Marco Antônio Villa se torna juiz de João Goulart e esquece que é historiador
21 março 2019 às 11h19
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Pesquisador paulista julga e condena João Goulart, o Lula sem macacão, sem perceber que a tradição golpista no Brasil antecede a participação do gaúcho na política
“Jango — Um Perfil (1945-1964)”, do historiador Marco Antonio Villa (Editora Globo, 287 páginas), é excelente. Não é uma biografia de Jango, mas um estudo de sua participação política, com pitadas biográficas, do fim do Estado Novo à implantação da ditadura civil-militar de 64. Não há grandes revelações na obra, que, embora acadêmica no formato — trata-se de uma pesquisa rigorosa —, é escrita num estilo próximo do jornalismo. Mais: trata-se de uma pesquisa não só em documentos, como Villa sugeriu numa entrevista, mas também em livros e jornais (que, a rigor, também são documentos). De certo modo, o livro é uma síntese da bibliografia. Neste texto, faço a opção por comentar alguns problemas.
Como não há espaço suficiente para estabelecer um debate mais amplo, sobretudo sobre as deficiências do livro (inclusive de revisão), discuto mais as conclusões do autor. Antes de comentar as páginas finais, aponto dois problemas. O primeiro: Villa diz que, ao se encontrar com Robert Kennedy, representante do presidente John Kennedy, “a postura de Jango foi sempre subserviente” (página 94). Estranhamente, para um historiador, aponta-se apenas uma fonte, claramente suspeita: o embaixador norte-americano Lincoln Gordon. É provável que, mais do que subserviente, Jango, no melhor estilo do político brasileiro, tenha se mostrado dissimulado, o que talvez tenha confundido Gordon.
Corrupção e provas: falta documentação
Para o historiador, há fontes suspeitas e fontes insuspeitas? Nem documentos podem ser considerados como fontes insuspeitas — daí a necessidade de confrontá-los com outros documentos ou, também, com depoimentos orais. Na página 142, Villa diz que Jango era corrupto: “Samuel Wainer conta que certo dia foi convocado para ir falar com Jango. O presidente pediu que ele substituísse o homem encarregado de fazer a ligação entre o governo e os empreiteiros. Estes venciam as concorrências públicas — simuladas — e pagavam comissões para o PTB, que eram recolhidas pelo jornalista todo mês, sempre em dinheiro, e entregues ‘nas mãos de João Goulart’”. Cadê os documentos que provam que Jango era corrupto? O depoimento de Wainer, por ter sido amigo do presidente, é suficiente? Para um historiador do quilate de Villa, não deveria ser. Ele poderia ter investigado mais, afinal, como Jango foi acusadíssimo, certamente há documentos, falsos ou verdadeiros, sobre o assunto.
A tese de Villa é formulada mais ou menos da seguinte forma: a ditadura de 64 pode ser explicada pela tibieza moral e política de João Goulart. Ele escreve (página 237): “Apesar do exercício de tantos cargos no Legislativo e no Executivo, é difícil encontrar alguma ideia, uma frase, uma lei, enfim, algo de relevante para a posteridade que João Goulart tenha produzido. Esse vazio de realizações e de ideias acabou, paradoxalmente (ou até por isso), produzindo a carreira política de grande êxito da República populista”. Há, aí, uma contradição: como um néscio como Jango chegou à Presidência da República e, sob intensa pressão, sobreviveu de 1961 a 1964? Villa diz que pelo acaso e pela sorte. “Diversas lideranças expressivas do PTB morreram entre 1950 e 1964, o que deixou aberto o caminho para consolidação do seu domínio no interior do partido. Ele contou com os imprevistos da história e com a paciência.” Se Villa tivesse menos certezas do que dúvidas, poderia ter se perguntado: então, por que outro político mais capaz — como Leonel Brizola ou San Tiago Dantas — não ocupou o espaço de Jango? Porque certamente eram menos hábeis politicamente do que Jango, o que Villa rejeita sem apor uma explicação convincente.
Na página 238, Villa ataca: “A incompetência para administrar a crise que, em parte, foi fomentada por ele próprio, esteve como nunca presente entre março e abril de 1964”. Ora, se era tão poderoso para fomentar sozinho uma crise institucional e política de tamanha dimensão, controlando a história a seu bel-prazer, como tachá-lo de inteiramente incompetente? Ao ampliar as deficiências e fraquezas de Jango, Villa parece não perceber que reduz a importância dos outros atores históricos, como os militares e os próprios civis golpistas. Ao julgar e condenar Jango, solitariamente, Villa exime de responsabilidade os outros golpistas. Um golpista notório como Brizola sai melhor do livro, porque, como diria Euclides da Cunha, é, antes de tudo, um forte. Jango perguntou a Vargas por que, em 1945, “apoiar Dutra em vez do brigadeiro Eduardo Gomes”, e o líder gaúcho respondeu: “Porque Dutra é homem, Jango”. Villa não diz, mas parece endossar este tipo de julgamento. Nesse sentido, Brizola era mais “homem” do que Jango (o político que adorava se relacionar com vedetes).
Na página 239, Villa diz que Jango “usou recursos públicos como instrumento de ação política sem nenhum pudor, como se fosse algo absolutamente natural”. É provável que Jango tenha feito isto, por falta de pudor ou para sobreviver politicamente, mas o problema é que Villa, historiador em geral rigoroso, inclusive no uso escrupuloso das fontes, não apresenta ao seu leitor as provas das acusações.
Governo Jangola seria mais de Brizola do que de Jango
Adiante, Villa mostra-se como um historiador que intervém na história, ao estilo dos marxistas ortodoxos (frise-se que ele não é marxista): “O ano de 1961, certamente, é o exemplo paradigmático: quando poderia ter assumido o governo com plenos poderes presidenciais, Jango optou pela conciliação com os derrotados”. Verdade? Não parece. Em 1961, Jango tinha talvez apenas duas opções. Optou pela conciliação com os golpistas. A segunda alternativa era a resistência aos militares, que não estariam muito organizados, segundo Villa. Poderia vencer, com o apoio de Brizola, seu cunhado, mas também poderia perder. Além do que, a rigor, Villa parece estar defendendo a necessidade de uma guerra civil e militar. Há outro aspecto. Se vencesse com Brizola, no enfrentamento com os militares, teria de governar com ele. Então, no lugar de Tancredo Neves como primeiro-ministro, teria o cunhado tutelando-o.
Villa observa que Jango preparava um golpe, embora não soubesse como fazê-lo. Certo, mas a guerra em 1961 não levaria possivelmente a um golpe que, vitorioso, não poderia instalar um regime autoritário no estilo do Estado Novo? Um governo “Jangola” seria mais de Brizola do que de Jango — e isto Villa não discute, preso, como historiador, aos fatos. Mas certamente não seria (muito) democrático. A vitória de Jango, enfraquecendo o poder de Brizola, talvez tenha permitido a vida democrática até 31 de março de 64.
Na página 240, Villa revisa a historiografia do período e, por isso, transcrevo um trecho longo: “Associam-se, frequentemente, as crises de 1954, 1961 e 1964, estando Goulart envolvido nas três. Discordo desse ponto de vista: são momentos históricos absolutamente distintos. A crise de agosto de 1954 ocorreu em meio às contradições do segundo governo Vargas, da dificuldade de ele conviver com uma sociedade plural, em rápida transformação, efeito das modificações geradas pela Revolução de 1930, além da existência de uma oposição que desprezava as formas políticas democráticas. O suicídio de Vargas não interrompeu um possível golpe udenista, tanto que Café Filho assumiu a Presidência da República e governou com um ministério conservador. A grande derrota da direita, aí sim, foi em outubro de 1955, quando Juscelino Kubitschek venceu as eleições presidenciais em aliança com João Goulart. A crise de 1961 acabou fortalecendo a democracia como valor fundamental da República. A derrota dos ministros militares e de seus asseclas civis abriu o caminho para que Jango pudesse governar com amplo apoio congressual, o que acabou perdendo, no decorrer da Presidência, por absoluta incapacidade de gerir o Estado. Três anos depois, a democracia foi considerada, pela maior parte dos contendores, um entulho de uma velha ordem, numa curiosa metamorfose: de valor universal, passou a ser considerada obstáculo para o bom exercício do governo. Jango acabou ajudando a solidificar esta ideia, tanto que, no momento que tentou defender o seu mandato, utilizando-se do manto constitucional, a manobra revelou-se um fracasso, gesto de puro oportunismo, pois durante meses tinha atacado o Legislativo e a Constituição, acusados de perpetuar as situações de injustiça social”.
O trecho mostra que, de algum modo, Villa não percebe — para não atrapalhar a tese de que a incompetência e o golpismo de Jango foram decisivos para sua queda — que a tradição golpista dos políticos e militares é muito anterior à presença de João Goulart na cena política. Em 1930, ao contrário do que diz Villa, Getúlio Vargas tentou negociar com Washington Luís, e até mandou Oswaldo Aranha ao Rio de Janeiro, para discutir uma saída, digamos, “pacífica” para a crise. O brasilianista Stanley Hilton documentou a conciliação de Vargas numa densa biografia de Oswaldo Aranha. A Revolução de 30, mesmo tendo sido uma revolução, é produto de um golpe — e não há uma ruptura de classes; há uma ruptura dentro dos quadros das elites políticas, as do Rio Grande do Sul e Minas contra a de São Paulo. A ditadura de Vargas, de 1937 a 1945, foi derrubada por um golpe militar, com apoio, como de hábito, civil. Vargas reassume o poder, na década de 50, pela via eleitoral, mas governa sob ameaça de golpe militar, com apoio de alguns civis, como Carlos Lacerda. Seu suicídio aborta, ao contrário do que diz Villa, um golpe, mais do que udenista, civil-militar. O fato de Café Filho, o vice-presidente, assumir o governo, não foi, a rigor, um golpe — entra, aí, uma interpretação esquerdizante de Villa. Uma queda de Vargas, sem o suicídio, certamente teria impedido a eleição que levou Juscelino ao poder. Outra questão que Villa não leva em conta.
Juscelino era excelente administrador de crises, mas assumiu o governo e administrou o país sob permanente ameaça de golpe civil-militar. Só não caiu porque fez concessões à elite política e à cúpula militar.
Historiador julga mais intenções do que fatos
Curiosamente, na última página da conclusão, Villa apresenta uma ressalva, talvez para contemplar seus possíveis críticos: “Evidentemente não cabe imputar a Jango todas as mazelas do Brasil na conjuntura de 1964. Afinal, o país não chegou a uma situação de pré-guerra civil simplesmente pela ação de um único homem”. Este trecho desmente toda a argumentação do livro. Tanto que, em seguida, Villa recupera-se e volta ao ataque: “Grande parte da elite política jogou para que ocorresse o impasse, que só seria solucionado por meio do rompimento da legalidade constitucional. Mas João Goulart, pela posição que ocupava, poderia ter impedido que tal ocorresse, caso tivesse um papel construtivo, materializado em um projeto de governo que obtivesse a hegemonia política, que desse sustentação à sua Presidência. Todavia, em momento algum, esteve propenso a encontrar uma saída para o impasse”. Villa exige que Jango fosse um super-homem. Nem JK era esse super-homem.
Nas últimas linhas, Villa arremata, numa tacada mortal: “Ficou a lenda de um presidente democrata, reformista, que foi derrubado porque queria enfrentar os privilegiados. Definitivamente, Jango foi um homem de sorte”. Provoca uma sensação de estranhamento saber que Villa é um historiador que julga mais intenções do que fatos. O golpismo de Jango não resultou num golpe, mas este golpismo é visto quase que como um golpe pelo historiador. Jango não fechou o Congresso, não reduziu o poder do Judiciário, não controlou a imprensa. Talvez seja possível dizer que, sendo fraco, Jango tenha sido útil ao Brasil. Evitar derramamento de sangue, sobretudo dos cidadãos comuns, é, sim, preocupação de estadista, ainda que o estadista seja pusilânime.
Mas, afinal, Jango era incompetente? Era, como certamente foram Jânio Quadros, Costa e Silva, Fernando Collor, José Sarney e Itamar Franco (menos, pois aceitou a implantação do Plano Real) — e talvez tenha sido Lula, o Jango de macacão, no início do governo. Mas foi o único responsável por sua própria derrota e até pela carência de um projeto para “refazer” o país? Não foi. Falta a Villa analisar as circunstâncias que geraram Jango — e aqui não se defende um perdão ao indivíduo Jango ou uma redução do papel do indivíduo na história — com mais rigor.
[Resenha publicada no Jornal Opção em 2009]