O líder do Partido Democrata acabou com a segregação racial legal, garantiu o direito do voto livre para negros e democratizou a imigração

Martin Luther King, o grande líder negro dos Estados Unidos, foi um dos aliados do presidente Lyndon Johnson na luta pela aprovação da Lei dos Direitos Civis | Foto: Reprodução

A Guerra do Vietnã contribuiu para reduzir a importância histórica de Lyndon Baines Johnson, presidente dos Estados Unidos. Talvez tenha sido, como gestor, superior a John Kennedy. Mas não é a imagem cristalizada do texano do Partido Democrata que governou o país de 22 de novembro de 1963 a 20 de janeiro de 1969. O livro “Liderança em Tempos de Crise” (Record, 558 páginas, tradução de Alessandra Bonrruquer), de Doris Kearns Goodwin, reconta sua história — talvez sabe sem a pretensão de restaurá-la, e sim de nuançá-la — a partir de seu legado na questão dos direitos civis. A professora de Harvard admite, porém, que o Vietnã foi sua areia movediça.

Mesmo tido como um político arrogante, Johnson disse aos auxiliares de John Kennedy: “Eu sei o quanto ele precisava de vocês. Eu preciso muito mais, assim como o país. Há muito que não sei. Vocês precisam me ensinar”. Sua humildade conquistou a equipe. De cara, informou que pretendia aprovar a lei dos direitos civis do falecido presidente. “Vou conseguir a aprovação sem mudar uma vírgula ou palavra. Depois disso, vamos aprovar leis que permitam que todos no país tenham direito ao voto, derrubando todas as barreiras. Vamos aprovar uma lei que permita que qualquer menino e menina do país, não importa quão pobre seja, a cor de sua pele ou a região em que nasceu, receba a educação que quiser através de empréstimos, bolsas ou doações do governo federal. Quero conseguir aprovação para o projeto de seguro-saúde de Harry Truman.”

John Kennedy e Lyndon B.Johnson: a pauta dos direitos civis e do direito ao voto livre avançou mais com o presidente texano, menos glamuroso e mais eficiente | Foto: Reprodução

Como Johnson não era visto como tão progressista quanto John Kennedy, certamente houve quem pensasse que se tratava de retórica. Não era. O novo presidente era mais progressista do que parecia.

Redução de impostos pra elevar arrecadação e

o Estado ter dinheiro para programas sociais

Johnson definiu dois projetos prioritários: um para reduzir impostos e outro para “para pôr fim à segregação no sul”. Um advogado disse-lhe para não transformar a questão dos direitos civis em projeto número um porque, se não fosse aprovado, ficaria desgastado. No lugar de recuar, o chefe do Executivo replicou: “Bem, para que diabos serve a Presidência?” No seu discurso no Congresso, mostrou-se explícito: “Podemos e iremos agir, e agir agora”.

Por sua experiência no Legislativo, Johnson percebeu que, ao contrário de Kennedy, precisava dar mais atenção a deputados e senadores. Se quisesse governar e ter seus projetos aprovados. Por isso concluiu que, antes do projeto dos direitos civis, deveria apresentar o projeto para reduzir impostos.

Harry Byrd, senador, e Lyndon Johnson: apostando sempre no diálogo e na persuasão | Foto: Reprodução

A tese dos conselheiros de Kennedy era “que diminuir os impostos estimularia as economias e aumentaria a arrecadação, que poderia então financiar uma variedade de programas sociais”. Johnson sondou parlamentares e descobriu que o presidente do Comitê de Finanças do Senado, Harry Byrd, pretendia enrolá-lo.

Mas o que realmente queria o conservador Harry Byrd? Que o governo gastasse menos. Se o orçamento excedesse 100 bilhões de dólares, o senador bloquearia o projeto de Johnson. O presidente resolveu convidá-lo à Casa Branca: “Harry, por que você não vem me ver amanhã? Quero alguns conselhos”.

Ao ouvir que o orçamento poderia ficar abaixo de 100 bilhões de dólares, Harry Byrd disse que poderia “fazer alguma coisa”. Rapidamente, Johnson concordou: “Harry, acordo fechado”.

Agora, o mais difícil: como e onde cortar para reduzir o orçamento? Johnson desligava até as luzes da Casa Branca, tendo ganhado o apelido de “Lyndon Lâmpada”. Mandou reduzir custos em todo o governo. “Os maiores cortes — mais de 1 bilhão de dólares — foram feitos no Departamento de Defesa, sob o secretário Robert McNamara”, assinala Goodwin. O orçamento caiu para 97,5 bilhões.

“Em 26 de fevereiro, três curtos meses após o assassinato de Kennedy, o projeto de lei dos impostos foi aprovado em ambas as câmaras”, anota Goodwin. Johnson provou que, ao contrário do presidente anterior, sabia operar com o Congresso.

A longa batalha de Lyndon Johnson e do líder Martin

Luther King pelos direitos civis dos afro-americanos

Agora, a luta seria mais dura. Johnson iria se opor às leis Jim Crow — “que impediam que os negros entrassem em restaurantes, banheiros, hotéis, motéis, lanchonetes, cinemas, estádios e salões de concerto somente para brancos”.

Certa vez, Johnson pediu para seu mordomo, Gene Williams, levar o cachorro da família, um beagle, de Washington para o Texas. Gene disse “não”. Surpreso, o democrata tentou convencê-lo: “Ele não vai causar problemas. Você sabe que” o cachorro “ama você”.

Gene tinha seus motivos para não levar o beagle e explicou-se ao então senador: “Já é bastante difícil percorrer todo o caminho entre Washington e o Texas. Nós dirigimos por horas e horas. Ficamos com fome. Mas não há lugar na estrada para podermos parar e comer. Dirigimos mais um pouco. Fica muito quente. Queremos nos lavar. Mas os únicos banheiros que podemos usar geralmente ficam a quilômetros da estrada principal. Continuamos seguindo até a noite, até que estamos tão cansados que já não conseguimos ficar acordados. Estamos ansiosos para descansar. Mas levamos uma hora ou mais para encontrar um lugar para dormir. O que estou tentando dizer é que um homem de cor já tem problemas suficientes para cruzar o sul sozinho, sem um cachorro junto”. Johnson ouviu e concordou.

Depois, Johnson contou a James Farmer, líder do Congresso da Igualdade Racial, “que Zephyr Wright, sua cozinheira com nível superior”, tinha de “‘ir se agachar no meio do campo para urinar”. Frisou que era “humilhante” e que era preciso criar leis anti-racistas.

Mesmo sabendo que o Sul, sua origem, poderia “deserdá-lo” politicamente, Johnson decidiu agir, de maneira incontornável, contra o entranhado racismo americano. “Ela [sua decisão de mudar leis] estava destinada a me separar para sempre do Sul, onde eu nascera e fora criado. Parecia provável que ela me alienaria de alguns dos sulistas do Congresso, que haviam sido meus amigos leais durante anos”, afirmou o presidente.

“Chega uma hora na carreira de todo líder na qual ele tem de apostar tudo. Decidi apostar todas as minhas fichas nessa medida vital”, postulou Johnson. Que o leitor preste atenção: está se falando de 1963 — há apenas 57 anos.

O crescimento do movimento pelos direitos civis — os negros estavam nas ruas, e muitos brancos os apoiavam — representava uma oportunidade para Johnson confrontar o conservadorismo americano.

Roy Wilkins e Lyndon Johnson: o presidente sempre esteve próximo dos lutadores da causa dos direitos civis dos negros | Foto: Reprodução

Roy Wilkins, líder dos direitos civis, registrou “a imensa diferença entre Kennedy e Johnson”. Se Kennedy era “frio, realista”, Johnson era “passional”. “Tanto Martin Luther King quanto Whitney Young saíram de suas primeiras reuniões com o presidente imensamente impressionados com suas ‘profundas convicções’ e ‘a profundidade de sua preocupação’ com os direitos civis”, aponta Goodwin.

Aos amigos e aliados, Martin Luther King sugeriu que Johnson poderia chegar “aonde John Kennedy não” havia conseguido “chegar”.

Na Câmara dos Representantes, o juiz Howard Smith, um conservador, sentara-se em cima do projeto que pretendia criar a lei dos direitos civis. Nas ruas, havia tensão e revolta dos negros, que, organizados, pressionavam tanto o governo quanto a Câmara e o Senado.

Johnson sugeriu que líderes dos direitos civis, como A. Philips Randolph, Martin Luther King e Roy Wilkins, acompanhassem as articulações do Legislativo, com o objetivo de conquistar maioria para retirar o projeto da gaveta e, em seguida, aprová-lo. O presidente disse a aliados que deveriam ser explícitos com os republicanos: “Você é a favor dos direitos civis ou não. Você é partidário de Lincoln ou não — mas, pelo amor de Deus, colabore ou cale a boca!”

Martin Luther King, Whitney Young e Lyndon Johnson: articulados e conectados | Foto: Reprodução

À amiga Katharine Graham, publisher do “Washington Post”, sugeriu que publicasse os nomes e fotos dos adversários da mudança na lei dos direitos civis. Propôs inclusive que a empresária publicasse editoriais. Foram publicados.

Ante a pressão das ruas — os negros souberam conduzir o seu destino, e pacificamente, na maioria vezes (e nem sempre é possível) — e à ação de um presidente decidido, em 10 de fevereiro de 1964, “por ampla margem, a Câmara dos Representantes aprovou a mais forte lei de direitos civis desde a Reconstrução”.

Lyndon Johnson e Richard Russell: “Dick, eu amo você”, mas “não fique no meu caminho na questão da lei dos direitos civis, ou vou passar por cima de você” | Foto: Reprodução

Parte do Senado pretendia “matar” a lei aprovada na Câmara com a adoção de emendas. Hábil negociador, Johnson entrou em campo. Chamou o líder da oposição sulista, Richard Russell, e foi franco: “Dick, eu amo você”, mas “não fique no meu caminho na questão da lei dos direitos civis, ou vou passar por cima de você”.

Richard Russell retrucou: “Bom, senhor presidente, o senhor pode fazer isso. Mas, se fizer, eu prometo que não somente perderá a eleição como também perderá o Sul para sempre”. Johnson retrucou: “Dick, você pode estar certo. Mas, se esse é o preço que preciso pagar, eu pago com prazer”.

Dito e feito: Richard Russell começou a trabalhar para impedir a aprovação da lei no Senado. As táticas de obstrução e o trabalho para não se ter quórum irritaram Johnson. O presidente convocou Hubert Humphrey, diretor dos debates e defensor dos direitos civis, e disse que era preciso cobrar dos liberais, que, no lugar de fazer discursos bonitos e empolados, deviam agir. A partir daí, dez apoiadores dos direitos civis passaram a fiscalizar o quórum.

De um lado, os sulistas, que não queriam nenhuma mudança, optando pela barbárie. Do outro, brancos e negros, unidos, em defesa da civilização.

Everett Dirksen, senador republicano, e o democrata Lyndon Johnson: “Mais forte que qualquer exército é uma ideia cujo momento chegou” | Foto: Reprodução

Ao perceber que, sem os republicanos, não teria “dois terços para derrotar a obstrução”, Johnson sugeriu aos aliados que era preciso dialogar com o senador republicano Everett Dirksen, de Illinois, a terra de Abraham Lincoln. “O projeto não será aprovado a menos que você consiga Ev Dirsken”, sugeriu o presidente a Hubert Humphrey.

Everett Dirksen era conservador, mas Johnson explicou aos defensores dos direitos civis que “precisavam entender que, ‘a menos que tenhamos republicanos do nosso lado’, a menos que ‘esse seja um projeto de lei americano, e não apenas democrata’, haverá ‘motim no país’”. O líder da NAACP, Roy Wilkins, também foi convencido a se aproximar do republicano. Era uma lição de realismo político.

O próprio Johnson entrou em campo e disse: “Se você ficar a meu lado nesse projeto, daqui a duzentos anos somente duas pessoas do Estado de Illinois serão lembradas: Abraham Lincoln e Everett Dirksen”. Hubert Humphrey, o procurador-geral Robert Kennedy e os líderes de direitos civis passaram a articular com o senador.

Lyndon Johnson e Hubert Humphrey trabalharam intensa e inteligentemente contra o conservadorismo da política norte-americana | Foto: Reprodução

Com o acordo fechado, o agora “progressista” Everett Dirksen disse, citando o escritor francês Victor Hugo: “Mais forte que qualquer exército é uma ideia cujo momento chegou”. Mesmo assim, faltavam seis votos. Johnson saiu à procura de senadores do Oeste e colocou padres e pastores para ajudar a convencê-los.

Na sessão de 10 de junho, Hubert Humphrey exortou: “Digo a meus colegas do Senado que talvez, em sua vida, vocês sejam capazes de dizer aos filhos de seus filhos que estavam aqui pelos Estados Unidos, para transformar o ano de 1964 em um ano de liberdade”.

O senador Clair Engle, da Califórnia, saiu do hospital, onde havia se submetido a “uma cirurgia para remover um tumor cerebral maligno”, e compareceu para a histórica votação. Não conseguia falar, mas apontou para seu olho, o que foi interpretado como “sim” (ele morreu em 1964). Finalmente, a turma que trabalhava pela “obstrução” perdeu terreno e a lei que acabava com a segregação legal nos Estados podia ser aprovada.

Clair Engle deixou o hospital para votar a favor dos afro-americanos | Foto: Reprodução

No dia 2 de julho, Johnson “assinou a Lei de Direitos Civis de 1964 perante membros do Congresso e da coalizão de direitos civis”, na Casa Branca. “Naquele dia, 2 de julho de 1964, eu conheci o lado positivo da mesma verdade: em que extensão os negros estavam livres, realmente livres, assim como eu. E como meu país”. Registre-se, leitor: os fatos aconteceram há apenas 56 anos.

Os afro-americanos haviam vencido, mas a luta, que irmana brancos e negros, continua. Porque o racismo, tornado ilegal, não desapareceu e permanece brutal (como prova o assassinato do afro-americano George Floyd, em 25 maio de 2020, por um policial branco, em Minneapolis, no Estado de Minnesota).

A Grande Sociedade para gerar mais igualdade

social e a grande virada de Selma, no Alabama

Em seguida, Johnson decidiu construir o que chamava de “Grande Sociedade”. O presidente disse que pretendia edificar uma sociedade em “que cada americano tivesse ‘a oportunidade de desenvolver seus melhores talentos’. Para chegar a esse objetivo, ele pretendia iniciar uma guerra contra a pobreza, fornecer auxílio econômico para favelas e áreas rurais em situação precária, fornecer assistência médica aos idosos e aos pobres, preservar os recursos naturais e muito mais”.

Martin Luther King com uma multidão nas ruas: uma firme e pacífica defesa dos direitos dos negros | Foto: Reprodução

Na disputa de 1964, contra o republicano Barry Goldwater (espécie de Donald Trump da década de 1960), Johnson obteve uma vitória esmagadora. A sociedade americana aprovara, ao contrário do que pensavam os racistas, seu governo progressista.

O governo federal começou a investir maciçamente em escolas de bairros pobres e decidiu melhorar o sistema de saúde, com o Medicare.

Para aprovar as novas medidas, Johnson reforçou seu relacionamento com os congressistas, sempre convidados para jantares na Casa Branca — pagos, não pela Presidência, e sim pelo presidente. “Para realmente funcionar, o relacionamento entre o presidente e o Congresso precisa ser quase incestuoso”, disse Johnson.

Sua meta imediata era aprovar “um projeto de lei amplamente fortalecido de direito ao voto”.

Goodwin conta que Johnson “disse a Martin Luther King, no início da sessão de 1965 do Congresso, que a aprovação de um forte projeto de lei de direito ao voto seria ‘o maior avanço’ dos afro-americanos, mais vital que a Lei de Direitos Civis de 1964. ‘Quando a voz do homem negro puder ser traduzida em votos’, defendeu ele, ‘muitos outros avanços se seguirão, como consequência do poder legítimo do homem negro como cidadão americano, e não como presente do homem branco’”.

Violência policial contra manifestação dos negros em Selma, no Alabama | Foto: Reprodução

Johnson convidou Martin Luther King “a trabalhar com ele no restante da legislação da Grande Sociedade” (uma sociedade capitalista, porém mais igualitária).

O presidente planejava ampliar o investimento em educação e saúde para os pobres — negros e brancos. Também havia “um projeto de lei de obras públicas para as comunidades economicamente prejudicadas, uma lei nacional de treinamento profissional, a revitalização dos distritos residenciais mais pobres, auxílio expandido aos pobres”. Com isto aprovado, ele se dedicaria, em 1966, à aprovação do direito ao voto.

No início de 1965, Martin Luther King e ativistas dos direitos civis decidiram buscar apoio para uma lei de direito ao voto realmente democrática — sem certos controles frequentes no Sul (o objetivo dos racistas era impedir que negros se registrassem para votar). “De 15 mil afro-americanos com idade para votar em Selma”, no Alabama, “somente 335 haviam se registrado”.

Lyndon Johnson, presidente dos Estados Unidos: a “areia movediça” da Guerra do Vietnã maculou sua imagem política, que era positiva| Foto: Reprodução

Deu-se então, em 7 de março de 1965, o que ficou conhecido como “Domingo Sangrento”. “Mais de 600 ativistas de direitos civis se reuniram em frente à Brown Chapel, em Selma, para iniciar uma pacífica marcha de 87 quilômetros até Montgomery, a capital” do Alabama. “Quando eles chegaram à estreita ponte Edmund Pettus, caminharam lado a lado, cantando ‘We Shall Overcome’¹, o hino do movimento pelos direitos civis. No meio da ponte, encontram policiais estaduais e a companhia montada do xerife Jim Clark, armada com pistolas, cassetetes, chicote e porretes. Enquanto as câmeras de televisão registravam a cena, ‘os homens a cavalo atacaram. Em minutos, tudo estava acabado e mais de 60 manifestantes estavam feridos, incluindo mulheres idosas e crianças. Mas de 20 pessoas foram parar no hospital.” O país se mobilizou, como uma consciência viva e proativa.

Ativistas negros e brancos, com os quais Johnson mantinha excelente relacionamento, cobraram que o presidente colocasse a Guarda Nacional para proteger os negros que pretendiam retomar a caminhada até Montgomery. Manifestantes cercaram a Casa Branca e cartazes clamavam: “LBJ, abra os olhos, veja a insanidade no Sul, veja os horrores de sua terra natal”.

Johnson percebera no conflito uma oportunidade para avançar na melhoria de vida dos negros e dos pobres em geral. Por isso, disse: “Tínhamos de conseguir uma vitória real para as pessoas negras, não uma vitória psicológica para o Norte”.

Lyndon Johnson e Robert McNamara se “atolaram” no Vietnã | Foto: Reprodução

Goodwin sublinha que “Johnson focou na principal questão subjacente: como utilizar a atrocidade de Selma e a consequente humilhação nacional para apressar a aprovação de um projeto de lei sobre o direito ao voto”. Na Casa Branca, na presença dos líderes do Congresso, o presidente frisou: “Falo hoje em nome da dignidade do homem e do destino da democracia. Às vezes, história e destino se unem em um único momento e lugar para moldar um ponto de virada na infinita busca humana por liberdade. Foi assim em Lexington e Concord. Foi assim, um século atrás, em Appomattox. Foi assim semana passada em Selma, Alabama”.

Johnson continuou: “O que aconteceu em Selma é parte de um movimento muito mais amplo que atinge cada seção e Estado dos Estados Unidos. É o esforço dos negros americanos para garantir a si mesmos todas as bênçãos da vida americana. A causa deles precisa ser também a nossa causa. Porque não são somente os negros, mas todos nós que precisamos superar o paralisante legado do preconceito e da injustiça”.

Em seguida, erguendo os braços, Johnson bradou: “E iremos vencer”. Um funcionário da Casa Branca disse: “Houve um instante de silêncio, a percepção gradualmente apreendida de que o presidente proclamara e adotara como seu o grito de união, o hino do protesto negro, a canção de cem combativas marchas negras”.

Rosa Parks e Martin Luther King: duas figuras que representam a coragem negra e a decisão de agir contra o racismo nos Estados Unidos | Foto: Reprodução

Ninguém ficou sentado. Todos se levantaram e aplaudiram o presidente Johnson, um homem em sintonia com seu tempo. Finalmente, alguém dissera que os negros, com sua fibra inquebrantável, “haviam despertado a consciência” da nação americana.

Martin Luther King enviou um telegrama para Johnson: “Seu discurso na Sessão Conjunta do Congresso foi a mais comovente, eloquente e passional defesa dos direitos humanos jamais feita por um presidente desta nação”.

Os avanços continuaram. Ao assinar a Lei de Educação Elementar e Secundária, Johnson buscou sua ex-professora Katie Dietrich, que morava na Califórnia, e disse: “Como filho de arrendatário, eu sei que a educação é o único passaporte válido para fora da pobreza”. Foi aprovada também “uma lei de ensino superior que fornecia bolsas, empréstimos e programas de emprego em tempo parcial para estudantes necessitados”.

A assinatura da lei que criara o Medicare, para homenagear o presidente Harry Truman, ocorreu em Independence, no Missouri. “Para receber fundos do Medicare, os hospitais tinham de obedecer às provisões de não discriminação da Lei de Direitos Civis. Em pouco tempo, todos os hospitais segregados do Sul haviam desaparecido”, informa Goodwin. “Com o auxílio do Medicare, a expectativa de vida aumentou em cinco anos.”

“Para a assinatura da lei de direito ao voto em 6 de agosto, Johnson escolheu a Sala do Presidente no Senado, onde Abraham Lincoln, no mesmo dia de agosto quase um século antes, assinara uma lei que libertava os escravos fugitivos obrigados a trabalhar para os confederados. ‘O dia de hoje é um triunfo para a liberdade, tão grande quanto qualquer vitória que já foi conquistada em qualquer campo de batalha’, disse ele aos líderes de direitos civis, oficiais de gabinete, funcionários da Casa Branca, senadores e congressistas”, historia Goodwin. “A Lei de Direito ao Voto levou ao exponencial aumento de registro dos eleitores negros, o que, por sua vez, levou ao crescimento de dez vezes do número de políticos negros eleitos”, destaca a historiadora.

Mas não bastava reconhecer direitos civis, legalizá-los e legitimá-los. Era preciso batalhar por igualdade. “Trata-se de nada menos que conceder a cada negro americano a liberdade de participar da vida americana tradicional.”

Johnson também mudou o sistema de imigração, que antes privilegiava “os brancos da Europa ocidental e do norte”. “Ao abrir as portas dos Estados Unidos para imigrantes com base em seus méritos como indivíduos, sem referência a seu país de nascimento, e ao acrescentar uma preferência por unificação familiar depois que os primeiros membros haviam chegado, a nova lei mudou o fluxo de imigração para a África, Ásia e América Latina, expandindo dramaticamente a diversidade americana”, pontua Goodwin.

Entretanto, ao “enterrar” os Estados Unidos no Vietnã, Lyndon Johnson “enterrou-se” política e historicamente. Há um Lyndon Johnson antes e um Lyndon Johnson depois da guerra asiática. Mas talvez seja, pelo que fez no front interno — sua luta pelos direitos civis dos negros pode ser definida como uma guerra, uma guerra justa —, um grande homem.

Nota

¹ “We Shall Overcome” na voz de Mahalia Jackson

https://www.youtube.com/watch?v=vTyKJjj2oC0

A mesma música cantada por Louis Armstrong