Livro sobre Edward Snowden sugere que usar a internet e falar ao telefone é como participar de um grande comício
16 abril 2014 às 14h58
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Repórter do “The Guardian”, baseado em documentos divulgados pelo norte-americano, revela que, na internet e ao telefone, todos nós estamos nus, à mercê de potências tecnológicas e experts em espionagem como Estados Unidos e Inglaterra
“No fim das contas, nada é sagrado, exceto a integridade da própria consciência.”
Ralph Waldo Emerson,
“Ensaios”
Você envia um e-mail altamente secreto para um amigo ou fonte. Depois, no in box do Facebook, faz comentários calientes para uma possível namorada ou paquera. Ao telefone, fixo ou celular, faz comentários, pertinentes ou não, sobre determinada autoridade. Por fim, faz uma consulta inofensiva no Google ou no Yahoo sobre Osama bin Laden e a Al-Qaeda. Tudo secretíssimo. Pois não é bem assim. As conversas podem estar sendo monitoradas nacional ou internacionalmente. Os arquivos de Edward Joseph Snowden, 30 anos, ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional (NSA), a maior e mais secreta agência de inteligência dos Estados Unidos, sugerem que não há (mais) inocência e liberdade em nenhum país. Num pacto faustiano, duas agências de espionagem, a americana NSA e a inglesa Government Communications Headquarters (GCHQ), com apoio de seus governos, decidiram conhecer tudo (ou quase) aquilo que pensam os indivíduos, desde os mais importantes, como Angela Merkel, chanceler da Alemanha, e Dilma Rousseff, presidente do Brasil, àqueles que não têm poder para fazer mal algum. Digamos assim: se quiserem, a NSA e o GCHQ têm condições de ouvir o que dizem e o que escrevem o prefeito de Goiânia, Paulo Garcia (PT), e o governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB). Podem igualmente mapear seus auxiliares mais próximos. Fizeram isto com Dilma e seus principais assessores. “Mesmo que não esteja fazendo nada de errado, você está sendo observado e gravado”, assegura Snowden.
A história de Snowden é bastante conhecida. Mas quem quiser uma síntese de qualidade nada perde se ler o livro “Os Arquivos Snowden — A História Secreta do Homem Mais Procurado do Mundo” (Leya, 279 páginas, tradução de Bruno Correia e Alice Klesck), de Luke Harding, repórter do jornal inglês “The Guardian”.
Snowden era um tranquilo e brilhante administrador de sistemas da NSA — na verdade, de uma empresa terceirizada —, depois de ter passado pela CIA e por outra agência. Não havia feito curso superior, mas era uma craque em tecnologia de informação. De repente, descobriu aquilo que parecia normal à maioria dos colegas: o governo dos Estados Unidos, por meio da NSA, havia decidido conhecer as “profundezas” do que dizem os homens: “a agência tinha se afastado de sua missão original de recolhimento da inteligência sobre o exterior. Agora coletava dados sobre todos”. A observação eletrônica em massa chocou-o.
Com a bomba nas mãos, Snowden decidiu agir: procurou Glenn Greenwald, colunista do “Guardian” baseado no Brasil, e a documentarista Laura Poitras, ambos americanos. Depois de colher dados explosivos, o jovem fugiu para Hong Kong, onde se encontrou com o hesitante Greenwald e a confiante Poitras. Levou para a Ásia quatro laptops “fortemente criptografados”, com “documentos retirados dos servidores internos da NSA e do GCHQ”. Tratava-se do “maior vazamento de inteligência da História”.
Harding, baseado nos arquivos revelados por Snowden, frisa que, “em conjunto com o GCHQ, a NSA tinha ligado secretamente interceptadores de dados aos cabos de fibra ótica submarinos que circundam o globo. Isso permitiu que os EUA e o Reino Unido tivessem acesso à maior parte das comunicações mundiais”. A Justiça, acionada pelo governo americano, obrigava as empresas a se abrirem para a NSA. Obrigava nem é o termo preciso. “Praticamente todo o Vale do Silício estava envolvido com a NSA. Google [quarto a liberar informações para a NSA] Microsoft [primeira a fornecer dados à agência americana], Facebook [quinto a divulgar dados], até mesmo a Apple, de Steve Jobs” colaboraram com a agência de espionagem. “A NSA alegava ter ‘acesso direto’ aos servidores das gigantes da tecnologia.” Também colaboraram PalTalk, YouTube, Skype, Yahoo e AOL.
O inglês George Orwell, autor de uma distopia clássica, “1984”, imaginou alguma coisa, mas localizada, sobre o controle da informação e vigilância dos indivíduos (o Big Brother), mas certamente ficaria estupefato com as revelações sobre o que pretendia (e talvez ainda pretenda) a NSA: “coletar tudo, de todos, em todos os lugares, e armazenar por prazo indefinido”. Seria, observa Harding, “a extirpação da privacidade”. A internet havia sido sequestrada. Ou permanece.
Por que, exatamente, Snowden decidiu revelar os bastidores da espionagem americana e inglesa? No relato a Greenwald, registrado por Harding, o ex-agente disse “que não queria viver em um mundo onde ‘tudo que digo, tudo que faço, todos com quem converso, toda expressão de criatividade, amor ou amizade estejam sendo gravados’”.
Como uma documentação tão extensa saiu dos arquivos herméticos da NSA? Tudo indica que em pen-drives. Para um gênio de T. I., tudo parece mais fácil, e Snowden tinha acesso remoto aos arquivos. Em dezembro de 2012, quando entrou em contato, Snowden sugeriu a Greenwald “que instalasse o programa PGP de criptografia em seu laptop. Depois de instalado, o programa permite que as duas pessoas troquem mensagens pela internet de forma criptografada. Se utilizado corretamente, o PGP garante privacidade”. Greenwald relutava e Snowden disse: “Não posso acreditar que você não instalou”. Aí, para chegar ao então colunista do “Guardian”, Snowden aproximou-se de Poitras, que, como conhecia criptografia, foi mais receptiva.
Snowden decidiu abordar um colunista e uma documentarista críticos do establishment porque não confiava no jornalismo americano. Ele disse a um repórter do “New York Times”: “Depois do 11 de Setembro, muitos dos veículos mais importantes dos EUA abdicaram de seu papel como verificadores do poder — a responsabilidade jornalística de desafiar os excessos do governo —, por medo de serem vistos como antipatriotas e, assim, punidos no mercado durante o período de nacionalismo exacerbado”. Poitras, na visão de Snowden, assumira “a missão mais perigosa que um jornalista pode receber — relatar os malfeitos secretos do governo mais poderoso do mundo”.
À desconfiada Poitras, Snowden enviou “uma bomba”. Contou que tinha cópia da Política Presidencial com a Diretiva 20, “um documento de sigilo absoluto, com 18 páginas, expedido em outubro de 2012. O documento dizia que Obama havia secretamente pedido aos seus funcionários sêniores da segurança nacional e da inteligência que elaborassem uma lista de alvos potenciais para ataques cibernéticos americanos no exterior. Não de defesa, mas de ataque. A agência estava colocando escuta em cabos de fibra ótica, interceptando pontos de telefonia e grampeando em escala global”. Poitras quase desmaiou.
Greenwald e Poitras finalmente concordaram que Snowden era sério. O primeiro acionou a editora do “Guardian” nos EUA, Janine Gibson, que decidiu enviar para Hong Kong, com os outros dois, o experimentado repórter Ewen MacAskill.
Um dos programas revelados por Snowden, o Stellar Wind, da NSA, tinha quatro alvos operacionais: comunicações e metadados telefônicos, comunicações (como e-mails e pesquisas na web) e metadados de internet. O programa começou a ser operado em 4 de outubro de 2001, no governo de George W. Bush. “O Stellar Wind parece ter contado com o apoio entusiástico das principais empresas de telefonia e provedores de serviços de internet. (…) ‘Parceiros do setor privado’ começaram a fornecer para a agência conteúdo de telefone e internet do exterior em outubro de 2001.” Um dos provedores de serviços, não nominado, deu uma sugestão à NSA: no lugar de pedir, deveria usar a Justiça para obter os dados – o que legalizava a ação de espionagem. Por meio do tribunal secreto da Fisa, obteve-se autorização judicial para se buscar os dados, sob a camuflagem de “prestação de registros de negócios” (artigo 215 do Patriotic Act — contra o terrorismo). No Congresso, o senador Obama contribuiu para a aprovação da legislação. Em 2007, candidato a presidente, disse: “Nada mais de escutas telefônicas ilegais de cidadãos americanos”.
Pressões infrutíferas
Aos atônitos Greenwald, Poitras e MacAskill, no quarto de um hotel de Hong Kong, Snowden explicou que a NSA “era capaz de transformar um celular em um microfone e dispositivo de rastreamento”. MacAskill, que pretendia gravar os diálogos, jogou o celular fora. Prevenido, “quando inseria senhas no computador”, Snowden “colocava um capuz na cabeça e acima do laptop — um tipo de cobertura gigante —, para que as senhas não pudessem ser capturadas por câmeras escondidas”.
Aparentemente, Snowden não pensou em ganhar dinheiro com a denúncia de que as agências de espionagem haviam “confiscado a internet”. O experiente MacAskill garante que se trata de um idealista e, mesmo, patriota. Quer mais uma internet livre do que destruir os Estados Unidos. Quando o jornalista do “Guardian” quis saber sobre a agência inglesa, Snowden alarmou-o: “O GCHQ é pior que a NSA. É ainda mais intrusivo”.
A sede do “Guardian” fica em Londres, mas seus editores decidiram publicar a história no “Guardian” dos Estados Unidos, que é inteiramente digital, com uma equipe de 31 funcionários e um orçamento de 5 milhões de dólares. Gibson decidiu começar pela publicação de que a Verizon, uma das maiores empresas de telecomunicações dos Estados Unidos, estava fornecendo informações de seus usuários à NSA — a maioria sem qualquer envolvimento com terrorismo — com autorização do tribunal da Fisa. Era uma espécie de pesca de arrasto.
A Casa Branca decidiu pressionar o “Guardian”, mas Gibson não recuou. “Com todo o respeito, nós tomamos as decisões sobre o que publicamos”, disse a editora. Sem sorte em Washington, o governo americano procurou o governo inglês com o objetivo de pressionar a sede do jornal. O segundo homem na hierarquia do “Guardian” londrino, Paul Johnson, não acolheu as pressões e mandou seguir adiante. A primeira reportagem, com a assinatura de Greenwald, foi publicada e se tornou um escândalo internacional, com repercussão em todo o mundo. Era a história da Verizon-NSA.
Em seguida, o “Guardian” publicou a reportagem sobre o Prism. “A NSA alegava ter acesso secreto e direto aos sistemas do Google, do Facebook, da Apple [a que mais resistiu a repassar dados] e de outras gigantes da internet dos EUA. (…) Analistas foram capazes de coletar o conteúdo de e-mails, históricos de busca, chats ao vivo e transferências de arquivos. (…) O documento informava haver ‘coleta de dados diretamente dos servidores’ de grandes provedores de serviços dos EUA”, relata Harding. A Microsoft e o Yahoo também estavam associados com a coleta do Prism.
Detonada a história do Prism, que deixou patente toda a insegurança das comunicações via internet, o “Guardian” divulgou a informação sobre o programa ultrassecreto Boundless Informant. Por meio dele, a NSA mapeia (ou mapeava?), “país por país, a volumosa quantidade de informações que recolhe a partir de redes de computadores e de telefonia. Usando metadados próprios da NSA, a ferramenta fornece um retrato de onde estão concentradas as onipresentes atividades de espionagem da agência — principalmente Irã, Paquistão e Jordânia. (…) Em março de 2013, a agência recolheu avassaladores 97 bilhões de pontos de dados de inteligência a partir de redes de computadores em todo o mundo”, anota Harding.
Como não queria que outras pessoas fossem punidas ou investigadas, e porque não se sentia culpado de nada, Snowden decidiu aparecer publicamente como único responsável pelos vazamentos. O “Guardian” divulgou o vídeo, gravado por Poitras, e sua imagem foi mostrada em todo o mundo. “Foi a matéria mais vista da história do ‘Guardian’.” Aí americanos e ingleses começaram a caçar Snowden.
Embora dependente dos fartos recursos financeiros americanos para espionagem, o GCHQ não fica atrás em capacidade de vasculhar dados de autoridades e cidadãos comuns. “O feito do GCHQ foi desenvolver um meio de construir um gigantesco buffet de internet computadorizado. O buffet poderia armazenar o tráfego. Analistas e mineradores de dados seriam então capazes de, retrospectivamente, vasculhar através desse vasto conjunto de material digital”, escreve Harding. É o projeto Tempora. “Estamos começando a ‘controlar a internet’”, vangloriou-se o GCHQ num documento. O Reino Unido estava coletando mais metadados do que a NSA.
Assim como a NSA, o GCHQ não tinha (não tem?) limites para espionar. A agência britânica grampeou “chefes de Estado durante as duas últimas conferências do G20 realizadas em Londres, em 2009”. A agência chegou a montar falsos cafés, “equipados com internet e programas com chaves de login. Isso permitiu que o GCHQ roubasse senhas dos membros da delegação para utilizá-las depois. O GCHQ também invadiu seus BlackBerrys para monitorar e-mails e ligações telefônicas. Uma equipe de 45 analistas acompanhava todas as conexões de quem ligava para quem durante a conferência. (…) Isso obviamente não tinha absolutamente nada a ver com terrorismo”, informa Harding.
O governo britânico, não tendo poder de pressão sobre o “Guardian” nos Estados Unidos, forçou o “Guardian” londrino a destruir computadores com documentos a respeito da grampolândia universalizada. Houve quem, no governo, tenha pensado em fechar o jornal e prender seu editor, Alan Rusbridger. O jornal, que não teme processos judiciais, não recuou. Porque sabe que processo não é um recurso para esclarecer, e sim para intimidar
Entretanto, as denúncias alastraram-se por outros jornais, tornando o excesso de controle do governo inglês improdutivo. A revista alemã “Der Spiegel” denunciou que “a NSA havia desenvolvido técnicas para hackear iPhones. (…) A NSA pode interceptar fotos e mensagens de voz. Pode hackear Facebook, Google Earth e Yahoo Messenger. Particularmente úteis são os dados de geolocalização, que apontam onde um alvo esteve e quando”.
Entre tantas más notícias, sobretudo a de se saber que não há privacidade alguma na internet — usar o Facebook e o Twitter é como participar de um comício —, Harding divulga uma boa: “Até agora, a NSA e o CGHQ têm sido incapazes de retirar do anonimato a maior parte do tráfego da TOR, a mais popular ferramenta de proteção do anonimato online”.
Depois do escândalo, trabalha-se, a contragosto, para regular, de maneira mais democrática, a espionagem. Pura ficção. A espionagem vai ficar, isto sim, cada vez mais sofisticada. Mas não vai cessar. Neste momento, você, leitor, está sendo investigado… e não apenas pelos americanos — obviamente.