Uma cidade se torna cosmopolita pelo fausto de seus habitantes — de parte deles, ao menos? Talvez. Talvez. Talvez. Mas é provável que, para se tornar moderna, uma urbe precisa mesmo são de cafés aconchegantes e que, sobretudo, sirvam café de qualidade (sem açúcar, please), com algum acompanhamento. Goiânia, uma adolescente de 90 anos, com cerca de 1,5 milhão de habitantes, conta com cafés de primeira linha (e nem se está falando da chiqueza de um London Café City, de Buenos Aires).

Rensga Café: uma boa cafeteria da Nova Suíça, em Goiânia | Foto: Candice Marques de Lima/Jornal Opção

Candice Marques de Lima, professora da UFG, que ama café e cafeterias, lista alguns de seus prediletos na capital do Cerrado: Rensga, Cafeteria Ipê, Luiz Café Conceito, Café do Mundo, Ópera Café Bistrô, Tia Nair Café, Cafezim & Companhia, Aravo Café e Cafeteria da Livraria Palavrear (que, lembrando a portenha Eterna Cadencia, tem a vantagem de contar com ótimo acervo de livros — o melhor do burgo construído por Pedro Ludovico, em 1933). Às vezes, almoço por lá um sanduíche e, não raro, uma salada saborosos. Vasculho as prateleiras e as mesas, leio trechos de livros e… avanço para o café. É um prazer, não só o café, mas perceber tanta gente, além de tomar a bebida, falando de cultura e, claro, sobre a vida — seus prazeres e dificuldades. O professor da UnB Sérgio de Sá gostou tanto do pedaço que deixou por lá exemplares do livro do livro “Bernardo Sayão — Caminhos, Afetos, Cidades”. É uma história bem-construída sobre seu avô e que merece ser levada ao cinema, com produção americana (leia-se bufunfa) e brasileira. No Muy Café compra-se bons cafés. De quebra, toma-se uma xicara de coffe… como degustação.

A lembrança dos cafés de Goiânia tem a ver com o livro “Poética del Café — Un Espacio de la Modernidad Literaria Europea” (Hurtado y Ortega Editores, 503 páginas), de Antoni Martí Monterde, professor de literatura comparada da Universidade de Barcelona.

Antoni Monterde começa seu livro informando que Stefan Zweig, que se suicidou no Brasil, em 1942, “é um dos escritores de café mais importantes da Europa”. Peter Altenberg, “um tanto esquecido”, é “um pequeno grande homem de café vienense”.

Homem do café e de cafés, as cafeterias, Antoni Monterde diz que usa os cafés para ler e escrever. Estudante em Barcelona, ficou estupefato ao descobrir que os cafés, os cafés verdadeiros — acolhedores da diversidade humana —, haviam dado lugar às franquias famosas que há em quase todas as grandes cidades.

Chateado, Antoni Monterde saiu à procura de “alguns locais quase secretos”, onde se “refugiou”. O que o autor toma? Ora, café com leite.

Buenos Aires, a capital dos cafés

Na Argentina, convidado para dar aulas de literatura, Antoni Monterde trafegou pelas principais vias e bairros, como Centro, Recoleta, Palermo, Belgrano, Chacarita — em busca, claro, de cafés, livrarias e bibliotecas. “Todas as viagens começam e terminam numa biblioteca”, assinala. “Todo homem de letras deveria ir, alguma vez em sua vida, a uma cidade que o chama de maneira tão ensurdecedora a partir de uma biblioteca.”

Candice Marques de Lima no Café London City, em Buenos Aires, onde Julio Cortázar apreciava tomar café e escrever suas histórias | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Em Buenos Aires, cidade dos múltiplos cafés — Tabac, London City, El Gato Negro, Tortoni, La Biela —, Antoni Monterde lembrou-se de Witold Gombrowicz, polonês que morou na capital argentina, Ramón Gómez de la Serna, Ortega y Gasset, Alberto Londres (quiçá o inventor do novo jornalismo) e, entre outros, Paul Valéry. “Todos haviam ido a Buenos Aires, como imigrantes, turistas [viajantes], conferencistas, e em muitos casos acabaram como exilados. Todos se sentaram às mesas dos mesmos cafés que eu frequentava.”

Na segunda viagem a Buenos Aires, Antoni Monterde havia se comprometido a dar uma conferência “sobre o diário como forma literária”. Porém, bloqueado, não conseguiu escrever o texto para a palestra. Na cidade, passeando pelo Centro, deu com um café, entrou, sentou-se próximo de uma janela e, como num passe de mágica, começou a escrever o ensaio. Saiu quase de um jato, depois de algumas horas. “Foi um autêntico momento decisivo: havia me descoberto como um escritor de café, e também como escritor en viaje’.”

Nos cafés de Buenos Aires, Antoni Monterde prestou atenção nos frequentadores que escreviam e liam — o que pude constatar, algumas vezes, no La Biela, na Recoleta.

Ramón Gómez de la Serna: aficionado por café e cafés | Foto: Reprodução

“Sem o café [o autor escreve Café, com C maiúsculo] não é possível explicar a escritura nem a ideia de modernidade literária ocidental”, sublinha Antoni Monterde. “O café conta a história cultural europeia.”

De acordo com o quase-“biógrafo” do café, a unidade entre a literatura e o café é “indissolúvel”.

Na volta a Barcelona, Antoni Monterde colheu suas anotações — “manchas de café incluídas” — e publicou “La Erosión”, com a conferência e um relato sobre sua frequentação aos cafés e librerías de viejo’” (sebos). “Foi em Buenos Aires onde compreendi o que é um café europeu. Porque, como todo mundo sabe, Buenos Aires é a maior cidade europeia do mundo, ainda que esteja tão longe.”

Em “La Erosión”, Antoni Monterde imagina um encontro entre Ramón Gómez de la Serna e Josep Pla, “em uma mítica confeitaria da Rua Florida”. Os dois, sabe-se, adictos do café e de cafés.

Entre os apaixonados por cafés estavam Josep Pla, Ramón Gómez de la Serna (adorado tanto por Antoni Monterde quanto por Julio Cortázar. Este, por sinal, escrevia em café, como o London City, de Buenos Aires), Peter Altenberg, Jean Paul-Sartre, Simone de Beauvoir, Karl Kraus, Albert Camus, Sándor Márai, Joseph Roth, Claudio Magris e Stefan Zweig. Muitos deles, como “Bovoartre”, escreviam em cafés. Quase moravam lá.

O primeiro rascunho de “Poética do Café” foi escrito no Café Carabela, na Galicia.

Stefan Zweig e Lotte, sua mulher: o escritor era aficionado por cafés | Foto: Reprodução

“O café seria um lugar fundamental, central e marginal ao mesmo tempo, onde se originaria e desenvolveria o processo da modernidade”, escreve Antoni Monterde. “Paris é um grande café”, anotou Jules Michelet. “Tudo acontecia nos cafés e o que não ocorria nos cafés não existia. O café aguça a inteligência e aviva a sociabilidade. A decadência do café implica na decadência de uma civilização inteira”, disse Josef Pla “sobre a Barcelona do último terço do século 19”. “Enquanto existir cafés, a ideia de Europa terá sentido.”

De acordo com o autor do livro, “o primeiro estabelecimento europeu específico para” o café “abriu suas portas no ano de 1650, em Oxford; foi a primeira Coffe House inglesa e legou seu nome ao resto, entre elas, The Grecian, a decana de Londres, que se fundou em 1652”.

“Na França, embaixadores do sultão de Constantinopla na corte de Luis XIV introduziram” o café “nas suas recepções, estendendo a moda por toda a Paris e seus salões. (…) As senhoras costumavam vestir-se com roupas orientais para beber” café “em suas reuniões”.

Em 1672, o florentino Francesco Procopio dei Coltelli fundou o café Le Procope, em Paris.

O mítico Café Florian abriu suas portas, em Veneza, em 29 de dezembro de 1720. Mas “a primeira bottega da Caffè teria sido fundada na cidade em 1683”.

Viena acabou por suplantar Veneza como “capital europeia do café”. Em 1683 já havia um café na cidade. Turcos que estiveram na França e na Itália também implantaram o gosto pelo café na Áustria.

Naquele ano, segundo a lenda, o polonês Kolschitzky “inaugurou o primeiro estabelecimento dedicado ao consumo” de café. Ao se retirarem, os otomanos deixaram várias sacas de café em Viena.

Bioy Casares e Jorge Luis Borges “no” Cafe La Biela: o segundo, grande poeta da Argentina, apreciava café com leite | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Criativo, Kolschitzky “começou a coar o café antes de servi-lo, além de misturá-lo, pela primeira vez, com leite, criando o que, a partir de então, se conhecerá como café vienense”. Trata-se de uma lenda. Mas bela e, sim, não necessariamente falsa.

Jorge Luis Borges declarava: “O café com leite é uma mistura insuperável”. O inventivo pintor Xul Solar, segundo o bardo argentino, “chegou a mesclar café com molho de tomate (repugnante) ou sardinhas com chocolate (atroz). (…) Nada poderá superar o café com leite (seu inventor deve ter sido um ser excepcional), que é riquíssimo [muito bom] e é a combinação por excelência”.

Josep Pla detestava café com leite, sugerindo que era uma mistura “medíocre”. O mesmo Pla disse: “Tenho sido um grande bebedor de café. Bebi mais café do que álcool. Porém, o curioso é que não sei se o café gosta de mim ou não”.

Boris Vian, Michelle Vian, Sartre e Simone de Beauvoir, no Café de Flore, em 1949 | Foto Manciet/Sipa

Aficionado por café, Ramón de la Serna disse que se deve escrever o local — a cafeteria — com maiúscula e a bebida em minúscula.

O café, ou a cafeteria, como se diz no Brasil, é “um lugar sem certezas, cheio de incertezas, que consegue fazer do tempo que se passa em suas mesas algo irrelevante e expectante, às vezes, como ocorre em um café vienense descrito por Joseph Roth: ‘Sair do café e ver a luz do sol era como despertar no meio de um sonho. Dentro se parava o tempo’”.

Para Sebastià Gasch, o Café Flore, de Paris, iguala-se ao próprio café. Seria, de tão interessante, uma espécie de cafeína. Praticamente viciante, no bom sentido. Volta-se sempre ao café.

Julio Camba escreveu: “Os verdadeiros homens de café… vão ao café, e isto é tudo. Vão ao café para estar no café”. Não mais do que isto. É um prazer… sensual. Do espírito.

Referindo-se ao café Central de Viena, Alfred Polgar declarou que o café é “um verdadeiro asilo para homens que buscam matar o tempo para não serem mortos por ele”.

Café Tortoni: um dos mais procurados em Buenos Aires | Foto: Reprodução

O pesquisador frisa que “estar num café supõe interromper a continuidade da vida para, desde essa interrupção, pensá-la”.

Josep Pla sugeriu que “os espanhóis vão ao café, não precisamente para tomar café, e sim para realizar um ato de sociabilidade fundamental em nossa maneira de ser”.

Ramón Gómez de la Serna filosofa: “O café é a vida interior da cidade como cidade; é o parlamento desinteressado, a comprovação da vida em mil ângulos da urbe”.

O livro de Antoni Monterde é uma delícia, como um bom café (vende-se cafés buenos no Mui Café, em Goiânia) e sorvete de coco. Não aprecio sorvete, exceto o de coco, sempre o da sorveteria Beijo Frio, na Avenida 84, no Setor Sul.