacete! Guardo as cinzas numa caixa de charutos”.

Os admiradores de Edgar Allan Poe certamente não vão gostar da heresia, mas Mencken diz que Bierce “escrevia melhor”. “Tinha mais pulso sobre os personagens, era menos literário e melhor observador.”

Entre os epigramas de Bierce, que Mencken julga como dos melhores já escritos, figuram: “Ah, se pudéssemos cair nos braços das mulheres sem cair em suas mãos” e “A gíria é a fala de quem assalta as latas de lixo literárias, a caminho do esgoto”.

Depois dos elogios, as pancadas. Mencken diz que, como crítico literário, Bierce não era “consistente”. Faltavam-lhe leituras amplas e atentas. “Pôs Longfellow acima de Whitman. (…) Seu próprio estilo era extraordinariamente tenso e pouco elástico, e seu pavor à retórica parecia tirar a vida de suas ideias. Seus contos, apesar da eficiência melodramática, começaram a parecer antigos porque pertenciam a uma época em que eram escritos como exercício de estilo, e não como uma transcrição da vida. As pessoas neles não vivem nem respiram. (…) Os contos de Bierce são lidos hoje não como literatura, mas para provocar sustos. Alguns deles merecem uma espécie de melhor de imortalidade.”

Como crítico social, Bierce, apesar de divertido, não era profundo, mas, ressalta Mencken, “ele foi o primeiro a disparar, com o maior prazer, contra os blefes que infestavam o país. (…) Nenhuma cabeça era coroada o suficiente para escapar de suas bordoadas”.

O Mencken do aforismo

No romance “O Velho Gringo” (“Gringo Velho”, na tradução brasileira), o escritor mexicano Carlos Fuentes diz que Bierce “entrou no México em novembro [de 1913] e nunca mais se soube nada dele. O resto é ficção”. O coronel Frutos García, personagem do romance de Fuentes, diz: “O velho gringo veio ao México para morrer”. Havia trabalhado como jornalista nos Estados Unidos e na Inglaterra, escreveu prosa, poesia, ensaios e aforismos.

Obras de Bierce traduzidas no Brasil: “O Dicionário do Diabo” (publicado por duas editoras: Mercado Aberto e Tinta da China), “Visões da Noite — Histórias de Terror Sarcástico” (Record, 222 páginas, tradução de Heloisa Seixas), “No Coração da Guerra” (Artenova, tradução de Jurema Finamour. É uma coletânea de contos sobre a Guerra Civil americana). Outras traduções podem ser encontradas no site Estante Virtual (www.estantevirtual.com.br).

A obra mais conhecida de Bierce é “O Dicionário do Diabo” (Mercado Aberto, páginas). São aforismos endiabrados, na linha de Karl Kraus e Nelson Rodrigues. Pode-se dizer que Bierce era o Mencken do aforismo.

O sexto sentido do prosador americano

No conto “A Janela Vedada”, que tem um quê de conto de fada, sem fada, Ambrose Bierce relata a história de Murlock, um homem solitário que mora numa região erma. Quando sua mulher morre, Murlock prepara o corpo para enterrá-lo no dia seguinte. De repente, na escuridão da noite, aparece um vulto. O homem assusta-se mas recupera o controle (“há um ponto no qual o pavor se converte em loucura e a loucura instiga a ação”) e atira. Mata a pantera que tentava carregar o corpo da mulher aparentemente morta. O narrador conta que “havia entre os dentes um pedaço da orelha do animal”, como se tivesse mordido a pantera. Bierce não esclarece, ou esclarece ao seu modo, o que de fato ocorre. Como diz Nelson Ascher, a descrição é precisa. A imaginação talvez nem tanto, acrescento.

Outro conto célebre de Bierce, “Um incidente na ponte de Owl Creek” (publicado na coletânea “Contos Fantásticos no Labirinto de Borges”, seleção e apresentação de Braulio Tavares, Editora Casa da Palavra), ganhou tradução esmerada de Heloisa Seixas (a tradução de Lourival Gomes Machado, publicada na coletânea “Contos Americanos – Os Clássicos”, Ediouro, saiu com o título de “Uma ocorrência na ponte de Owl Creek”).

Na época da Guerra Civil Americana, o fazendeiro sulista Peyton Farquhar descumpre determinação do Exército e é condenado à forca na ponte de Owl Creek. Bierce mantém a história em suspense, contada a partir do ponto de vista de Farquhar, que imagina ter caído na água e, assim, escapado de seus captores. Ocorre que o senhor de escravos do Alabama estava morto. Lembra o Machado de Assis de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, sem o talento do brasileiro.

Ao contar as duas histórias, espero não ter atrapalhado o prazer dos possíveis leitores. Porque, se resumi os contos, inclusive os arremates, não dei seus detalhes. Carlos Fuentes, no romance “Gringo Velho” (página 149, edição da Dom Quixote, publicado com o título de “O Velho Gringo”), escreve: “Porque um homem pode estar ao mesmo tempo pendendo de uma ponte com uma corda ao pescoço, a morrer e a observar a sua morte do outro lado de um rio”. É uma referência ao conto citado aqui.